Vitor Monacelli Fachinetti

Aline Fuke Fachinetti

Lembram-se do filme <a href="https://personaunesp.com.br/minority-report-20-anos/">Minority Report: A Nova Lei</a>, em que a polícia tem a capacidade de prever crimes antes mesmo de acontecerem? A ficção científica de Steven Spielberg, lançada lá em 2002 – ou seja, há mais de 20 anos – mostra um “futuro utópico” no qual a tecnologia é usada para prevenir crimes antes que sejam cometidos. No entanto, essa narrativa cinematográfica deixou de ser mera ficção, levantando uma série de questões éticas e legais que efetivamente passaram a permear a sociedade atual, em que a coleta e análise de dados desempenham um papel crucial na persecução penal e a tecnologia evoluiu a ponto de permitir inferências ou coletas de dados que apoiam nas tomadas de decisões em todas as esferas.
A busca por justiça e a manutenção da ordem são fundamentais para o funcionamento de qualquer sociedade democrática. No entanto, na era digital, o equilíbrio entre a persecução penal eficaz e a proteção da privacidade dos indivíduos tornou-se cada vez mais delicado.
A expansão tecnológica e a inovação, incluindo o uso de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">inteligência artificial</a> e o cruzamento de bases de dados e o que chamamos de big data, têm proporcionado meios diversos para a coleta e análise de dados, o que pode ser extremamente útil para as autoridades na investigação e prevenção de crimes. No entanto, evidentemente, tais atividades também acabam por levantar questões sérias sobre a privacidade dos indivíduos e os limites legais – e, também, éticos – para sua exploração. Ou seja, quando se trata da esfera de autonomia, privacidade e liberdade do indivíduo, crucial para a preservação de sua dignidade, se torna necessário estabelecer limites sobre a coleta, tratamento e compartilhamento de seus dados.
Todo este contexto traz uma pergunta crucial: podem a privacidade, a proteção de dados, os direitos humanos fundamentais e o uso de tecnologia na segurança pública coexistir de maneira adequada na era digital, sem ferir ou inviabilizar um ao outro?
Ora, a expansão crescente das tecnologias digitais transformou profundamente a sociedade do século 21, tornando a privacidade e proteção de dados pessoais uma questão imprescindível e levando à sua regulamentação em muitos ordenamentos jurídicos. No entanto, no Brasil, enquanto a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm">Lei Geral de Proteção de Dados</a> (LGPD) estabeleceu um marco legal para procedimentalizar a proteção de dados no país de forma abrangente e transversal, ela ainda traz uma exceção explícita: não se aplica ao tratamento de dados realizado para fins exclusivos de investigações criminais e segurança pública.
Estamos em um momento crítico, em que a falta de regulamentação está deixando os cidadãos vulneráveis a abusos, além de criar possíveis obstáculos para a cooperação internacional na investigação e prevenção de crimes transnacionais. Em investigações criminais que envolvem meios tecnológicos, as autoridades muitas vezes atuam sem uma base legal clara, correndo o risco de que as provas coletadas sejam anuladas pelo Judiciário. Isso deixa os próprios cidadãos desprotegidos e suscetíveis a abusos, já que não há normas claras sobre como ou por quanto tempo os dados pessoais devem ser armazenados pelas autoridades.
Além disso, a falta de regulamentação gera debates intensos sobre o uso de ferramentas tecnológicas para a prevenção de crimes, como o <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-tecnologia-de-reconhecimento-facial-aplicada-a-seguranca-publica-23072019">reconhecimento facial</a>, que é atualmente empregado em locais públicos ou de grande tráfego de pessoas.
Embora essas ferramentas possam ser importantes para a prevenção e investigação de crimes, sua utilização indiscriminada pode levar a violações de direitos humanos: uma “faca de dois gumes”. Além disso, existe o risco de que essas tecnologias possam ser <a href="https://www.jota.info/justica/stj-absolve-homem-negro-que-foi-condenado-com-base-so-em-reconhecimento-facial-11052023">utilizadas de maneira discriminatória</a>, reforçando preconceitos existentes e contribuindo para a perpetuação ou reforço da marginalização de grupos minorizados, por exemplo.
Diante disso, pensar na coexistência (ou até na promoção) da segurança pública e direitos humanos fundamentais, incluindo a privacidade e proteção de dados, na era digital, torna necessário um equilíbrio cuidadoso entre garantir a segurança pública e proteger os direitos fundamentais dos indivíduos, exigindo uma regulamentação robusta e bem pensada que leve em consideração todas as nuances da era digital em que vivemos e também dos vieses existentes nas próprias bases de dados e nas aplicações de tecnologia.
Nesse sentido, nos parece fundamental aprofundar a discussão sobre a necessidade de uma regulamentação específica para o tratamento de dados pessoais no contexto penal, tal como a proposta apelidada de “<a href="https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/6797">LGPD Penal</a>”. Esta legislação envolveria a criação de normas específicas para o tratamento de dados pessoais nas atividades de prevenção e repressão a crimes, que sejam flexíveis o suficiente para se adaptar às inovações futuras, promovendo, ao mesmo tempo, a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos durante essas atividades. Ainda, a legislação poderia ajudar a resolver os desafios atuais ao estabelecer limites mais claros para a coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais pelas autoridades, bem como ao definir procedimentos adequados para a cooperação internacional em investigações criminais.
Estamos navegando em águas turvas. Cada decisão tomada (ou não tomada) no campo regulatório pode ter repercussões significativas tanto para a segurança pública quanto para os direitos fundamentais. Portanto, enfrentar o desafio de compatibilizar essas diferentes questões requer uma abordagem cuidadosa e equilibrada.
Encontrar o equilíbrio adequado entre essas necessidades, tanto coletivas quanto individuais, tem se mostrado uma tarefa cada vez mais complexa, porém urgente e inadiável. Assim, torcemos para que o filme Minority Report transcenda seu papel como mera ficção científica de uma tarde de domingo para funcionar também como um lembrete importante: na era digital, é imperativo equilibrar o uso da tecnologia para proteger a sociedade com a necessidade de preservar os direitos fundamentais dos indivíduos nela inseridos.

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JOTA

Privacidade, direitos humanos e uso de tecnologia na segurança pública podem coexistir?

Persecução penal na era digital

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