André Lucas Fernandes

O debate acerca do recém-aprovado <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340">PL 21/2020</a>, da Câmara dos Deputados, que regulamenta a Inteligência Artificial no Brasil, vem sendo colocado sob bases frágeis. A defesa expressa <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/inteligencia-artificial-responsabilidade-civil-24102021">neste texto</a> pela relatora, deputada Luiza Canziani (PTB-PR), e a representante do setor empresarial Ana Bialer, da Brasscom, merece o devido exercício de reflexão dogmática.
Os motivos elencados para a defesa do PL 21/2020 tomam como base juízos genéricos sobre responsabilidade, princípios e accountability e revela, com clareza, o motivo do projeto ser genérico e principiológico, num sentido atécnico. As autoras do texto publicado como defesa dos dispositivos postos no PL cometem equívocos histórico-conceituais flagrantes sobre a análise do regime de responsabilidade civil brasileiro.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-saude.png" width="688" height="688" /></a>
O tema não demanda, por hora, a importante discussão dos problemas de desenvolvimento “na concepçao” (by design), como os éticos, de segurança, privacidade etc. O debate deve ser jurídico.
A associação do regime de responsabilidade subjetiva a uma valoração da conduta do agente sendo, dessa forma, o regime adequado à conformação dos atores e devida accountability é falsa por alguns motivos históricos, dentre os quais:
1) A história do direito privado brasileiro revela uma modificação do conceito de responsabilidade subjetiva à objetiva, passando pela transubjetividade (que foi omitida e ignorada por alguns comentadores);
2) Não há contraposição entre responsabilidade subjetiva e objetiva. Há, de fato, um processo compreensivo das limitações do "princípio da responsabilidade pela culpa", que orienta a responsabilidade subjetiva, como incapaz de tutelar lesões oriundas da inovação industrial-tecnológica da sociedade moderna (século19 em diante);
3) A afirmação de que o direito brasileiro valoriza, geralmente, a responsabilidade subjetiva é contraditória. Primeiro, a história do direito privado brasileiro comprova que a noção do Código Bevilaqua foi, gradativamente, contestada. A regra geral tornou-se uma hipótese reminiscente, ainda que se trate de lei geral. Segundo, fala-se em regra para valorizar princípios.
4) Na sociedade das tecnologias da informação, comunicação e indústria tecnológica, o consumo é massificado e impera como regra de mercancia. O regime objetivo é uma reação global do processo jurídico diante do processo econômico (tecnologia) e sua característica instabilizadora. É, efetivamente, um conflito tradição x modernidade;
5) Não é uma discussão a priori, mas situada na história dos conceitos. A atuação diligente e valorização da conduta também estão presentes na responsabilidade objetiva, pois os próprios regimes de objetivos apontam exceções legais de comportamento do dito “ofensor”.
É evidente, portanto, que há um equívoco de fundo analítico que sustenta o PL 21/2020, especialmente quando afirma que o regime objetivo força uma externalidade negativa por parte dos atores privados, com “repasse dos custos ao consumidor”.
Do ponto de vista jurídico, existem regimes de presunções correlatos ao regime de responsabilização. Entre as presunções condicionais e absolutas, existem as chamadas presunções de iure intermédias ou mistas. Pontes de Miranda diz que essas presunções mistas ocorrem quando a lei não exclui completamente prova em contrário e só a admite em condições especialíssimas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O sistema de responsabilidade evolui, historicamente, com o "empurrar" das presunções em matéria de prova para o regime absoluto. O direito brasileiro, ao desconhecer e ignorar a tríade da responsabilidade (subjetiva, objetiva e transubjetiva), reduziu o relativo ao absoluto e ignorou a intercalaridade da transubjetividade, por evidente imperícia em dominar o conceito (transubjetivo é diferente de responsabilidade indireta).
O tema tem reflexos materiais e processuais: há ou não prova liberatória na construção da responsabilidade? Essa é a pergunta para definir o limite das presunções, associado ao direito material que determina a contrariedade a direito (ilícito subjetivo, objetivo ou transubjetivo).
A responsabilidade objetiva envolve a ausência de um ato, ausência de culpa e ausência da causação inerente. Essa responsabilidade admite prova liberatória apenas de forma excepcional. A responsabilidade subjetiva envolve a existência de ato, existência de culpa e existência de causação – em nexo imediato. As provas liberatórias são clássicas deste regime.
A responsabilidade transubjetiva, por outro lado, é aquela na qual há ato, mas ausência (ou presunção) de culpa, com causalidade mediata, não se reduz, portanto, como conceito dogmático ao indireto das culpas in contrahendo, in vigilando etc.
Falar que a responsabilidade subjetiva é o regime ideal para uma economia que atinge, de forma indiscriminada e indeterminada, pessoas e relações jurídicas já existentes, como assume a motivação do PL 21/2020, é, no mínimo, frágil. A discussão sobre responsabilidade da indústria de tecnologia deve ficar no âmbito da transobjetividade.
Além disso, afirmar que a responsabilidade subjetiva existe de forma conexa com princípios é um erro de direito. É uma contradição em termos. O elogio ao regime geral, feito no PL 21/2020, faz referência a regras expressas do ordenamento e não a princípios – a responsabilidade subjetiva tem cariz de regra jurídica.
Regular de forma cautelar é regular com ampla participação de setores, com debates maduros, em oposição ao que ocorreu na aprovação apressada do PL pela Câmara dos Deputados, justo em tema tão crítico. Registre-se que a Europa está em meio aos debates regulatórios da inteligência artificial, num acúmulo que já conta alguns anos.
O direito admite tratamento granular, pois é um sistema lógico. Não se pode trazer para dentro do direito aspectos do processo político, tudo resumido na máxima “incidência é diferente de aplicação”. A crítica aos processos redutivos das categorias de presunção e responsabilização se pauta na denúncia de uma antonomásia jurídica indevida.
As presunções intermédias aparentam desaparecer como conceito, dentro das presunções absolutas (mas se são absolutas, como se justifica a existência de prova liberatória excepcional?). A falta de fundo analítico constrange o texto legal aprovado e o próprio legislativo. Sem a segurança das categorias jurídicas corretas, o que se abre é o espaço do arbítrio e da insegurança das relações entre pessoas e empresas e na própria atividade de empreendimento em tecnologias de IA.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. T. III. Borsoi: Rio de Janeiro, 1953.

PL 21/2020

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Regular de forma cautelar requer ampla participação de setores, o oposto da aprovação apressada do PL 21/2020 pela Câmara

PL da Inteligência Artificial erra ao criar regime de responsabilidade subjetiva

Regular de forma cautelar requer ampla participação de setores, em oposição ao que ocorreu na aprovação apressada do PL 21/2020 pela Câmara