Bráulio Santiago Cerqueira

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 23/2021, apresentada em agosto pouco antes do envio ao Congresso do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022, trata da postergação do pagamento de parte dos precatórios federais, despesas resultantes de condenação judicial definitiva.
De acordo com o governo, deste ano para o próximo haverá aumento insustentável do gasto com precatórios, de R$ 54,4 bilhões para R$ 89,1 bilhões, o que, dado o teto de despesa primária, comprometerá o investimento público e a política social. O ministro da Economia chegou a afirmar que, no caso de rejeição da proposta, “vai faltar (dinheiro) para todos, inclusive para salários...e (que, assim,) vai parar Brasília<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.”
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Não é a primeira vez que ameaças como essas vêm a público, apesar de descabidas. Detentor de US$ 355 bilhões em reservas internacionais, com R$ 1,6 trilhão em caixa<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, Selic abaixo da inflação e receitas em alta<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o Governo Central pode, financeiramente, acomodar em 2022 o crescimento, não de todo inesperado, das dívidas judiciais, e ao mesmo tempo elevar/aperfeiçoar as transferências de renda aos mais vulneráveis, recuperar o investimento, e repor o poder de compra dos salários civis congelados há mais de três anos. Para tanto, não falta “dinheiro”, mas orçamento (autorização) para gastar.
É a Emenda Constitucional (EC) 95 do teto de gastos primários, uma restrição legal passível de supressão, alteração ou aperfeiçoamento, que acentua ano a ano o conflito distributivo no orçamento, pressionando por cortes nas despesas sociais, de custeio, e de investimento. Pressiona porque requer sua diminuição per capita, em % PIB e em % da receita; porque não possui cláusulas de escape; e porque, nos casos de elevação da inflação corrente (IPCA de 9,7% nos últimos 12 meses), reduz o gasto real ao corrigir o limite de despesas pela inflação passada (8,3% de correção no ano que vem).
A PEC 23/2021 combina cinco medidas para tentar resolver, sem o fazê-lo, o imbróglio orçamentário de 2022:
<ol>
<li>pagamento parcelado dos precatórios, que inclui os de maiores valores e um limite de despesas no ano equivalente a 2,6% da receita corrente líquida;</li>
<li>subcorreção dos valores parcelados pela Selic;</li>
</ol>
<ul>
<li>encontro de contas dos credores com a União impondo o uso de precatórios no pagamento da dívida ativa ou na amortização das dívidas de Estados e Municípios;</li>
</ul>
<ol>
<li>criação de um Fundo de Liquidação de Passivos da União, composto por receitas de vendas de imóveis públicos e de privatizações, para saldar antecipadamente precatórios parcelados e amortizar a dívida pública;</li>
<li>excepcionalização das regras fiscais, seja do teto de gastos, que não valerá para as despesas de pagamento antecipado dos precatórios parcelados com recursos do Fundo, seja da regra de ouro, que passa a permitir a execução de despesas correntes financiadas por operações de crédito já na proposta orçamentária.</li>
</ol>
A primeira medida, o parcelamento ano a ano, não impede a geração de bola de neve de estoque de precatórios que podem alcançar R$ 400 bilhões em 10 anos. Isto porque o valor das parcelas pressionará orçamentos futuros recolocando o problema. Mesmo a retirada do teto de gastos para as antecipações de pagamento de precatórios com recursos do Fundo proposto não garante nada, pois depende de recursos (não estimados) obtidos com vendas futuras de imóveis e do avanço das privatizações; como se o Governo Central, com mais de R$ 1,6 trilhão em caixa, receita em elevação e sem as restrições financeiras de Estados e Municípios, dependesse da venda do patrimônio público para realização de despesas quaisquer que sejam.
Importante salientar a incoerência do discurso governamental. De um lado, a regra do teto é apresentada como principal âncora fiscal do país, de outro lado, é burlado/flexibilizado com a redução forçada (parcelamento) de despesa obrigatória para acomodar outros gastos em ano eleitoral, transferindo obrigações e problemas, sem solucioná-los, para os governos seguintes.
