Nicolao Dino
Subprocurador-geral da República do Ministério Público Federal, é o atual Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, além de professor de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da UnB
O PL 7.448/2017, aprovado pelo Congresso Nacional e ora pendente de sanção presidencial, anuncia, em sua ementa, o propósito de introduzir no sistema jurídico brasileiro disposições sobre segurança jurídica na criação e na aplicação do direito público. Não é isso que se vê, contudo, em aspectos cruciais do texto.
São muitos os traços controvertidos, os quais foram detidamente analisados em oportuna e bem lançada Nota Técnica da Procuradoria Geral da República, subscrita por todos os órgãos de coordenação e revisão do Ministério Público Federal.
+JOTA: Associações pedem veto de Temer a projeto que altera LINDB
Destaco, nesta oportunidade, alguns pontos de extrema preocupação, exatamente por suas graves consequências para o regular funcionamento das instâncias de regulação e controle de juridicidade dos atos administrativos, moldados a partir do sopro democrático da Constituição da República, há trinta anos. Ali se afirma que a administração pública deve obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O PL 7.448/2017 prevê, no art. 20, que “[N]as esferas administrativas, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” Dois problemas aí se apresentam. O texto parece voltar-se contra a possibilidade de controle de juízos de juridicidade com base em princípios. E, sendo essa a pretensão do legislador, o dispositivo é irremediavelmente inconstitucional, uma vez que impede o controle – administrativo ou judicial – com base numa das mais importantes ferramentas que compõem o sistema jurídico. Sim, o projeto desconsidera que o sistema jurídico é composto de regras e princípios, e que estes últimos exercem função densificadora essencial ao seu funcionamento como um todo. Os princípios – já lembrava Agustin Gordillo – são, ao mesmo tempo, normas e diretrizes do sistema jurídico. Ora, se o comportamento administrativo há de ser norteado também – e essencialmente – pelos princípios que regem a administração pública, é induvidoso que o controle de juridicidade deve levar em conta não só as regras que integram o sistema, mas também os princípios que dão densidade a ele. Negar essa possibilidade equivale a coibir o uso de régua e compasso pelo arquiteto.
Nem se diga que a intenção do legislador seria apenas “conectar” a esfera decisória com a realidade dos fatos, ao mencionar, no citado art. 20, que apenas deverão ser consideradas as “consequências práticas da decisão”, quando forem invocados valores jurídicos abstratos (ou seja, princípios). Ora, essa integração já existe, e desde sempre. Os agentes públicos das esferas de regulação e controle não pertencem a outra galáxia; devem aplicar, portanto, o direito com base na dinâmica da realidade da vida. Um comando normativo é uma moldura vazia, se não conectada com a realidade social. Trazendo à baila a concretização do direito, bem pondera Eros Grau, que “quando um jurista cogita dos elementos e situações do mundo da vida sobre os quais recai determinada norma, não se refere a um tema metajurídico. A norma é composta pela história, pela cultura e pelas demais características da sociedade no âmbito da qual se aplica.”1 É por isso que o Ministério Público, quando propõe uma ação, o juiz, quando julga e aplica o sistema jurídico em sua inteireza, e as Cortes de Contas, quando analisam atos administrativos à luz da economicidade, consideram, sempre, o fragmento da realidade social atingida pela norma concretizada. Fazer isso é consectário do compromisso institucional de promoção da ordem jurídica. Isso faz parte do dia-a-dia do funcionamento do Sistema de Justiça. Quando, por exemplo, o juiz condena uma pessoa, analisa as circunstâncias do crime e suas consequências, para fixar a pena adequada e proporcional ao crime cometido.
Mas não é isso que o PL 7448/20017 pretende, no apontado art. 20. Ao vedar que se decida com base em “valores jurídicos abstratos [...] sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, e que a motivação de possível invalidação do ato administrativo leve em conta “possíveis alternativas” (parágrafo único do art. 20), o texto do dispositivo exige do julgador ou do controlador um exercício de futurismo, que, se possível fosse, seria absolutamente indevido para as esferas de controle de juridicidade, transferindo-lhes, como bem apontado pela Nota Técnica da PGR, “os ônus e as responsabilidades inerentes à atividade do gestor público”. O exame de alternativas possíveis ao ato invalidado constitui atividade tipicamente administrativa. Querer isso significa convolar, na prática, a função judicante em ofício administrativo, embaralhando jurisdição e administração e engrossando, ainda mais, o caldo do infindável debate sobre a “judicialização da política”.
+JOTA: Teoria Interacionista do Direito: PL 7448/2017 merece ser sancionado
+JOTA: Repensando o controle público no contrafluxo: pela fuga pragmática do PL nº 7448/2017
Não é só. O projeto, nesse ponto, e também no art. 21, sinaliza em direção à possível preponderância de um fator de pragmatismo sobre um vetor de juridicidade, sugerindo a ideia de que consequências práticas podem prevalecer, a despeito da contrariedade a valores jurídicos. Isso põe em sério xeque o sistema de freios e contrapesos, essencial para a observância de garantias fundamentais alicerçadas na Constituição. Não se deve esquecer, parafraseando Konrad Hesse, que existe uma relação reciprocamente condicionante entre o ordenamento jurídico (notadamente a Constituição) e a realidade político-social, e que, nessa via de mão dúplice, esse arcabouço é determinado pela realidade, mas também é determinante em relação a ela. Assim deve ser num Estado democrático de direito. Fora disso, há o risco de pragmatismos mutantes, ao sabor de ventos e de governantes.
Há, sem dúvida, que se promover segurança jurídica e estabilidade ao funcionamento da administração pública. Há igualmente que se preservar o legítimo espaço da administração, possibilitando aos gestores, tal como definido pelo ordenamento jurídico, sua liberdade de escolhas na realização do bem-estar coletivo, desde que dentro de parâmetros de juridicidade. Isso, contudo, não parece ser possível confundindo-se, ainda mais, o papel de julgador com o de gestor, e trazendo para o sistema jurídico mais conceitos abertos e indeterminados (p.ex., “circunstâncias práticas”, “obstáculos e dificuldades reais do gestor”, “exigências das políticas públicas” – art. 22) potencializando incertezas e subjetivismos, em prejuízo às próprias finalidades que o Projeto anuncia.
-------------------
1GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, pág. 65