Pedro Dalese

A quimera,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> oriunda da mitologia grega, une partes de animais diversos, como leão, cabra e serpente. Modernamente, o termo "quimera" descreve algo imaginário e utópico. Quando relacionado à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">inteligência artificial</a> (IA), refere-se a tarefas consideradas inalcançáveis pelos seres humanos. No contexto de avanços tecnológicos, o conceito de "quimera" une mitologia e IA, desafiando fronteiras humanas.
A IA tem se revelado uma ferramenta capaz de concretizar anseios e possibilidades outrora impensáveis, como bem expressa a célebre frase "As visões mais lindas tive, de quimeras mil, um castelo ergui".<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> No contexto atual da IA, são viabilizados cenários quase fantásticos, como demonstrado pela notável campanha da Volkswagen que reuniu a saudosa cantora Elis Regina e sua filha, Maria Rita, em uma emocionante celebração do septuagésimo aniversário da empresa no Brasil.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Por meio da inteligência artificial, a fusão dessas personalidades icônicas exemplifica a capacidade de criar experiências únicas e emocionais. Esse uso inovador da tecnologia destaca sua habilidade em conectar o passado e o presente, encantando o público e demonstrando o poder criativo da IA.
Entretanto, o uso da tecnologia para recriar imagens de indivíduos falecidos também suscita emoções e ansiedades intensas,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> conforme expresso na tocante passagem da música Fascinação: “E no teu olhar, tonto de emoção, com sofreguidão, mil venturas previ”. O uso sensível da IA, como na campanha da Volkswagen, requer reflexões éticas para preservar valores humanos e respeito aos falecidos, evitando abusos e dilemas emocionais.
Contudo, a ausência de uma regulamentação específica sobre o uso de imagens e informações pessoais post-mortem<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> por sistemas de IA levanta questionamentos sobre a autorização e o alcance desse uso.
Embora haja contestação quanto ao seu potencial,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> com destaque para suas limitadas habilidades de raciocínio e afirmações de que a IA generativa pode comprometer nossas buscas científicas e princípios morais ao integrar uma compreensão fundamentalmente errônea da linguagem e do conhecimento,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> e mesmo havendo movimentos sociais favoráveis à interrupção de certos experimentos em IA,<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> expoentes da tecnologia, como Bill Gates, defendem a promessa dessa tecnologia e afirmam que a era da IA já está em andamento com o surgimento de ferramentas de IA generativa.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Até que medida é admissível "ressuscitar" digitalmente uma pessoa falecida sem a sua anuência ou a autorização de seus familiares? Em qual instante a imagem de um indivíduo falecido passa a ser considerada de domínio público?
A campanha publicitária da Volkswagen, que utilizou IA para "reviver" Elis Regina, gerou reclamações ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/Conar">Conar</a>.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> As queixas destacam a necessidade de analisar a ética subjacente ao uso da inteligência artificial para recriar a aparência de pessoas falecidas e as potenciais repercussões na percepção da realidade por parte de crianças e adolescentes.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
A IA generativa pode ser aplicada em várias áreas, incluindo a publicidade, remodelando os métodos de atenção e persuasão do consumidor. Porém, é essencial abordá-la com cautela para evitar manipulações e confusões entre realidade e virtualidade.
Nesse contexto, destaca-se o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158816">PL 3592/2023</a>,<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> protocolado no Senado no último dia 19 de julho, composto por nove artigos, que visa estabelecer diretrizes para o uso da IA generativa e proteger os interesses dos falecidos e seus familiares, preservando sua memória e dignidade.
A atenta apreciação do referido Projeto de Lei revela a preocupação em estabelecer, de forma clara, os termos empregados, a exemplo de "imagem de pessoa falecida",<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> "áudio de pessoa falecida"<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> e "inteligência artificial",<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> dispostos no artigo 1º.
O artigo 2º destaca a exigência do consentimento prévio da pessoa em vida ou, na falta dela, dos familiares próximos, para usar sua imagem por IA, respeitando a dignidade e privacidade do indivíduo após seu falecimento.
O reconhecimento dos direitos dos herdeiros, estabelecido no artigo 3º, assume papel essencial na salvaguarda da memória e da imagem do falecido. Conferir-lhes o poder de gerir a utilização de imagem e áudio, inclusive recusá-la, reforça o respeito ao princípio da sucessão hereditária e à proteção familiar.
O artigo 4º, em seu teor, estabelece que o uso comercial da imagem e áudio do falecido por meio de IA requer autorização expressa dos herdeiros ou da própria pessoa em vida. Por outro viés, para propósitos legais, a autorização das autoridades competentes é exigida, respeitando a legislação vigente.
Outro ponto relevante é a previsão contida no artigo 5º, que estabelece que, caso o falecido tenha manifestado em vida sua vontade de proibir o uso de sua imagem após o falecimento, essa vontade deve ser respeitada. Essa disposição assegura o direito à autonomia e à liberdade individual mesmo após o óbito, conferindo proteção à integridade moral e à identidade do indivíduo.
