Clarice Calixto

A era da advocacia pública varejista precisa acabar de vez. A advocacia pública precisa se especializar, e muito. Embora este Observatório tenha bastante vocação para altos debates teóricos, vejam só, um Observatório da nobre Advocacia Pública brasileira, o recado deste texto é sobre esse tema bem concreto, que está <a href="https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-26-de-14-de-outubro-de-2020-282696474#:~:text=compet%C3%AAncia%20entre%20eles.-,Art.,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico." target="_blank" rel="noopener noreferrer">na agenda</a> de transformações vivenciadas por nossas instituições. O tema tem avançado bastante nos últimos anos, em um contexto de desterritorialização da atuação, ou seja, em que pessoas de diferentes cidades (e até mesmo estados, no caso da advocacia pública federal) podem compor uma mesma equipe, focada em determinado assunto, tipo de política pública, área do Direito, etc.
Trazer esse debate faz sentido. E desconfio que fui convidada para o Conselho Editorial aqui do Observatório pra trazer prosa de chão de repartição mesmo. Há uns 15 anos teimo em descascar abacaxi feio na administração púbica, escarafunchando assuntos prosaicos. Neste momento em que a atuação próxima do finalístico anda especialmente sem sabor (na verdade, anda amarga mesmo, pra falar bem pouco), ando obcecada por buscar atalho no labirinto burocrático: redesenho organizacional e estratégias de melhoria de processos de trabalho.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
A advocacia pública federal tem mais de 7 mil profissionais atuando em atividades consultivas e contenciosas, envolvendo órgãos e entidades públicas da administração direta e indireta. Uma parte deles (cada vez menor, ainda bem) atua com temáticas variadas. Imagine-se a bizarra situação, até poucos meses atrás bastante comum, de que em um dia rotineiro de trabalho um advogado público faça uma defesa em ação penal pela manhã e uma apelação em assunto cível bem específico, à tarde. Entre o café com leite e o jantar, o destino de algumas dezenas de milhões de reais de recursos públicos (pra tratar de uma ordem de grandeza bem comum na esfera federal) fica a depender de uma capacidade improvável de um profissional dominar duas áreas do direito que caminham em sentidos absolutamente diferentes há algumas centenas de anos. Ainda que com excelente formação e remuneração, me parece óbvio que esse sujeito não dá conta de atuar com expertise em temáticas tão distintas.
A comparação do mundo do serviço público com a iniciativa privada costuma irritar quem está dentro da administração pública, porque muitas vezes o paralelo vem atravessado, sem contexto, sem ponderação. Mas nesse caso não consigo fugir. Não consigo não pensar no absurdo que seria um escritório explicando à empresa cliente que colocará um mesmo advogado para atuar em uma causa bilionária de leilão de aeroporto esta semana e em causas milionárias sobre direitos trabalhistas na semana que vem. A advocacia privada altamente especializada está do outro lado da mesa de audiência em que nos sentamos, nas varas judiciais. Sua defesa técnica aparece nos tribunais em sustentação oral coladinha na nossa, destinada aos mesmos ouvidos cansados.
Em meados de 2018, tive o desprazer de assistir a um painel sobre “arbitragem com o Poder Público”, num congresso internacional bem chique organizado pelas maiores entidades que atuam nessa área no Brasil. Na mesa do painel, inacreditavelmente, todos os conferencistas eram advogados da iniciativa privada. Poderia ser só uma piada de mau gosto, cuja falta de graça tive que criticar quando abriram o microfone para “perguntas dos participantes”, causando um constrangimento gaguejante do presidente da mesa. Mas aquela situação ridícula era também reflexo da nossa ausência. Naquele momento, ainda não havíamos especializado, com exclusividade, a atuação da advocacia pública federal em espaços nos quais as disputas são quase sempre astronômicas. Com a <a href="https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/nucleo-especializado-em-arbitragem-da-agu-atua-em-processos-que-passam-de-r-60-bi#:~:text=A%20Advocacia%2DGeral%20da%20Uni%C3%A3o,de%20m%C3%A9rito%20favor%C3%A1vel%20%C3%A0%20Uni%C3%A3o." target="_blank" rel="noopener noreferrer">especialização</a> exclusiva, rapidamente nos mostramos capazes de <a href="https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-obtem-decisao-favoravel-sobre-concessao-do-trecho-da-br-153" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ganhar grandes brigas</a>, custando bem menos ao nosso cliente do que custa uma banca privada especializada em arbitragem, pelo que ouvimos nos corredores dos tribunais arbitrais e pelo que vimos em procedimentos em que se discutiu o absurdo pleito de reembolso pelo Poder Público de honorários contratuais ajustados pela parte contrária com grandes escritórios privados.
