Daniel Menezes

A discussão do <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2360503">PL 2384/2023</a>, que trata do restabelecimento do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>), é uma espécie de “carona” legislativa, em que uma proposição de aceitação difícil é posta ao lado de outra pacífica ou com força suficiente para arrastar aquela. 
O modelo de desempate no Carf foi alterado pela introdução do artigo 19-E na <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10522.htm">Lei 10.522/02</a> pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13988.htm">Lei 13.988/2020</a>, dispondo que no caso de empate o julgamento seria decidido a favor do contribuinte. Com a mudança, porém, a esmagadora maioria dos julgamentos passou a ser totalmente favorável ao contribuinte. Assim, a menos que de repente a maioria dos fiscais tenha passado a autuar de forma ilegal, isso indica que passou a prevalecer o interesse individual dos contribuintes, em detrimento do interesse coletivo pela correta obediência das normas tributárias. 
O princípio penal (in dubio pro reu), que se aplica aos julgamentos pelo Poder Judiciário, não se aplica na fase de decisão pela persecução penal, da mesma forma que não tem cabimento aplicar o “in dubio pro contribuinte” nos julgamentos do Carf. Contudo, por circunstâncias alheias à dogmática jurídica, o tema foi objeto de alteração pelo legislador em 2020, aproveitando um projeto de interesse da administração tributária para introduzir a distorção. Agora, o governo busca restabelecer a integridade do sistema por meio do PL 2384 e novamente surgem propostas de pegar carona legislativa para incluir disposições contrárias ao interesse público e conflitantes com o espírito do projeto.
Aproveitando o interesse do governo no restabelecimento do voto de qualidade para consolidação do novo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/arcabouco-fiscal">arcabouço fiscal</a>, alguns setores estão buscando introduzir no projeto normas incompatíveis com o espírito do sistema e que favorecem pequenos grupos. Uma delas é a que prevê a celebração de transação individual no âmbito da cobrança administrativa junto à Receita Federal.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/transacao-tributaria">transação tributária</a> foi um instrumento introduzido pela Lei 13.988/2020 para permitir à AGU encerrar litígios. A inovação permitiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional propor ou receber propostas de negociação nas quais, em troca do recebimento parcelado ou com descontos, evitava os custos e incertezas da cobrança judicial de créditos de baixa recuperabilidade, ou os riscos de decisão desfavorável nos processos de conhecimento. O resultado foi positivo, e a PGFN conseguiu, desde a edição da norma, negociar mais de R$ 400 bilhões de créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação, com arrecadação efetiva de quase R$ 25 bilhões.
Na prática, o modelo do direito subjetivo aos programas de regularização fiscal facilitada permitia que grandes contribuintes realizassem planejamentos tributários agressivos, baseados no inadimplemento voluntário de tributos seguido de seu parcelamento sem encargos de mora. Com esse comportamento prejudicavam a concorrência com aqueles que cumpriam pontualmente suas obrigações e oneravam o tesouro, não raro duplamente. De um lado em razão da queda de arrecadação, que exige financiamento no mercado para cobertura do déficit, e de outro porque por vezes os recursos não recolhidos aos cofres eram aplicados em títulos dessa mesma dívida pública com juros remuneratórios elevados pela ação do próprio devedor.
A transação prevista na Lei impede tais manobras uma vez que os passivos fiscais mais significativos, aqueles para as quais faz sentido o planejamento agressivo e que tem peso suficiente para impactar a curva de juros e da dívida pública, deixaram de contar com a certeza da possibilidade de parcelamento com desconto. Agora é necessário solicitá-lo à PGFN e ter sua situação financeira descortinada aos olhos do credor, correndo o sério risco de não obter os benefícios necessários para que o planejamento tenha resultado positivo. Além disso, quem transaciona precisa manter-se em dia com as obrigações futuras e não pode usufruir do benefício novamente no prazo de cinco anos, o que torna a estratégia de inadimplemento como forma de planejamento insustentável. 
Em que pese o sucesso da transação em termos de arrecadação e regularização fiscal, permanece intensa a articulação política para criar parcelamentos gerais, capazes de beneficiar quem não precisa e de restabelecer as práticas reprováveis de planejamento agressivo, e a tramitação do PL do Carf representou uma nova janela de oportunidade para atores políticos com interesses pouco republicanos. 
Na Câmara dos Deputados, a transação no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal acabou suprimida pelo acolhimento de uma emenda de plenário. Outras alterações, porém, foram aprovadas com o mesmo escopo de favorecer a litigância administrativa.
De acordo com os novos artigos 9-A e 25-A propostos para o Decreto 70.235, de 6 de março de 1972, o contribuinte que recorrer ao Carf e não tiver êxito devido à solução a favor da fazenda pelo voto de qualidade ficará dispensado da multa de mora e imune à persecução penal pelo delito de sonegação fiscal (art. 9-A). Além disso, terá noventa dias para manifestar a intenção de pagamento, prazo em que será considerado em conformidade com o fisco para todos os efeitos – ainda que não manifeste ou pague – e gozará de suspensão da incidência de juros, podendo ainda parcelar o montante do tributo em até 12 vezes e utilizar prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL – verdadeira moeda podre – para quitação. Não bastasse, caso não manifesta a opção de parcelar, ainda assim ficará isento das multas e sanções penais, bem como imune à incidência do encargo legal (art. 25, §8º).
Tais disposições são contrárias ao interesse público, sendo fundamental que o Senado as exclua durante a apreciação do PL 2384. 
Os recursos ao Carf são expedientes mais frequentemente utilizados por grandes contribuintes, aqueles que possuem capacidade econômica para contribuir com a sociedade, não pelos pequenos, em dificuldade financeira. Por isso, criar benefícios exagerados para este grupo já economicamente favorecido, atenta contra a cultura da conformidade tributária uma vez que reduz os incentivos para o pagamento espontâneo. 
Considerar regular por noventa dias o contribuinte que foi vencido pelo voto de qualidade, enquanto se espera sua manifestação de interesse em pagar, é permitir que neste período ele aliene bens, distribua lucro e tome empréstimos com taxas subsidiadas e participe de licitações sem que nada disso caracterize infração. Ademais, o dispositivo sequer leva em consideração o fato de que o recurso e a decisão do presidente podem não ter versado sobre a totalidade do tributo, concedendo benefício sem qualquer causa jurídica ou racional. A medida viola flagrantemente o disposto no Código Tributário Nacional (CTN) que, por ter status de lei complementar, não pode, neste ponto, ser suplantado por lei ordinária.
De outro giro, se a dispensa da multa de ofício (pena) no caso de desempate pelo voto de qualidade pode se justificar em razão do benefício da dúvida, a imunidade investigação penal é menos evidente, pois, como se sabe, vige nesta etapa o in dúbio pro societatis. De toda sorte, nada justifica a dispensa, a priori, da multa de mora, que não se destina a punir, mas a estimular o pagamento espontâneo, tampouco do Encargo Legal, que tem por objetivo transferir aos inadimplentes o custo incorrido pelo Estado na cobrança, retirando tal ônus dos ombros daqueles que cumprem pontual e voluntariamente suas obrigações tributárias. 
A parcela da sociedade que paga pontualmente seus tributos e a que precisa disputar mercado para seus bens e serviços com inadimplentes contumazes espera que as distorções introduzidas pela Câmara no projeto do Poder Executivo sejam suprimidas, ou que o presidente da República vete-as por serem frontalmente contrárias ao interesse público.

Senado

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JOTA

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Espera-se que as distorções introduzidas pela Câmara dos Deputados no PL 2384 (PL do Carf) sejam suprimidas pelo Senado