Bernardo Araujo

Daniella Ferrari

Ian Nunjara

Recente atualização na política global de anúncio de vagas do LinkedIn<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> envolvendo a divulgação de vagas de emprego destinadas a grupos sociais em condição de vulnerabilidade trouxe à tona questionamentos sobre a utilização de dados pessoais sensíveis no contexto das relações de trabalho. Após receber notificação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/procon-sp">Procon de São Paulo</a> e do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mpf">Ministério Público Federal</a> (MPF) devido à remoção de um anúncio de vaga de emprego direcionada preferencialmente à contratação de candidatos negros e indígenas, a rede social alterou sua política global para passar a permitir publicações que expressem preferência por profissionais de grupos sociais historicamente desfavorecidos.
O caso é representativo sobre tendência crescente e bem-vinda no mercado: observa-se um aumento do número de organizações que procuram adotar e aprimorar cada vez mais suas políticas relacionadas à diversidade para promover a inclusão étnico-racial na força de trabalho. Tais ações podem ser percebidas dentro de um contexto mais amplo de aplicação de normas internacionais sobre direitos humanos, considerando que em 2021 completaram-se 10 anos desde que dois importantes marcos de soft law impactaram de forma paradigmática a área de responsabilidade social corporativa: os “Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos” (UNGPs), aprovados por unanimidade pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2011, e a adoção do pilar da “Responsabilidade Corporativa de Respeitar os Direitos Humanos” como padrão de conduta esperada nas “Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais”.
Nesse contexto, o compartilhamento de dados pessoais quanto à origem étnica ou racial é relevante, por exemplo, para a concretização de ações inseridas no escopo da responsabilidade corporativa, como o mapeamento de indicadores de diversidade e promoção de políticas afirmativas. Dentre estes, a chamada “pesquisa de diversidade” ganha papel de destaque no ambiente corporativo, pois é um dos primeiros passos para o entendimento adequado do contexto em que as políticas serão introduzidas. Sejam as pesquisas realizadas manualmente ou com o auxílio de ferramentas tecnológicas, dirigidas a candidatos em potencial ou a empregados contratados, é imperativo que os processos de coleta e tratamento das informações estejam alinhados também com as boas práticas em matéria de privacidade e proteção de dados pessoais.
Diante desses desafios, surgem pelo menos os seguintes questionamentos: as pesquisas de diversidade são legais no ordenamento jurídico nacional? O que torna uma informação pessoal um dado sensível? Quais cuidados precisam ser observados no tratamento dessa categoria de dados? Como identificar um tratamento de informações que possa ter efeitos discriminatórios ilícitos ou abusivos?
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">Lei Geral de Proteção a Dados Pessoais</a> (LGPD — Lei n. 13.709/2018) classifica os dados sobre origem racial ou étnica na categoria de dados pessoais sensíveis (art. 5º, II), isto é, informações que requerem maior proteção devido à potencialidade de usos discriminatórios. Não obstante, o art. 11 prevê oito circunstâncias lícitas e legítimas em que é permitida a realização de atividades de tratamento envolvendo dados pessoais de natureza sensível, chamadas de bases legais de tratamento.
Cabe ao controlador, agente de tratamento que detém poder decisório sobre os dados a serem tratados, realizar a avaliação quanto ao enquadramento do caso concreto à base legal mais adequada e segura. Para que um dado pessoal possa ser coletado, armazenado e processado legalmente, deve-se considerar a finalidade específica a ser alcançada por meio do tratamento, além do contexto do caso concreto e respeito aos princípios estabelecidos na LGPD.
Observa-se que o art. 11 dispõe de uma base legal de tratamento específica à realização de estudos por órgãos de pesquisa (art. 11, “c”). No entanto, é importante considerar a natureza da organização que estará encabeçando o tratamento referente à pesquisa, lembrando que a LGPD define “órgão de pesquisa” como o órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta, ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, que inclua a pesquisa em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário. Ou seja, caso a pesquisa seja conduzida por pessoa jurídica privada com fins lucrativos, recomenda-se o amparo legal do tratamento em base legal diversa.
Embora a LGPD forneça um amplo leque de bases legais que não possuem superioridade hierárquica entre si, pode ser considerada uma boa prática, especialmente à luz da ética das pesquisas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, confiar no consentimento como base legal para o tratamento de dados para a finalidade de realização de uma pesquisa de diversidade. Isto porque, se considerarmos que a LGPD restringe o uso de certas bases legais para o tratamento de dados sensíveis, o consentimento, presente tanto no artigo 7º quanto no artigo 11, se mostra como uma hipótese autorizativa estratégica para ambos os tratamentos de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis.
Importante considerar, contudo, que se o consentimento for escolhido, a organização deverá lidar com certas particularidades desta base legal. Em resumo, deverá ter precaução com as formalidades e levar em conta (i) o contexto da relação de trabalho e/ou de emprego e a disparidade entre as partes envolvidas; (ii) o fato de que os titulares terão o direito de se opor ao tratamento e de revogar o consentimento; (iii) a existência (ou não) de dados sensíveis; (iv) o formato da coleta (“adjetivos do consentimento”) e o gerenciamento posterior dos consentimentos fornecidos pelos titulares.
