Marco Antonio C. Sabino

Não é a primeira vez que escrevo sobre o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735">PL 2630/2020</a>, conhecido como <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pl-das-fake-news">PL das Fake News</a>. Há uma vontade legislativa em aprovar o projeto rapidamente e aplicá-lo para as <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições 2022</a>, o que causa espécie, é verdade, dada a complexidade da matéria. Mas não apenas. Na tentativa de conciliar múltiplos interesses, o texto trata pouco de notícias falsas, e, em sua última versão, inseriu o famoso “jabuti”, equiparando, na base da caneta, redes sociais e aplicações de mensageria privada a veículos de comunicação social.
Nem todo o veículo de comunicação é social. Denis McQuail (2010)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> apresentou seis níveis do processo de comunicação em forma de pirâmide, do topo (em que se localiza o processo de comunicação em rede) à base (o processo intrapessoal). Para McQuail, tanto a novela Pantanal da TV Globo quanto a conversa de um casal são processos comunicativos. O processo de materialização dessa comunicação é o veículo. No caso da novela, veículos são não apenas as televisões, celulares ou outros gadgets, mas toda a infraestrutura que faz com que o destinatário receba a mensagem. Para o casal, o veículo é a fala.
Em um aspecto mais amplo, a TV Globo e o casal são veículos de comunicação, mas é fora de dúvida que substancialmente diferentes: a empresa de radiodifusão pretende entregar sua mensagem a tantos quantos forem os destinatários, todos indetermináveis, e possui obrigações legais de programar seu conteúdo com relevância e interesse público (ver <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4117compilada.htm">Código Brasileiro de Telecomunicações</a>); o casal, por sua vez, não tem nenhuma dessas pretensões ou obrigações. A TV é uma via de mão única, a mensagem só é recebida pelo destinatário; no casal, a conversa é de mão dupla, e as mensagens são trocadas.
As redes sociais estão mais para o casal do que para a empresa de radiodifusão.
Não há dúvida que há processos comunicativos nas redes sociais, e que os veículos são, precisamente, Instagram, Facebook, YouTube, TikTok, Twitter e outros – porque, novamente, materializam a mensagem. Contudo, ao contrário da radiodifusão, fundada no conceito de difusão, espalhamento, propagação, as redes sociais giram em torno do conceito de comunidade, um conjunto de pessoas que compartilham um objeto comum.
A arquitetura da rede social não permite difusão, e os usuários são todos determináveis. Daí se tira que os veículos de radiodifusão possuem uma natural propensão a divulgar mensagens que sejam de interesse de toda a sociedade – uma comunicação um para todos, difusamente considerada –, e as redes sociais, uma natural tendência a permitir uma comunicação um a um, ou um para muitos, ou muitos para muitos, ou muitos para poucos, ou, ainda, muitos para um.
No diagrama de McQuail, a radiodifusão opera no nível da sociedade em rede – a comunicação em massa –, enquanto a rede social, no nível intergrupal – as comunidades. É dizer, veículos de radiodifusão possuem capacidade e aptidão a transmitir mensagens de interesse social. Como, para o reverenciado Marshall McLuhan (1964)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o meio é a mensagem, a Globo é um veículo de comunicação social, mas o Facebook, não. Boa parte dos conteúdos que transitam nas redes sociais são socialmente irrelevantes.
As redes sociais não podem ser entendidas como veículos de comunicação social. E isso por duas razões: a definição (i) pela origem, condizente com qualidades próprias dos emanadores da mensagem; e (ii) pela consequência, relacionada aos receptores da respectiva mensagem. Pela origem, os veículos de comunicação social envolvem controle total da mensagem: possuem controle editorial e toda uma estrutura voltada a atingir o maior número possível de destinatários. Por sua vez, as redes sociais não têm a menor ingerência no conteúdo produzido por seus usuários, e 94% dos conteúdos das redes são produzidos por seus usuários<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Moderação de conteúdo, por sinal, não tem qualquer relação com controle editorial, são fenômenos distintos que não cabem na mesma frase.
Veículo de comunicação social se define também pelos destinatários da mensagem, uma massa indeterminada e heterogênea de pessoas, como é, afinal, a sociedade; redes sociais veiculam mensagens para pessoas determinadas, escolhidas pelo emissor da mensagem (mesmo influencers precisam aceitar seguidores, ou seja, há um ato volitivo manifestado), como é uma comunidade.
O p. 2º do artigo 2º do PL das Fake News equipara redes sociais a veículos de comunicação social apenas, nos dizeres do relator, para fins de responsabilização de candidatos por uso indevido de veículos de comunicação social. Contudo, ao realizar tal equiparação, o projeto abre a porta para equiparações impróprias de ocasião, o que é um desserviço para a boa conceituação dos fatos e fenômenos que pretendem ser regulados pela norma. Rede social não é veículo de comunicação social. Mais fácil seria alterar a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp64.htm">Lei Complementar 64/1990</a>. Mas a pressa e o quórum qualificado fazem com que a solução mais fácil seja a apresentada. Mais fácil, porém longe de ser a mais técnica.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> McQuail’s Mass Communication Theory, 6th ed., London: Sage, 2010
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Understanding Media, the extensions of Man. Canada: McGraw-Hill, 1964
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.pewresearch.org/internet/2007/12/19/communications-and-social-media/">https://www.pewresearch.org/internet/2007/12/19/communications-and-social-media/</a>, acesso em 13.7.2021, 15h12

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JOTA

Nova versão do PL 2630/2020 abre a porta para equiparações impróprias de ocasião e presta um desserviço

Redes sociais são veículos de comunicação social?

Nova versão do PL 2630/2020, o PL das Fake News, abre a porta para equiparações impróprias de ocasião e presta um desserviço