<blockquote class="jota-article__eye">Em um cenário em que o trabalho virtual está amplamente disseminado, com aceleração das mudanças de hábitos corporativos a partir da trágica pandemia que vivenciamos há mais de um ano, o varejo na advocacia pública não pode mais ser justificado pela necessidade de capilaridade territorial. Aprendemos a trabalhar à distância.</blockquote>
Fazemos encontros virtuais em diversos formatos: pequenos grupos de trabalho, reuniões regulares de coordenação de equipe, reuniões de diálogo com áreas técnicas assessoradas, seminários, ações de capacitação, “lives”, entre tantos outros. Temos sido “recebidos” pelos juízes em despachos por teleconferência. Temos defendido os interesses dos órgãos e entidades públicas em audiências judiciais e sessões de julgamento que nos permitem manifestações online. No futuro, nos casos em que a atividade presencial for realmente necessária, em processos relevantes, valerá a pena, tranquilamente, pagar os custos de viagem para que o melhor profissional do Brasil especializado naquela área específica esteja mobilizado, focado no sucesso judicial da União ou de uma entidade da administração federal indireta.
No caso dos municípios e estados, as condições concretas para esse salto qualitativo podem ser mais desafiadoras. Infelizmente, a ausência de dados recentes de grande escala (e o chocante desprezo “oficial” por pesquisas empíricas) prejudicam a avaliação precisa do cenário, mas o <a href="https://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/publicacoes/Biblioteca/diagnostico-advocacia.pdf/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">último grande diagnóstico realizado pelo Ministério da Justiça</a>, datado de 2011, indica que a pulverização de temas de atuação do procurador é uma triste realidade na maior parte das unidades federativas. A depender do tamanho das carreiras, da necessidade de atendimento a um público <a href="https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/04/14/em-2019-brasil-tinha-quase-40-milhoes-de-pessoas-sem-acesso-a-internet-diz-ibge.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">não conectado</a> e da (menor) disposição do Judiciário “local” de adotar práticas de trabalho online, a especialização de procuradorias estaduais e municipais pode enfrentar gargalos significativos. Nos casos em que a desterritorialização é uma estratégia essencial para a promoção da especialização, em especial nas procuradorias estaduais, a quantidade de atividades presenciais indispensáveis pode ser um dificultador para uma especialização “total”, mas não precisa ser impeditivo para que haja avanços nesse sentido.
Na advocacia pública federal, as condições estão colocadas e os avanços estão acontecendo. As carreiras atualmente têm quantitativo suficiente para que a especialização seja cada vez mais bem estruturada, em equipes desterritorializadas que concentram os profissionais com perfis adequados para cada tipo de atuação. Especialize-se por procedimento, por instância e, em especial, por temática. O funcionamento eficiente da administração pública é uma necessidade inadiável que deve ser exigida das instituições da advocacia pública, seja como assessoramento jurídico de excelência, seja como representação com elevado sucesso judicial.
O que hoje chamamos de <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/acoes-judiciais-com-perda-provavel-uniao-crescem-16102020">risco fiscal</a> não é meramente “institucional”. Em uma sociedade extremamente desigual, em que <a href="https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25700-pnad-continua-2018-10-da-populacao-concentram-43-1-da-massa-de-rendimentos-do-pais" target="_blank" rel="noopener noreferrer">um décimo da população concentra 43% da renda</a>, e com sistema tributário muito regressivo, em que <a href="https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/13/Quais-os-principais-n%C3%B3s-do-sistema-tribut%C3%A1rio-brasileiro" target="_blank" rel="noopener noreferrer">40% da carga tributária vem de impostos sobre consumo</a>, preservar recursos públicos e arrecadar créditos de grandes devedores é crucial. Não podemos perder nenhum processo judicial por falta de conhecimento aprofundado da jurisprudência do assunto. Muito menos processo bilionário, em que o valor de uma única causa é maior do que o orçamento anual de alguns Ministérios. A conta de cada derrota judicial da advocacia pública é paga pela população, proporcionalmente mais cara para os mais pobres, em especial <a href="https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&amp;id=3233" target="_blank" rel="noopener noreferrer">para as mulheres pretas pobres</a>.
Em tempo, pra não dizer que não falei de trevas, já assumo que deliberadamente deixo de tratar da atualíssima questão de especialização na defesa de autoridades pela advocacia pública. Pau que bate em Francisco desceria bem mais pesado no lombo de Chico, especialmente em tempos de democracia fragilizada, em que corre solta a criminalização de grupos políticos opositores. Então, como o buraco é bem mais embaixo, fica pra outra prosa.
Conselho Editorial:
Clarice Calixto – Doutora em Direito pela FD/UnB
Douglas Zaidan – Doutor em Direito pela FD/UnB
Gilda Diniz – Doutoranda em Direito pela FD/UFG
Renata D´Ávila – Mestra em Direito pelo CEAM/UnB
Victor Cravo – Doutor em Direito pela FD/UnB
* Os artigos publicados pelo Observatório da Advocacia Pública representam a opinião pessoal dos(as) respectivos(as) autores(as)
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