Para dados sensíveis, o consentimento recebe ainda mais qualificações, devendo ser (i) livre, (ii) informado, (iii) inequívoco e dado (iv) de forma específica e (v) destacada, para (vi) finalidades específicas. De acordo com o regulador do Reino Unido, a Information Commissioner’s Office (ICO), o “consentimento explícito” (denominação do GDPR) não é muito diferente do consentimento “normal”. Ele deve ser expressamente confirmado em palavras, e não por qualquer outra ação positiva. Assim, se a organização for confiar nesta base, é recomendável estudar as boas práticas de obtenção de consentimento contidas nas orientações dos reguladores — inclusive as autoridades de proteção de dados estrangeiras, na ausência de diretrizes da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anpd">Autoridade Nacional de Proteção de Dados</a> (ANPD).
Para coletar o consentimento, recomenda-se fornecer um meio para que os participantes, ou seja, o público interno de uma organização, deem consentimento para o processamento de suas informações. Isto pode ocorrer, por exemplo, por meio de caixas para que haja marcação digital (check boxes) em ambientes corporativos digitais (ex.: redes internas) ou em caixas para serem marcadas em um formulário de papel, preferencialmente com a assinatura do colaborador. Importa lembrar que essas caixas não podem estar pré-preenchidas como “aceito”. Para o escopo de coletas de dados como aquela realizada para pesquisas de diversidade — que muitas vezes antecedem ações afirmativas — não é válido o consentimento passivo, no qual se presume que uma pessoa tenha dado consentimento.
De mais a mais, é fundamental destacar que, no contexto de uma relação de trabalho, o consentimento obtido do empregado raramente se mostra livre (e, portanto, válido), devido ao desequilíbrio de poder e subordinação entre as partes. Por esta razão, uma análise detalhada deve ser realizada antes de sua eventual aplicação. Como boa prática, recomenda-se que as partes concordem e declarem estar cientes de que os dados pessoais sensíveis tratados para os fins de pesquisa de diversidade não podem, salvo poucas exceções, ser considerados indispensáveis para o cumprimento do contrato de trabalho.
Desse modo, o termo de consentimento para a finalidade específica da pesquisa de diversidade guardaria caráter opcional, devendo ser ressaltado que o consentimento pretendido será colhido de modo voluntário, informado, inequívoco, específico, sem qualquer imposição por parte da empresa, tampouco penalização em caso de negativa. Para que não restem dúvidas, o referido termo deverá dispor, no mínimo, sobre os dados coletados, finalidades, a forma de sua utilização e os procedimentos apropriados para o exercício dos direitos, inclusive, o direito de não fornecer o consentimento, sendo de bom tom informar tanto dos riscos quanto dos benefícios envolvidos na participação da pesquisa, assim como informações de contatos relevantes, como responsáveis pelo projeto, encarregado de dados e gestores de recursos humanos.
Por todo o exposto, desvela-se ser possível a realização de pesquisas de diversidade, bem como a estruturação de ações afirmativas que partam de investigações sobre o contexto de condições de vulnerabilidade de público interno de organizações. Enquanto se defende que a LGPD não seja interpretada como um obstáculo, reforça-se, contudo, que uma série de medidas devem ser adotadas a fim de respaldar as ações da organização. A proteção dos dados sensíveis é especialmente relevante para a garantia dos direitos e liberdades fundamentais, devendo ser tutelados de forma mais específica e cuidadosa, em razão da qualidade e da natureza das informações expostas.
A depender do timing, estratégia e da concretude dos programas de responsabilidade corporativa e de governança em privacidade e proteção de dados de determinada organização, é aconselhável a implementação da pesquisa de diversidade quando houver entendimento completo sobre o cenário das pesquisas, finalidades buscadas e metodologias empregadas. Além disso, considerando a provável amplitude das iniciativas afirmativas, pode ser recomendável contar com a participação de grupos diversos na própria concepção dos projetos de diversidade e inclusão, especialmente, partes interessadas dos departamentos de recursos humanos, jurídico, segurança da informação, grupo de privacidade e encarregado de dados. Finalmente, sugere-se que sejam mapeados todos os riscos envolvidos e que as medidas adotadas sejam documentadas, tanto para fins de registro e transparência quanto para a eventual realização de avaliações de impacto quanto ao tratamento dos dados sensíveis.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Em 29 de março de 2022 o LinkedIn publicou o seguinte: “Atualizamos nossa política global de anúncios de vagas para permitir a divulgação de publicações que expressem preferência por profissionais de grupos historicamente desfavorecidos na contratação em países onde esta prática é considerada legal. No Brasil, agora são permitidas vagas afirmativas, inclusive para pessoas negras e indígenas. Agradecemos o feedback que recebemos da nossa comunidade no Brasil. Fazer a coisa certa é importante e estamos comprometidos em continuar aprendendo e melhorando.”. Disponível em: <a href="https://news.linkedin.com/2022/march/politica-global-de-anuncio-de-vagas">https://news.linkedin.com/2022/march/politica-global-de-anuncio-de-vagas</a>. Acesso em 05.05.2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> No ordenamento brasileiro, mesmo antes da LGPD, já há exemplos de normas que buscam garantir a proteção do participante e a ética nas pesquisas. Por exemplo, no âmbito das pesquisas em saúde envolvendo seres humanos, temos as Resoluções nº 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Estas Resoluções dispõem, em resumo, sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Nesse sentido, o convidado a participar deve se manifestar de forma autônoma, consciente, livre e esclarecida por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que deve ser elaborado pelo pesquisador responsável em linguagem acessível à compreensão do participante da pesquisa.

dados e pesquisa

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Quais cuidados precisam ser observados no tratamento dessa categoria de dados?

Pesquisas de diversidade, políticas afirmativas e proteção de dados sensíveis

Quais cuidados precisam ser observados no tratamento dessa categoria de dados? Clique aqui para descobrir.