Paloma Gomes

Rafael Modesto

Desde o dia 8 de junho, mais de 850 indígenas de pelo menos 45 povos se reúnem em Brasília para defender o direito à vida e aos seus territórios. No Acampamento Levante Pela Terra reafirmam que as vidas indígenas importam, exigem a interrupção das pautas anti-indígenas no Congresso Nacional, a exemplo do Projeto de Lei (PL) 490/2007, e confiam ao Supremo Tribunal Federal (STF) a defesa dos seus direitos fundamentais no julgamento do emblemático caso Ibirama La-Klãnõ, marcado para o dia 30 de junho (Recurso Extraordinário 1.017.365 – Tema 1031).
O fato de a maior mobilização indígena dos últimos anos ocorrer em plena pandemia do coronavírus é um indicativo do estado atual de pressão a que estão submetidos os povos indígenas do Brasil: sofrendo ataques em seus territórios e vendo seus direitos constitucionais em risco, comunidades de todo o país decidiram vir à capital federal clamar por proteção e respeito aos direitos conquistados com muita luta no processo Constituinte.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Cabe ressaltar que a luta travada pelos povos para que fossem incluídos no grupo prioritário da vacinação permitiu que parte da sua população fosse imunizada e, agora, pudesse se deslocar até a capital federal para travar a luta em defesa de seus direitos. Um exemplo da gravidade da situação enfrentada pelos povos originários no presente momento é a do povo Munduruku, no Pará – que, além dos ataques, das ameaças a lideranças e da devastação de seu território pelo esquema criminoso do garimpo ilegal, <a href="http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-requisita-escolta-policial-para-que-indigenas-munduruku-contra-o-garimpo-ilegal-possam-viajar-a-brasilia" target="_blank" rel="noopener noreferrer">teve que ser escoltado</a> para poder deixar a cidade de Jacareacanga em segurança.
Mesmo com a vigília permanente em Brasília, ainda assim avançam contra as vidas indígenas, sem constrangimento, aqueles que defendem o desenvolvimento econômico por meio da extração de minérios, madeiras, da ocupação do solo para criação de gado e cultivo de soja. Fato é que os povos indígenas permanecem resistindo, uma vez que a sua existência está intimamente ligada ao território e ao meio ambiente.
<blockquote class="jota-article__eye">Embora o extermínio indígena seja a pauta prioritária desses grupos que nunca romperam com a violência do período colonial e com o discurso integracionista vigente à época da ditadura militar, temos hoje um ordenamento jurídico sólido que não autoriza retrocessos.</blockquote>
O ministro do STF Roberto Barroso, em entrevista concedida ao jornal O Globo, publicada em 20 de abril de 2021, sustentou que “o direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea”, e já tivemos a oportunidade de nos manifestar sobre o tema em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direito-indigena-clausula-petrea-e-inamovivel-07062021">artigo recentemente publicado</a>.
O também ministro do Supremo Edson Fachin tem o mesmo entendimento. Em voto proferido no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, em julgamento interrompido por pedido de destaque em 11 de junho do corrente ano, firmou que “incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador”, e que “os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas”.
A leitura do texto constitucional não pode estar dissociada do reconhecimento de que os direitos indígenas são originários, muito menos da violência a que foram submetidas as comunidades ao longo dos séculos no Brasil. Por isso mesmo que a Carta de 1988 opera de forma retroativa, reprimindo os ilícitos e o esbulho territorial ocorridos antes da sua promulgação.
É nessa previsão constitucional que esbarra o PL 490/2007. Este projeto estabelece, entre outras maldades, a implementação de um marco temporal para demarcação de terras indígenas, no qual o direito territorial dos índios estaria atrelado à comprovação da ocupação física – e não tradicional, como determina o texto constitucional – da terra pela comunidade na data da promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988.
Chama atenção o fato de o referido projeto de lei ter sido aprovado no último dia 23 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, por 40 votos a 21, sem a escuta e a participação dos povos indígenas, dever decorrente da previsão do artigo 6º, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Portanto, de início se percebe vício procedimental que tem o condão de anular esse processo legislativo.
No dia anterior à aprovação, os povos indígenas que se manifestavam contra o PL 490/2007 em frente ao anexo 2 da Câmara dos Deputados foram duramente reprimidos por uma truculenta ação policial, que deixou <a href="https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/06/24/indigenas-feridos-protesto-camara-dos-deputados-brasilia.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">pelo menos 13 indígenas feridos ou passando mal</a> em decorrência do gás lacrimogênio e do spray de pimenta – dois deles chegaram a ser hospitalizados.
