No último dia 11 de agosto, as Comissões de Comunicação, Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados apresentaram um texto substitutivo ao PL 2370/2019, conhecido como PL dos Direitos Autorais, que desde sua origem visa precipuamente a reformar a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.609/1998).
Há muitos anos discute-se uma possível reforma da Lei de Direitos Autorais diante dos impactos que a tecnologia e o uso da internet causaram nas modalidades de uso das obras protegidas por direitos autorais, tais como obras audiovisuais, fotos e músicas, e da suposta insuficiência da lei existente para lidar com essas novas situações.
Mais recentemente, adicionou-se ao debate discussões sobre a regulação de uma sistemática de remuneração pelo uso de conteúdo jornalístico online, diante da migração do consumo de conteúdo dessa natureza do ambiente físico (como jornais e revistas impressos) para o ambiente virtual (como portais de notícias, redes sociais etc.), tal como ocorrido em outros países.
A tecnologia, mais uma vez, impõe desafios ao direito e procura-se respostas para situações novas que até então não haviam sido antecipadas no âmbito legal e nem poderiam ter sido. É nesse contexto que a reforma da Lei de Direitos Autorais e, também, a remuneração pelo uso do conteúdo jornalístico online têm sido discutidas no Brasil.
Os temas figuram em projetos de lei – a exemplo do próprio PL 2370 e também do PL 2630/2020 (imprecisamente conhecido como PL das Fake News) –, são objetos de consultas públicas – tal como a proposta pelo Comitê Gestor da Internet em abril deste ano e protagonizam contendas envolvendo sociedade civil, congressistas e setores diversos do mercado.
A versão recém-proposta do substitutivo do PL 2370 sugere alterações profundas à Lei de Direitos Autorais e também ao Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Em linhas gerais, o substitutivo propõe:
- Obrigações de remuneração por uso de conteúdo online: a alteração da Lei de Direitos Autorais e do Marco Civil da Internet, respectivamente, para incluir 1) a obrigação expressa de remuneração pelos provedores de internet pelo uso de obras audiovisuais e musicais nas suas respectivas plataformas; e 2) a obrigação expressa de remuneração pelos provedores de internet pelo uso de conteúdo jornalístico online nas respectivas plataformas.
- Armazenamento em nuvem e aplicativos de mensageria: a exclusão expressa da obrigação remuneratória em caso de utilização não comercial de obras audiovisuais e musicais e de conteúdos jornalísticos no âmbito de aplicativos de mensageria privados e de armazenamento em nuvem.
- Criação de associações de gestão coletiva para arrecadação e distribuição de direitos sobre obras audiovisuais: a criação de associações de gestão coletivas para arrecadação e distribuição de direitos sobre obras audiovisuais usadas na internet, com a indicação de uma associação para ser a delegatária para o exercício da função.
- Conteúdo publicado pelo usuário: a atração da obrigação remuneratória aplicável aos provedores de internet quanto ao uso das obras protegidas por direitos autorais (obras audiovisuais e musicais), mesmo nos casos em que o uso online tenha sido desencadeado pelo usuário final da plataforma e o afastamento da obrigação remuneratória aplicável aos provedores de internet quanto ao uso de conteúdo jornalístico, nos casos em que o uso online tenha sido desencadeado pela usuário final sem finalidade comercial, desde que o provedor não intervenha na forma de entrega desse conteúdo.
- Anúncios: a alteração do Marco Civil da Internet para incluir obrigações específicas aplicáveis ao fornecimento de serviços de publicidade online, incluindo no que diz respeito à publicação de relatórios e a medidas de transparência e controle que devem ser implementadas em relação aos usuários no âmbito da veiculação de anúncios.
Uma breve reflexão sobre os pontos acima deixa claro os impactos substanciais que o substitutivo poderia representar não “isoladamente” sobre o uso de obras protegidas por direitos autorais e de conteúdo jornalístico e sobre o modelo de remuneração pelo uso dessas obras e conteúdo no ambiente online, mas sobre o funcionamento da internet como um todo.
Afinal, a internet é movida, principalmente, por conteúdo: seja aquele gerado pelos usuários finais (como por exemplo, no âmbito das publicações feitas em redes sociais), seja aquele disponibilizado pelas próprias empresas na internet (como, por exemplo, no âmbito de serviços de streaming por assinatura que disponibilizam catálogos de músicas e filmes para seus assinantes, sejam os serviços “nato digitais” ou os ofertados por empresas que migraram das mídias tradicionais para a internet).
A proposição de quaisquer regras que impactem essa realidade deve ser precedida de análise preliminar cuidadosa e da participação ativa dos atores potencialmente impactados por elas – em homenagem, inclusive, ao princípio da participação popular que deve permear a democracia. O contrário pode gerar o efeito inverso ao que se espera. Por exemplo, regras que representem ônus excessivo aos modelos de negócio da internet podem significar desincentivo para a inovação, já que podem levar, em última análise, à limitação da oferta de serviços, à saída de empresas importantes do mercado brasileiro e à criação de barreiras para o desenvolvimento de negócios de menor porte.
Os interesses em discussão são diversos e a sua conciliação, embora represente um desafio relevante para o legislador, é necessária para dar continuidade ao desenvolvimento da tecnologia e da inovação na sociedade. Diante do desafio, a votação do substitutivo ao PL 2370, que por pouco não ocorreu apenas três dias após sua propositura, foi suspensa pela Câmara dos Deputados. O tempo foi suficiente para deixar em evidência, mais uma vez, a imperiosa cautela que deve orientar iniciativas que proponham alterar sistemáticas tão relevantes, como a aplicável aos direitos autorais e ao uso de conteúdo jornalístico na internet. 