Carmen Silvia Lima de Arruda

Inúmeras vezes ouvimos, nos últimos meses, comparações entre a atual pandemia da Covid-19 e o romance “A Peste”, de Albert Camus. A obra, publicada em 1947, conta a história da pequena e tranquila cidade de Oran, no norte da Argélia francesa, atingida por uma doença transmitida por ratos, infectando e matando impiedosamente seus habitantes. As semelhanças justificavam a comparação. Lá, como cá, a peste surgiu subitamente e à medida que se espalhava, providências emergenciais eram adotadas para conter a epidemia.
O medo foi dando lugar ao pânico com o alastramento da doença desconhecida que causava febre, vômitos e muito sofrimento. Enquanto as mortes se acumulavam em enterros coletivos, as equipes sanitárias se mobilizavam para dar conforto às vítimas, com tratamento paliativo diante de uma doença fatal. Medidas mais radicais restritivas das liberdades dos cidadãos foram impostas. Quarentena, confinamento e isolamento tornaram-se obrigatórios, enquanto tentativas frustradas de cura minavam a confiança da população, e instigavam os conflitos com a administração. A última esperança de Riex, médico que narrava a saga, depositava-se no descobrimento de uma vacina eficaz.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Agora, em pleno século XXI, nosso mundo é tomado pela pandemia da Covid-19, e não se trata de uma ficção, mas uma realidade concreta, um vírus que já infectou mais de 46 milhões de pessoas, causando a morte de um milhão no mundo todo, atingindo especialmente os mais vulneráveis.
Como no livro de Camus, os governos de todas as partes adotaram medidas drásticas para o enfrentando da virose que trouxe gravíssimas consequências sociais e econômicas para toda humanidade, somando esforços para a produção de vacinas, já com o potencial assombro da judicialização por critérios claros de distribuição e garantia da saúde pública.
A luta retratada por Camus, nesta obra absurdista, é em verdade, uma alegoria de uma luta contra um mal maior, “a luta da resistência europeia contra o nazismo”. O próprio autor esclarece, em carta endereçada a Roland Barthes, em 1955, que sua pretensão iria muito além de uma crônica sobre a resistência francesa contra a ocupação nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, ao descrever a reação da população unida contra o mal que os flagelava.
A conduta solidária dos cidadãos, numa verdadeira “fraternidade ativa”, enfrentando um inimigo comum, tornar-se-ia referência para “todas as resistências, contra todas as tiranias”, acreditando que “o mal que existe no mundo provem quase sempre a ignorância”.
<blockquote class="jota-article__eye">Hoje, revisitando a metáfora de Camus, impõe-se uma reflexão: seria a epidemia da Covid-19 realmente a maior ou a pior peste que assola o Brasil?</blockquote>
Reconheçamos que padecemos de um mal muito mais resistente, mais egoísta e arraigado, que ceifa direitos e vidas, suprimindo a dignidade de parte não desprezível da população brasileira: a corrupção, a malversação do dinheiro público, e a falta de integridade na gestão da coisa pública.
São estas as pragas que aprofundam o abismo da desigualdade em nossa sociedade, privando milhões de brasileiros do pleno desenvolvimento e de uma vida digna. Flagelos que subtraem da população um mínimo existencial, negando os direitos sociais consagrados há mais de 30 anos no art. 6º da Constituição, como saúde, escolaridade, alimentação, moradia e segurança.
Tal qual os ratos que invadiram Oran, a corrupção e malversação do dinheiro público se proliferam na obscuridade, num subsolo escuro, escondido de falcatruas e condutas escusas, consumindo o orçamento público, tiranizando uma sociedade de excluídos. Na luz, os ratos são capturados; e a transparência torna-se a maior arma contra a peste da corrupção.
O momento é oportuno. Às vésperas de mais uma eleição municipal, oportunidade de escolha democrática de representantes locais, justamente aqueles responsáveis pela prestação dos serviços públicos básicos e primários à população, deve-se questionar o comprometimento com a implantação dos mecanismos de transparência na administração pública, a começar pela melhoria dos portais de transparência, que devem estar atualizados, tornando acessível uma informação de qualidade, fidedigna, em tempo real, e disponibilizando equipamentos e treinamento adequados, de sorte que todos os controles, tanto internos como externos, judiciais e principalmente o controle social, possam funcionar corretamente, e garantir a participação social nas escolhas públicas.
Confiamos que em breve teremos vacina contra a Covid-19, e possamos voltar à normalidade. Que o sofrimento experimentado inspire melhores escolhas, baseadas em valores de solidariedade, fraternidade e integridade para construir um “novo normal”, com melhor distribuição de riqueza e menos desigualdade. Transparência é um requisito de boa governança e controle, e tal qual uma vacina, a transparência se impõe no combate da maior peste que tiraniza a população menos favorecida, analfabeta, doente e marginalizada, que urge pela entrega dos serviços públicos básicos, para construir um futuro melhor.
<hr />
O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=xRgH-5h1gH8&feature=emb_title

800px-The_Triumph_of_Death_by_Pieter_Bruegel_the_Elder

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Revisitando a metáfora de Camus, impõe-se uma reflexão: seria a epidemia da Covid-19 a maior ou a pior peste que assola o Brasil?

Qual a verdadeira peste?

Revisitando a metáfora de Camus, impõe-se uma reflexão: seria a epidemia da Covid-19 a maior ou a pior peste que assola o Brasil?