
Em 6 de outubro de 2022, apenas quatro dias após o primeiro turno das eleições gerais, foi apresentado à mesa diretora da Câmara dos Deputados o PL 2567/2022, com o objetivo de “tipificar a conduta de publicar pesquisa eleitoral com dados que divergem, além da margem de erro, dos resultados apurados nas urnas”.
O PL, de autoria do deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), foi apensado ao PL 1764/2022 – apresentado, em julho de 2022, pelo deputado federal Bibo Nunes (PL-RS) – e ao “remoto” PL 96/2011, de autoria do deputado federal Rubens Bueno (PPS-PR).
Embora não se possa deixar de reconhecer o Congresso Nacional como o ambiente adequado para a tomada de decisões quanto à criminalização de determinadas condutas – com baixa incursão repressiva do Poder Judiciário[1] –, o processo legislativo em curso desperta enormes preocupações.
A principal crítica pode ser resumida em uma curta expressão: ausência de razoabilidade. Embora a noção anglo-saxã de “razoabilidade” (reasonable ground), assim como a sua prima alemã “proporcionalidade” (Verhältnismäßigkeit), tenham sido banalizadas pelo peculiar ativismo judicial brasileiro, cuida-se de relevante faceta da pedra de toque do Estado de Direito: o devido processo legal.
Como estabelecido em precedentes do Supremo Tribunal Federal[2], influenciado por precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos[3], a dimensão substantiva da cláusula constitucional do devido processo legal[4] impede a adoção, pelo Poder Público, de decisões (administrativas, judiciais ou legislativas) arbitrárias e desnecessárias. Vedam-se, portanto, escolhas estatais capazes de interferir nas liberdades individuais e desprovidas de “fundamento racional”. Isso porque ações de tal natureza, em um Estado de Direito, consistem em ilegítimo exercício de poder.
E por que os mencionados projetos de lei seriam desprovidos de razoabilidade?
Em linhas gerais, o PL 2567/2022 pretende inserir na Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) um novo tipo penal em seu art. 33-A, com pena de reclusão de 4 a 10 anos, e multa. A conduta vedada consiste em “publicar, nos 15 dias que antecedem às eleições, pesquisa eleitoral cujos números divergem, além da margem de erro declarada, em relação aos resultados apurados nas urnas”.
Um primeiro ponto chama atenção: a elevada pena.
Para se ter uma ideia da gravidade atribuída à conduta típica, a pena de 4 a 10 anos é superior àquelas previstas para todos os crimes ambientais tipificados na Lei 9.605/1998. Também é superior à do crime de lavagem de dinheiro, punido com a pena de reclusão de 3 a 10 anos (art. 1º da Lei 9.613/1998), e àquela atribuída ao crime de integrar organização criminosa, punido com reclusão de 3 a 8 anos (art. 2º da Lei 12.850/2013). De igual modo, supera a pena do delito de tráfico de pessoas, punido com a pena de reclusão de 4 a 8 anos (art. 149-A). Para completar o rol de exemplos, a pena é superior até mesmo ao crime de pornografia infantil (art. 241-A do ECA, punido com reclusão de 3 a 6 anos) e equivale à pena do delito de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B do Código Penal).
Mas há mais – e aqui reside a principal crítica acadêmica. A justificativa declarada do PL 2567/2022, extraída da página virtual da sua tramitação, revela a origem do inconformismo do legislador:
Diante dos resultados apurados ao final da eleição realizada no dia 2 de outubro de 2022, um fato preocupante chamou a atenção de todos: as pesquisas eleitorais erraram para além da margem de erro esperada e não só para a Presidência da República, mas também para diversos governos estaduais e para o Senado Federal. Um erro gravíssimo, já que esses levantamentos acabam manipulando e interferindo diretamente na escolha do eleitor, que muitas vezes se vê compelido a trocar seu candidato para fazer valer o “voto útil”.[5]
Em um dos parágrafos da justificação, é defendida a tese de que “o erro foi tão grotesco, que 7 empresas já estabelecidas no mercado tiveram pesquisas indicando a possibilidade de vitória de Lula no 1º turno: Ipec (ex-Ibope), Datafolha, Quaest, Ipespe, MDA, Atlas e FSB”. Quanto a isso, sequer se poderia chamar de “grotesca” – adjetivação bastante peculiar para um PL – a tendência de vitória em primeiro turno de um candidato que, ao final, reuniu 48,4% dos votos válidos, faltando-lhe 1,6% para isso.
As passagens destacadas revelam a manifesta ausência de razoabilidade na proposta legislativa. Primeiramente, é um claro equívoco atribuir às pesquisas eleitorais a capacidade – muito menos o dever – de prever o resultado das eleições. Como amplamente divulgado, não existe método que possibilite essa façanha[6].
Nas palavras do presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), Antonio Lavareda, “pesquisas fazem fotografias de momentos, medem atitudes, opiniões, mostram tendências, mas não medem comportamento”. Consequentemente, “não são prognósticos”. Isso se deve, sobretudo, à imprevisibilidade do comportamento humano, o que “abre espaço para o voto estratégico (voto útil) inclusive no último minuto”[7].
Para além disso, a redação do PL estabelece que “respondem pelo crime previsto no caput o estatístico responsável pela pesquisa divulgada, o responsável legal do instituto de pesquisa e o representante legal da empresa contratante da pesquisa”. E mais: “o crime previsto no caput se consuma ainda que não haja dolo de fraudar o resultado da pesquisa publicada” (§ 2º).
Firmadas tais premissas, chegamos à conclusão de que o PL exige dos estatísticos, responsáveis legais dos institutos de pesquisa e responsáveis legais das contratantes uma obrigação impossível. Didaticamente, isso equivale a exigir de todos os médicos que adotem procedimentos 100% capazes de diagnosticar e até mesmo curar, com precisão, enfermidades (mesmo as sem cura). Ou mesmo exigir de um engenheiro que consiga superar, em seus cálculos, a lei da gravidade, podendo vir a ser preso se não conseguir contorná-la, “mesmo que não haja dolo de fraude”.
Isso lhe parece razoável?
[1] Sobre o papel dos Poderes Legislativo e Judiciário no âmbito das escolhas políticas, conferir: WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
[2] Conferir, entre outros: STF, ADI 1817 MC, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 23/04/1998, Publicação: 14/06/2002; ADI 173, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento: 25/09/2008, Publicação: 20/03/2009; ARE 915424 AgR, Órgão julgador: Segunda Turma, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 20/10/2015, Publicação: 30/11/2015; RE 1145279 AgR, Órgão julgador: Segunda Turma, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 01/03/2019, Publicação: 28/03/2019; ADI 4338, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Julgamento: 23/08/2019, Publicação: 09/09/2019.
[3] Entre os primeiros casos, destacam-se: SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS, Calder v. Bull, 3 U.S. 386, 388–90, 1798; Slaughterhouse Cases, 83 U.S. 36, 1872; Lochner v. New York, 198 U.S. 45, 1905; Griswold v. Connecticut, 381 U.S. 479, 1965.
[4] Constituição da República: “Art. 5º […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
[5] Conferir: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2208775. Acesso em: 11 de out. 2022.
[6] Conferir, nesse sentido: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/entenda-como-ler-uma-pesquisa-eleitoral.shtml e https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62341545. Acesso em 11 out. 2022.
[7] Conferir: https://antoniolavareda.com. Acesso em 11 out. 2022.