Vladimir Aras

O STF concluiu ontem (17/fev) um julgamento importantíssimo. Ao apreciar o HC 126.292, a Suprema Corte voltou a autorizar a execução da sentença penal condenatória após o duplo grau de jurisdição, a chamada execução penal "provisória".
Por 7 votos a 4, o STF derrubou o precedente firmado há sete anos, em fevereiro de 2009, no julgamento do HC 84.078/MG. Votaram pela nova orientação os ministros Luís Fux, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Dias Tóffoli, Teori Zavascki, Luiz Edson Fachin e Gilmar Mendes. Rosa Weber votou contra a mudança do paradigma. Os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski juntaram-se a ela.
Foi uma surpresa? Não. Como mais de uma vez escrevi no meu Blog ("Ainda sobre a execução penal provisória" e "História sem fim"), a tese que ora se firmou já vinha sendo debatida e considerada pelos próprios ministros do STF, pelo menos desde 2011, quando o então ministro César Peluso idealizou a chamada Proposta de Emenda Constitucional dos Recursos (PEC 15/2011), apresentada pelo senador Ricardo Ferraço. A fragilidade do precedente era tamanha que, depois disso, em mais de uma oportunidade, os ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso deram mostras de que a Corte viraria sua jurisprudência. Foi o que expliquei nos textos acima linkados.
Ontem, demos mais um passo para que o o sistema processual penal passe a funcionar no Brasil e deixe de ser um instrumento para "garantia de impunidade". Não caiamos em histeria. Não estamos a caminho de uma ditadura fascista. O que se deve garantir é o devido processo legal, com acusador independente, juiz imparcial, provas lícitas, assistência de advogado, contraditório, direito ao silêncio e direito de reexame judicial. Não há, como muitos parecem pensar, direito a recursos sem fim, que se inspiram na lei vigente para aspirar a prescrição.
Com a nova orientação do STF, o direito ao duplo grau de jurisdição segue intocado, como garantia fundamental que é. A derrubada do leading case de 2009 eliminará o estímulo disfuncional até agora presente, que incentivava o abuso do direito de recorrer, em busca da prescrição, mediante incursões sem fim e sem razão no STJ e no STF.
Réus condenados por crimes graves em duas ou três instâncias poderão (poderão, repito) ser levados ao cumprimento da pena aplicada, no devido processo legal. E as vítimas poderão buscar as reparações devidas.
O julgado também terá impacto sobre a recuperação e a repatriação de ativos. O Brasil tem 230 milhões de dólares bloqueados no exterior, só em ações penais promovidas pelo MPF. Tais valores não voltam ao Brasil por causa da falta de trânsito em julgado no STJ ou no STF, mesmo após confirmação das condenações no duplo grau. Com as certidões de trânsito a partir dos TRFs ou dos Tribunais de Justiça, será possível recolher os valores bloqueados - em alguns casos há mais de uma década - e depositá-los em conta do Tesouro Nacional.
Embora haja uma natural reação de advogados e de parte da academia, estou seguro de que não rompemos com a ordem constitucional vigente nem nos divorciamos do regime de garantias convencionais, inseridas no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) ou na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).
Basta um fato: a garantia do duplo grau de jurisdição permanece íntegra. E assim deve ser. No HC 126.292, juízes constitucionais insuspeitos por sua posição garantista e liberal formaram a maioria.
Se olharmos para o direito espanhol, por exemplo, veremos com clareza a diferença entre trânsito em julgado nas instâncias ordinárias (isto é o que a nossa Constituição exige e o que impõem as convenções de DDHH) e trânsito em julgado em instâncias extraordinárias. Refiro-me ao artigo 245, n. 3, da Ley Orgánica do Poder Judicial.
Tenho em conta também o artigo 2º do Protocolo 7 à Convenção Europeia de DDHH, que institui o duplo grau como garantia e serve de modelo para interpretarmos o direito que foi edificado ao longo dos séculos naquele continente e transplantado para o Brasil.
No nosso ordenamento, refiro-me ainda o artigo 1º, n. 3, da Convenção de Manágua (Decreto 5916/2006), assim como ao artigo 8º do Pacto de San José, que assegura que  "Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa".
Esses textos permitem entender o que vem a ser "condenação definitiva", após o devido processo legal, e que, de fato e de direito, a presunção de inocência se desfaz nas instâncias ordinárias, após a confirmação de uma condenação por órgão judicial colegiado superior.
Por isso, calma e reflexão. O que vimos foi a crônica de uma mudança anunciada. De 1988 a 2009, valeu entre nós a regra da execução da sentença penal condenatória após o duplo grau. A regra do efeito limitado (apenas devolutivo) do recurso extraordinário foi insculpida no nosso direito vigente em 1942 (CPP) e repetida na Lei 8.038/1990. Em 5/fev/2009, deu-se a releitura deste tema pelo STF, por maioria (7x4). Sete anos depois, o STF reviu seu julgado, com o mesmo placar, mas em sentido inverso.
No regime constitucional atual, uma democracia, vivemos mais tempo (mais de 20 anos) sob a regra reinstituída ontem do que sob o precedente do HC 84.078/MG (7 anos).
Não vejo motivo para pânico. O direito ao duplo grau permanece até o reexame em segundo grau. O habeas corpus e o recurso ordinário em HC continuarão servindo para abater decisões prisionais ilegais ou teratológicas.
Por outro lado, centenas de milhares de vítimas terão seu dia de justiça nas cortes do País. O sistema de garantias numa democracia também se destina a protegê-las

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JOTA

Não rompemos com a ordem constitucional vigente nem nos divorciamos do regime de garantias convencionais

Pelo MP - Equilíbrio de garantias

Não rompemos com a ordem constitucional vigente nem nos divorciamos do regime de garantias convencionais