No contexto do princípio da boa-fé<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a> e dos deveres de informação nas relações consumeristas, a obrigatoriedade de informar, de forma clara e destacada, sobre o uso de IA em peças publicitárias (art. 7º) assume relevância no uso da tecnologia tanto na oferta como na recomendação de produtos e serviços adequados às necessidades do usuário.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>
Diante desse panorama, o PL 3592 se junta aos esforços do <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233">PL 2338/2023</a>,<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a> que tem por objetivo estabelecer o marco legal da inteligência artificial.
Conforme o estado da arte continua a avançar em IA e áreas relacionadas, estamos gradual, mas seguramente, entrando em uma era de autoria digital, na qual programas de software passarão a produzir e criar obras indistinguíveis das de autoria humana.<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a> O PL 3592 sinaliza um caminho promissor para equilibrar avanços tecnológicos e proteção dos direitos de personalidade post-mortem.
Nesse sentido, como bem expresso no verso da música "Aprendendo a Jogar," de Guilherme Arantes, brilhantemente interpretada por Elis, "Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar," é imprescindível aprender com as experiências, reais ou “ilusórias”, adaptar-se e buscar aprimorar as práticas no uso da tecnologia, visando salvaguardar a dignidade, a privacidade e os direitos dos indivíduos mesmo após o falecimento.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> WIKIPEDIA. Quimera. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quimera. Acesso em: 24 jul. 2023
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MARCHETTI, Fermo Dante; LOUZADA, Armando (Versão). Fascinação (Fascination). In: REGINA, Elis. Falso Brilhante. Phonogram. LP. Faixa 5.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Volkswagen do Brasil. VW 70 anos | Gerações | VW Brasil. Youtube, 3 jul. de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aMl54-kqphE. Acesso em: 22 jul. 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SILVA, Gabriel de Britto. Elis Regina, IA e o limite do uso da imagem dos falecidos. Emoção que vem na mesma proporção do desconforto. JOTA, 06 jul. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/elis-regina-ia-e-o-limite-do-uso-da-imagem-dos-falecidos-06072023. Acesso em: 22 jul. 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> LEAL, Lívia. Proteção post mortem dos dados pessoais? Uma lacuna que ainda permanece diz respeito à tutela jurídica dos dados em caso de falecimento do usuário. JOTA, 12 jan. 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/protecao-post-mortem-dos-dados-pessoais-12012019. Acesso em: 22 jul. 2023
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> FLORIDI, Luciano. AI as Agency without Intelligence: On ChatGPT, large language models, and other generative models. Philosophy &amp; Technology, v. 36, n. 1, p. 1-7, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s13347-023-00621-y. Acesso em: 22 jul. 2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CHOMSKY, Noam; ROBERTS, Ian; WATUMULL, Janhavi. The false promise of ChatGPT. New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/03/08/opinion/noam-chomsky-chatgpt-ai.html. Acesso em: 22 jul. 2023.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> FOL Open Letters. Pause giant AI experiments: An open letter. Future of Life Institution. Disponível em: https://futureoflife.org/open-letter/pause-giant-ai-experiments/. Acesso em: 22 jul. 2023.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Gates, B. (2023). The Age of AI has begun. Gates Notes. https://www.gatesnotes.com/The-Age-of-AIHas-Begun.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> CNN. Conar abre representação ética contra propaganda da Volkswagen com Elis Regina. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/conar-abre-representacao-etica-contra-propaganda-da-volkswagen-com-elis-regina/.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes: considerações sobre o artigo 14 da LGPD. O tratamento de dados pessoais sensíveis. In: MULHOLLAND, Caitlin (org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020, p. 171.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 3.592. 19 jul. 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158816?_gl=1*xrqnhs*_ga*MjA3NjYwNjQ0My4xNjQ4MjMyNjc2*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5MDEzMDE2OC4zMy4xLjE2OTAxMzA0ODguMC4wLjA. Acesso em: 23 jul. 2023.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Art. 1º, I: "Imagem de pessoa falecida: qualquer representação visual de uma pessoa que tenha falecido."
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Art. 1º, II: "áudio de pessoa falecida: qualquer representação sonora de uma pessoa que tenha falecido."
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Art. 1º, III: "Inteligência Artificial (IA): sistema tecnológico capaz de simular atividades inteligentes, incluindo o processamento, análise e geração de imagens e áudios."
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> JUNQUILHO, Tainá Aguiar. Inteligência Artificial no Direito: Limites Éticos. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022, p. 37.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2338. 3 mai. 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233. Acesso em: 23 jul. 2023.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> BRIDY, Annemarie. Coding Creativity: Copyright and the Artificially Intelligent Author. Stanford Technology Law Review, Vol. 5, p. 3. U. of Pittsburgh Legal Studies Research Paper No. 2011-25. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1888622. Acesso em: 22 de julho de 2023.

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JOTA

Projeto de Lei protocolado no Senado visa proteger interesses dos falecidos e seus familiares

Entre quimeras e reflexões: o PL 3592 e a IA generativa em imagens póstumas

PL 3592, protocolado no Senado, visa estabelecer diretrizes para o uso da IA generativa e proteger interesses dos falecidos e seus familiares