Caio Cesar Figueiroa
Mestrando em Direito Público pela Direito GV-SP – Advogado em Infraestrutura no Cordeiro, Lima e Advogados.
De Frank Knight (true incertainly) a Nicholas Taleb (black swan), é admirável a paixão dos economistas pela busca incessante da construção do conceito de incerteza: situação expressa por valores imensuráveis e singulares. Mas é em George Shackle[1] que o conceito dialoga de forma peculiar com a capacidade criativa dos agentes, deixando de focar no seu aspecto ontológico e sua correlação com riscos e graus de probabilidade.
O autor engrandece seus efeitos pelo viés da experiência única da inovação, incapaz de se repetir e que altera o contexto da decisão econômica original no qual se fez a escolha (unknowledge), carreando novas informações aos que precisam considerá-las em suas ações futuras.
A partir desta perspectiva, joga-se luz na incerteza como circunstância quase sempre presente nas relações dependentes de deliberações humanas. Daí que no direito a preocupação também é latente, pois como instrumento de estabilização social deve resguardar – e mais do que isso, viabilizar – as relações econômicas. É o caso da Lei Geral de Concessões, datada de 1995, e que já passou por diversas atualizações.
Apesar dos seus 25 anos, e de todo conhecimento consolidado desde sua edição, é corriqueira a superveniência de temas que reascendem discussões em torno das concessões comuns (vide a recente decisão do STJ acerca da encampação da Linha Amarela). E, sinceramente, não há análise suficientemente extensa que consiga criar “verdades absolutas” sobre uma legislação tão complexa quanto essa, pois as incertezas estão exatamente aí para desafiar o direito posto.
Quando se fala em prorrogação de contratos de concessão parece que estamos diante de uma dessas “verdades absolutas”. É que não raro o instituto das prorrogações ordinárias é taxado como a opção esquizofrênica da Administração. De fato, a alternativa pela renovação de contratos de longo prazo é discricionária; o que não quer dizer impossível ou ilegal. E aí vem a criatividade – do legislador – forçando a crença de que, para o repasse de auxílio emergencial da União aos Estados, Distrito Federal e Municípios para resguardar e reequilibrar os contratos de transporte coletivo, deve-se proibir a prorrogação das concessões.
Esse é o conteúdo da redação atual do Projeto de Lei nº 3.364/2020, recentemente aprovado na Câmara dos Deputados, mais especificamente em 26/08/2020, e que desde então aguarda votação do plenário do Senado Federal. Como se sabe, o PL tem por objeto o socorro emergencial da União por meio do repasse de R$ 4 bilhões ao setor de transporte público de passageiros.
Diante dos sérios riscos de precarização ou até mesmo interrupção dos serviços em virtude dos fortes prejuízos financeiros causados pela queda de arrecadação durante a pandemia, o repasse é fundamental para contribuir com a manutenção das operações de transporte, cujo déficit já soma valores muito mais altos que o próprio socorro. Somente até junho, a Associação Nacional de Transportes Urbanos (NTU) apontou déficit de R$ 3,7 bilhões, estimando que, até o final do ano, chegará a R$ 8.8 bilhões.[2]
Para se beneficiar do repasse, os entes interessados deverão assinar Termo de Adesão com a União e obedecer a uma série de requisitos, tal como o compromisso de revisão dos contratos até 31 de dezembro de 2021. Contudo, o que causa espécie são as condições impostas à revisão, mais especificamente a “impossibilidade de prorrogação contratual após o seu fim ordinário” (art. 2º, VIII) e a seletividade dos contratos aptos à revisão nos termos da norma, restringindo-os ao prazo de vigência contratual “superior a 15 (quinze) anos a partir de sua celebração” (art. 2º, §1º).
Em primeiro lugar, ao vedar as prorrogações contratuais – o que já é bastante questionável ante a pretensão de viabilizar um auxílio emergencial ao transporte coletivo – a União está legislando sobre serviços que não são de sua titularidade, usurpando a competência dos Estados e Municípios. Mais do que isso, ao admitir tal vedação como condição ao recebimento dos recursos, infere-se nova situação de incerteza sobre os pactos concessórios: a alteração unilateral e indireta de diversos contratos de concessão que admitem a prorrogação (ainda que apenas como medida de reequilíbrio), refletindo, portanto, clara afronta ao ato jurídico perfeito (art. 6º, caput e §1º da LINDB).