A Ordem dos Advogados do Brasil (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">OAB</a>) tem apontado a inconstitucionalidade do parcelamento dos precatórios, considerado, por ocasião do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) das Emendas Constitucionais 30/2000 e 62/2009, incompatível com a autonomia dos Poderes, com o direito à propriedade, com a coisa julgada, com o acesso à jurisdição, dentre outros princípios.
Há casos de precatórios, inclusive de natureza alimentícia (trabalhista), cuja homologação pela Justiça se deve a acordos propostos pelo próprio Poder Executivo para que o credor, após desconto voluntário, receba os valores devidos livre de protelações. Trata-se, por vezes, de contenciosos com mais de duas décadas, com titulares em idade avançada ou mesmo falecidos representados por herdeiros. Grupos de pessoas que, com o parcelamento, são atingidas, a depender do valor a receber, pelo descumprimento de direito líquido expresso na autoridade da coisa julgada, e pelo desrespeito à Lei 14.057/2020, que disciplina os acordos da União com credores.
Se o parcelamento não garante o pagamento futuro, a correção dos valores pela Selic, ao invés do IPCA como na sistemática atual, pode levar à desvalorização real forçada da dívida judicial (no caso de Selic &lt; inflação, como ocorre hoje) ou a seu crescimento desnecessário (no caso de Selic &gt; inflação).
Outro rol de medidas, as de promoção de encontro de contas dos credores com a União, na PEC 23/2021 aparece como imposição, ferindo direitos dos devedores da Fazenda Pública ou mesmo a autonomia federativa. No caso do Fundef devido a Estados, o encontro de contas prejudica inclusive aqueles em dia com suas obrigações, além de atingir milhares de professores que deixariam de receber parte dos recursos.
Por fim, a simplificação da aprovação dos desvios em relação à regra de ouro dentro da própria proposta orçamentária, bem-vinda ao evitar paralisias desnecessárias da Administração decorrentes de eventuais atrasos do Legislativo na tramitação em separado de créditos extraordinários (hoje necessária), é inócua para os objetivos pretendidos.
Apontar os problemas da PEC 23/2021 não implica negar o acirramento, desnecessário, mas presente, do conflito distributivo no orçamento de 2022. Sua raiz, como visto, não é o salto das despesas com precatórios, muito menos a queda de receitas (que, ao contrário, estão crescendo), mas os problemas de desenho do teto constitucional de gastos que requer o encolhimento ano a ano das políticas públicas.
É certo que a conjuntura brasileira, política e ideológica, dificulta solução mais ampla da questão orçamentária e das inconsistências do regramento fiscal. Ainda assim, são positivas algumas das alternativas já aventadas para a questão específica dos precatórios, tanto pelo deputado federal Marcelo Ramos (PL/AM), primeiro vice-presidente da Câmara, quanto pela OAB. Em conjunto, trata-se de:
<ol>
<li>exclusão das despesas com precatórios do teto de gastos e da apuração dos limites de despesas;</li>
<li>permissão aos credores para compensarem os valores a receber com débitos de natureza tributária ou de outra natureza;</li>
</ol>
<ul>
<li>possibilidade de emissão de títulos públicos pela União para entrega aos credores, que poderiam vendê-los no mercado secundário pelo valor de face.</li>
</ul>
Apenas a exclusão dos precatórios do teto de gastos abriria espaço orçamentário de R$ 20 bilhões em 2022. Uma parte dos mais de R$ 20 bilhões devidos a Estados e Municípios poderiam compor encontro voluntário de contas dentro do próprio setor público consolidado. Além disso, as despesas com precatórios passariam a ser cumpridas na integralidade, inclusive após 2022.
Soluções existem. Mesmo que incompletas, devem mirar o futuro do país, não apenas o ano eleitoral.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/08/4944833-guedes-defende-pec-dos-precatorios-com-ameaca-ao-salario-do-funcionalismo.html">Paulo Guedes, Correio Braziliense, 20 de agosto de 2021</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver <a href="https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries">Banco Central do Brasil, Séries Temporais</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-orcamentarias/ploa-2022">PLOA 2022.</a>

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JOTA

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