“Queremos a demarcação de nossas terras e queremos que sejam respeitados os artigos 231 e 232 da Constituição brasileira. Nesses 15 dias em que estivemos aqui, dançamos, cantamos, com nossos arcos e flechas, e nunca desafiamos os policiais. Fizemos nosso movimento pacífico. Mas ontem acredito que eles fizeram um teatro aqui na frente. O presidente [Arthur] Lira, junto com a presidente da CCJC, precisava mudar a opinião pública e virar ela contra nós, povos indígenas”, discursou Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma das lideranças do acampamento Levante Pela Terra, em frente ao Anexo 2 da Câmara, no dia em que o PL 490 foi aprovado na Comissão.
Vale ressaltar que a CCJC possui como atribuição o controle de constitucionalidade das propostas legislativas e a manifestação sobre matérias constitucionais. Infelizmente, o que vimos com a aprovação do PL foi o afastamento da CCJC de sua função regimental.
Isso porque os argumentos suscitados no parecer aprovado pela Comissão, de autoria do deputado Arthur Maia (DEM-BA), afrontam a Constituição Federal – tanto no que diz respeito ao aspecto formal do PL 490, quanto à matéria propriamente dita. Configuram também um grave desrespeito às decisões do STF, ao disseminar uma narrativa extremamente equivocada em relação às decisões da Corte.
Com efeito, o principal argumento para aprovação do substitutivo e dos apensos destacados ao PL é de que o STF já teria pacificado a matéria quanto ao marco temporal, quando do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Pet. 3388/RR). Para o deputado-relator, “é imprescindível que o poder legislativo consolide o entendimento jurisprudencial do STF e da AGU/Presidência da República sobre o regime jurídico constitucional demarcatório de terras indígenas do art. 231 da CF/88 em lei ordinária, como instrumento de paz social e segurança jurídica”.
O entendimento da Advocacia Geral da União (AGU) mencionado pelo parlamentar é o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, que <a href="http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442891&amp;ori=1" target="_blank" rel="noopener noreferrer">teve seus efeitos suspensos</a> pelo ministro Edson Fachin até o julgamento final do RE 1.017.365, em razão de sua insegurança jurídica.
A decisão a ser tomada pelo STF no âmbito desse recurso vai afetar a todos os povos indígenas do país, indistintamente, dado o reconhecimento da repercussão geral da matéria (Tema 1031). Nas palavras do Supremo, trata-se da “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, nos termos do artigo 231 do texto Constitucional”. Ou seja, diferentemente do argumento sustentado para a aprovação do PL 490, o Supremo ainda não pacificou a matéria.
Além destas distorções, o relatório aprovado na CCJC da Câmara traz uma série de outros ataques aos direitos constitucionais indígenas <a href="https://cimi.org.br/2021/05/pl-490-ataca-direitos-territoriais-indigenas-inconstitucional-analisa-assessoria-juridica-cimi/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">que analisamos mais detidamente em uma nota técnica</a>, como a previsão de flexibilizar o usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios, garantido na Constituição, e um vício formal, ao buscar alterar dispositivos constitucionais por meio de uma lei ordinária.
Mesmo cientes do julgamento do caso pelo STF e dos pedidos dos povos indígenas para que fosse retirado de pauta o projeto de lei, para aguardar a Corte definir sobre o alcance do artigo 231 da Constituição, parlamentares da bancada ruralista e governistas levaram a cabo a apreciação do PL na Comissão de maior envergadura na Câmara dos Deputados. A proposta foi aprovada e, após a apreciação dos destaques, deve seguir para votação do Plenário da Câmara.
Contudo, a mais alta Corte do país terá de dar a última palavra no dia 30 de junho do corrente ano, não apenas para definir o entendimento sobre ocupação tradicional indígena e a sua abrangência, mas também para impedir o equívoco e o retrocesso legislativo, elevados na promessa de legalização da invasão e do esbulho em terras do indigenato.
Os indígenas dizem confiar no Supremo, tanto para a garantia do futuro das demarcações, como para não permitir retrocessos legislativos em matéria de direitos fundamentais.
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JOTA

Projeto aprovado na CCJC da Câmara traz mais uma tentativa legislativa de fixar uma tese antes do Supremo

PL 490: ataque aos direitos indígenas e distorção das decisões do STF

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