Em segundo lugar, é difícil apurar as razões pelas quais o Legislativo condicionou a revisão dos contratos a vedação da prorrogação. São instrumentos completamente distintos, cada qual com sua finalidade: a revisão, de caráter procedimental, como mecanismo à aferição e recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, e a prorrogação para renovação da relação jurídica, mantendo o serviço público nas mãos do mesmo concessionário, após a análise de sua vantajosidade e conveniência pelo poder concedente.[3]
Ainda, a vedação à prorrogação, na atual redação do PL, pode levar a uma errônea e ainda bastante comum equiparação da prorrogação ordinária com a extensão do prazo como instrumento para reequilíbrio econômico-financeiro, sobretudo pelo fato do PL não conter previsão expressa do uso deste mecanismo. Sequer é possível extrair se o PL teve a mesma preocupação do Projeto de Lei nº 2.139/2020, de autoria do Senador Antônio Anastasia, ao distinguir claramente os institutos.[4]
A importância do reconhecimento da extensão do prazo contratual como instrumento de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato se destaca por ser, em muitas ocasiões, a alternativa mais vantajosa ou, até mesmo, a única opção viável ao poder concedente, principalmente no atual contexto de pandemia, de escassez no orçamento público e de impossibilidade de onerar o usuário com o aumento da tarifa.
Em terceiro lugar, o prazo de vigência contratual de até 15 anos como condição à revisão contratual não considerou a realidade; na melhor dicção do art. 20 da LINDB, suas “consequências práticas”. Diversos contratos recentemente celebrados com vigência superior a 15 anos seriam aleijados imotivadamente do seu potencial direito à revisão, sabidamente em momento crucial à implantação de investimentos.
Sem poder se beneficiar do repasse da União, qualquer contrato que ostente tal situação permanecerá em situação de desequilíbrio econômico-financeiro pelos efeitos do fato imprevisível da pandemia, correndo o risco de descontinuidade da prestação de seus serviços. E o que é pior: esses contratos poderiam não suportar tais efeitos e sucumbir à caducidade, onerando o poder concedente com eventuais disputas judiciais acerca da famigerada indenização devida às concessionárias.
Como outra consequência, muitos Estados e Municípios de médio e grande porte que têm optado por investimentos de mobilidade intermediários seriam excluídos do auxílio, tais como o BRT, o VLT ou concessões de mobilidade que incorporam terminais, pontos de parada, entre outras infraestruturas de médica capacidade. Todos esses investimentos dependem essencialmente de prazo suficientemente extenso à amortização dos investimentos necessários à oferta desses serviços, mas estariam injustificadamente de fora da medida de socorro proposta pela União.
Ainda, um rápido levantamento das concessões de transporte coletivo das principais capitais do país é suficiente para revelar a imensa quantidade de contratos com vigência superior aos 15 anos que seriam discriminados da revisão com a atual proposição legislativa. Para se ter uma ideia, os contratos de São Paulo, uma das capitais mais afetadas pela pandemia, estão nessa lista e, consequentemente, estariam excluídos do repasse. Dada a essencialidade do serviço, impensável que tanto São Paulo como outros Municípios – que muitas vezes contam com um único contrato de transporte – sofram com uma provável interrupção dos serviços de transporte público em razão de uma mera restrição de vigência contratual.
Assim, através das breves reflexões expostas acima, nota-se que alguns ajustes no PL podem ser essenciais ao efetivo auxílio da União ao setor de transportes: (i) suprimir a impossibilidade de prorrogação contratual ante a potencial arguição de inconstitucionalidade ou, ao menos, evidenciar que esta se difere da extensão do prazo como mecanismo de reequilíbrio contratual; e (ii) ampliar o prazo condicionante à revisão contratual de 15 anos, a fim de contemplar entes e contratos que seriam injustamente prejudicados.
Desse modo, é possível conciliar a intenção legislativa de promover a continuidade dos serviços e reequilibrar os contratos no momento excepcional e imprevisível da pandemia, sem desconsiderar a realidade na qual os contratos de concessão estão inseridos. A redação atual do PL exigirá reflexão por parte do Legislativo, sem descuidar da urgência que o setor requer, para que as incertezas até então restritas aos efeitos da pandemia não incorram nas ponderações de George Shackle sobre a criatividade humana, ainda que indesejada.
O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça:
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[1] Cf, SHACKLE, George L. S. Time in economics. Amsterdam: North-Holland, 1958; SHACKLE, George L. S. Time, expectations and uncertainty in economics – Selected essays. In FORD, J. L. (ed.). Aldershot: E. Elgar, 1990.
[2] Disponível em: <https://www.ntu.org.br/novo/NoticiaCompleta.aspx?idArea=10&idNoticia=1367>. Acesso em 01/10/2020.
[3] A jurisprudência do STF é uníssona acerca da discricionariedade à prorrogação dos contratos de concessão, como na ADI 5.991. Ainda que não se sustente um direito à prorrogação, fato é que a decisão pela prorrogação restará adstrita às evidências de vantajosidade dentre outros parâmetros carreados na legislação própria ou nos contratos de concessão.
[4] Segundo a redação do PL 2.139: “Art. 6º, § 4º A extensão do prazo contratual não será considerada como prorrogação contratual, quando os estudos econômico-financeiros a apontarem como a solução mais pertinente à revisão da equação do contrato.”.