Fernando Genta
Economista-chefe da XP Asset, foi subsecretário de Políticas Macroeconômicas do Ministério da Fazenda (2016-2018)
A PEC 66/2023, originalmente concebida no Senado com o propósito de endereçar as crescentes dívidas previdenciárias dos municípios e reestruturar o pagamento de precatórios, está em vias de sofrer uma inflexão grave na Câmara dos Deputados.
Se o texto aprovado pelo Senado tem pontos contestáveis, é justo reconhecer as diversas melhoras construídas em torno de suas versões iniciais. O que emerge da Câmara, contudo, cria uma bomba-relógio fiscal cujo potencial destrutivo é muito superior aos problemas que ela tenta endereçar – os mesmos problemas já inúmeras vezes alertados quando se desidrata a segurança jurídica do país.
Como tem sido cada vez mais comum, a nova versão da PEC foi desconfigurada, sem qualquer estimativa de impacto fiscal, e caminha para rápida aprovação, sem o devido prazo para um debate público técnico e qualificado. A primeira alteração mais crítica é a redução substancial dos limites de pagamento de precatórios como percentual da Receita Corrente Líquida dos municípios endividados.
Tal alteração viria acompanhada da extensão para dez anos (o dobro do prazo aprovado no Senado) para a reavaliação se os pagamentos estariam sendo suficientes para reduzir a dívida. Como veremos mais adiante, essa combinação faz com que o pagamento anual da dívida sequer supere o montante de novos precatórios expedidos, criando o já conhecido efeito bola de neve. Ou seja, a Câmara desestabiliza a qualidade fiscal e contrata dívidas impagáveis.
Para tentar reduzir a velocidade em que a dívida entra na inevitável trajetória explosiva, a versão recente da Câmara altera o indexador utilizado na correção, com a taxa Selic sendo substituída por inflação (IPCA) acrescida de 2% ao ano. Apenas à título de comparação, o Tesouro Nacional atualmente paga IPCA + 7% ao ano na emissão de novos títulos públicos de médio e longo prazo, chegando a quase IPCA + 10% em vencimentos mais curtos.
Aqui cabe uma observação adicional: como podemos ver no gráfico abaixo, a correção de uma dívida pela regra de IPCA + 2% gera resultado quase idêntico ao uso de TR + retorno da poupança, indicador há muitos anos declarado inconstitucional pelo Supremo. A nova roupagem não muda o objetivo original e tampouco altera sua inconstitucionalidade.
O pior é que nem o forte e inconstitucional subsídio é capaz de evitar o efeito bola de neve (ou bola de dívida) criado pelo baixo limite de pagamento anual. Abaixo, avaliamos o caso real de dois municípios representativos.
O primeiro, de médio porte, encerrou 2024 com dívida de precatórios acumulada em R$ 433 milhões. Com o novo texto da Câmara, a amortização desta dívida em 2025 seria de R$ 35 milhões, equivalente a 2% de sua Receita Corrente Líquida, ao passo que a expedição de precatórios a serem pagos no ano é de R$ 47,4 milhões. Assumindo que os novos precatórios cresçam a taxas bastante moderadas, em uma década a dívida chegaria a R$ 1,47 bilhão, crescimento de 240%.
O segundo caso, de um município representativo de pequeno porte, é ainda mais dramático. Com dívida ao final de 2024 em R$ 16,2 milhões em precatórios, o pagamento anual seria de R$ 1,4 milhão (2,5% da Receita Corrente Líquida), sequer suficiente para pagar os R$ 4,4 milhões de novos precatórios expedidos. Mesmo corrigindo a dívida por IPCA + 2%, o crescimento da dívida ao longo de uma década seria de 586%.
Em resumo, o novo regime resultaria no efeito bola de neve, criando-se assim uma bomba-relógio fiscal. A origem do problema é o limite muito baixo para o pagamento da dívida, que sequer supera a expedição anual de novos precatórios e, na prática, cria anualmente uma bomba-relógio fiscal que deve explodir em pouco tempo.
Ao final de 2024, os municípios que estavam no Regime Especial tinham quase R$ 90 bilhões em dívida de precatórios. Os casos aqui ilustrados sugerem que, com o texto atual da Câmara, este montante poderia tranquilamente subir para meio trilhão de reais ao longo de uma década.
Contudo, esta não é a única bomba-relógio criada no texto, que estende essa lógica aos estados, permitindo que também posterguem indefinidamente seus pagamentos. Com juros bem abaixo do custo real de financiamento, cria-se um incentivo perverso: o gestor que não optar pelo calote técnico poderá ser acusado de má gestão dos recursos públicos.
Sendo assim, a PEC não apenas gera parcelamento sem fim dos entes em dificuldade, mas empurra quase todos os gestores públicos, mesmo aqueles que atualmente estão pagando suas obrigações em dia, para se financiarem de forma barata em cima dos detentores de precatórios.
Recapitulando, cria-se uma regra notoriamente ilegal, arbitra-se derreter o patrimônio de determinadas pessoas (sejam físicas ou jurídicas), obriga-se o gestor público a participar do calote e, por fim, camufla-se numa mecânica obscura de não pagamento.
Enquanto isso – enquanto o mercado não percebe – camadas e camadas são criadas para impedir que o recurso chegue diretamente aos legítimos titulares desse crédito, jogando no lixo e ignorando não apenas as decisões judiciais, mas também os precedentes todos da Suprema Corte. Camadas de curiosidade, dívida e inconstitucionalidade.
Considerando o tamanho da dívida de estados, atualmente em R$ 138 bilhões, o impacto total da PEC poderia superar a casa de R$ 1 trilhão, dinamitando de vez a dinâmica da dívida pública do setor público brasileiro. Quando o mercado se desse conta do impacto, teríamos muito provavelmente uma nova rodada de depreciação cambial, pressão na inflação e no Banco Central, que poderia se ver compelido a subir ainda mais a taxa de juros, atualmente em 15%.
Tudo isso em meio a todas as incertezas causadas pela ameaça de guerra político-comercial do governo Trump e todas as incertezas trazidas pela proximidade do próximo ciclo eleitoral.
Por fim, foi parcialmente acatada uma emenda que altera a contabilidade dos precatórios, onde juros e correção monetária passariam a ser classificados como “despesas financeiras”. O objetivo oculto é claro: abrir espaço artificial no teto de gastos e nas metas de resultado primário. O problema é que, na prática, essa separação é praticamente inviável operacionalmente, especialmente no caso dos RPVs, que possuem dinâmica distinta e difícil segregação.
Sendo assim, o mais provável é que a União não obtivesse qualquer alívio fiscal em 2026, o que a princípio seria um dos motivos por trás da urgência da tramitação. E, possivelmente, poderia ter que arcar no futuro com o custo desta nova bomba-relógio.