Walter Moura

Marilena Lazzarini

Em um dos mais famosos escritos de Shakespeare, juros e empréstimos demonstraram até onde vai a capacidade humana quando pensamos em obrigações iníquas. O ponto alto da peça está no julgamento da Corte Veneziana (seu Ato IV) da relação entre o judeu e o mercador.
No empréstimo mais conhecido da literatura, Shylock – o agiota judeu – emprestou três mil ducados a Bassanio, por três meses, tendo Antonio afiançado a dívida com pouco menos de meio quilo da carne de seu próprio corpo. Vencida a dívida, nem Bassanio nem Antonio pagaram o que deviam, e o credor partiu ao Tribunal para exigir a execução.
Shylock, escolado em negócios, recusou-se a mediar a letra de dívida, ao ponto de abrir mão da devolução do dinheiro. Agarrou-se na pretensão que empunhava e partiu para cima do Duque de Veneza. O tribunal, ao julgar a questão, acabou tolhendo a sanha do agiota e recompondo a vida de Antonio.
Para ensaístas como John Draper (1935), a revisão judicial da obrigação fictícia do “Mercador de Veneza” refletiu a imposição de barreiras éticas e legais às razões econômicas e financistas.
420 anos depois, a cena de Veneza não é a mesma, embora o furor bancário para cima do Judiciário só tenha se ampliado, que o diga a novela instalada em torno do julgamento dos expurgos inflacionários devidos a poupadores brasileiros.
Consumidores foram atingidos pelas manobras bancárias que, aproveitando-se dos planos econômicos do final da década de 1980, cortaram seus saldos abusivamente. Historicamente, a Justiça de todas as instâncias deu ganho de causa aos poupadores.
Desde 2010, porém, o Supremo Tribunal Federal passou a sofrer com ininterruptas investidas da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CONSIF) que, “a la Shylock”, intenta aniquilar com tudo o que há de decidido até então.
A “letra de dívida” apresentada foi a ADPF n. 165/DF, cuja fundamentação contida é mais difícil de emplacar juridicamente do que retirar uma libra de carne de cidadão sem derramar qualquer gota de sangue.
Na tramitação dessa ADPF já se viu de tudo: patrocínio jurídico de penalista de peso, tentativa de liminar em recesso forense, apoio do Banco Central (contrariando sua matriz neutral), contratação de “prêmio Nobel” e laudos contábeis bombásticos.
A causa, que já teve início de julgamento em 2013, foi impressionantemente retirada de pauta para a Procuradoria-Geral da República recalcular número desinfluente ao litígio. A PGR não explica por que só deixou para revisar a conta no dia em que o Supremo pautou a ADPF, com composição completa, sustentações feitas e votos obviamente prontos.
Olhando para o STJ, é possível saber porque o tempo vale ouro aos bancos. Desde o advento da ADPF, quase a totalidade das Ações Coletivas foram extintas por prescrição (REsp 1070896, Luis F. Salomão, DJe 04/08/2010), os juros remuneratórios foram reduzidos das condenações originais (REsp 1.535.990, Luis F. Salomão, DJe 20/08/2015) e, agora, pretende-se restringir a execução da sentença coletiva apenas a filiados das poucas entidades que ainda têm ações tramitando (tema afetado no REsp 1.438.263, na modalidade de repetitivo).
Na nova Veneza, a peça shakespeariana se escreve diferente.
Enquanto se faz teatro do julgamento da ADPF, centenas de milhares de Antonios e Bessanios já perderam libras e libras de seu direito. Embora todo juiz brasileiro saiba que bancos devem os expurgos inflacionários (na forma da lei e da jurisprudência), desde 2010, há quem aposte que os poupadores podem ficar sem nada!
As últimas cenas escritas deixariam William e seu Duque de Veneza decepcionados. CONSIF e seus advogados ganham tempo gerando (e tentando se esquivar) de impedimentos por eles mesmos criados, tentando controlar quando a Corte Suprema decidirá o caso.
Atualmente, o cenário de crise aguda atual parece música aos ouvidos de quem quer trocar a carne dos poupadores pela liberação das reservas de contingências que todos os bancos têm guardadas para saldar seu débito. O momento é de tentar retomar o julgamento, afinal, o discurso do caos econômico volta a ser propício.
Nesse entremeio, a sucessão de novos juízes, no Supremo, foi sempre vigiada nas sondagens de impedimento. Recentemente, sobrou para um poupador idoso, pai de magistrado, que teve de abandonar seu direito reconhecido. Agora, uma das bancas jurídicas de Shylock, trocando seis por meia dúzia, substabeleceu o bâtonnier por seu ex-funcionário para ver no que dá.
Na nova Veneza, a carne de Antonio está visceralmente exposta, já foi cortada em muito mais da metade e corre o risco desse fiador desfalecer. O Supremo tem a caneta na mão e é o único que ainda pode salvar a versão brasileira da navalha afiada do agiota.
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HINELY, Jan Lawson. Bond priorities in the merchant of venice. Studies in English Literature, 1500-1900, v. 20, n. 2, p. 217-239, 1980.

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JOTA

As idas e vindas do STF no julgamento dos planos econômicos. 

Planos econômicos: Nova Veneza e o Supremo

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