João Paulo Rodrigues de Castro

Convidaram o Paulo Leminski para participar de um livro desses de homenagens tão comuns em nosso meio jurídico<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. A proposta era que falasse sobre paixão, um tema muito caro ao poeta. Leminski acabou enviando sua contribuição. Todo o resto foi inusitado. O artigo veio em formato de prosa, e não de poesia, como era esperado. Afinal, nos livros de homenagem, cada um é chamado a contribuir com o que tem de melhor. E a prosa não é definitivamente o carro-chefe de Leminski. Como se não bastasse, o poeta tripudiou a própria ideia de compor o livro: “Se a gente está valorizando tanto isso aí, é porque está faltando”, sentenciava.
Admitindo-se que Leminski esteja certo, e toda homenagem é falta; então, o que sobra para dizer num livro de homenagens? Quais foram as armas utilizadas pelo poeta para desconstituir o gênero?
Leminski analisa as variações históricas do termo “paixão”, estudo que os linguistas denominariam “variação diacrônica”, e conclui que o sentido da palavra se inverteu completamente. A palavra tinha, a princípio, um sentido passivo, depois teria adquirido um sentido ativo. Argumenta que, quando se falava da paixão de cristo, a referência era aquilo que Cristo sofreu, aquilo que padeceu...
Hoje se diz amor à paixão revolucionária de Trotski, como referência a uma coisa que se move, mas que não se sabe nem o quê nem para onde. O exemplo de Leminski deve ser analisado no contexto em que escreve. Em 1987, ainda se vivia o sonho comunista. O exemplo pode ser adaptado para os tempos atuais. A expressão amor à pátria, por ex., pode indicar tudo, menos a contemplação passiva da bandeira nacional. Em todo caso, fica confirmada a tese de Leminski: a paixão, antes passiva, agora é ativa.
Opera-se uma explosão de significados: se o sofrimento é passivo, e tem referencial preciso, ainda que venha de Cristo, o lado ativo da paixão é a verdadeira Torre de Babel. Leminski admite a força dos acontecimentos, mas não conclama ninguém à revolução. Nada de defender o retorno ao sentido passivo da palavra paixão. Tampouco prega Leminski a liberdade absoluta da linguagem, o que seria pueril, vindo de um poeta.
Em vez disso, defende Leminski que o poeta deveria operar na margem entre o passivo e o revolucionário. O passivo seria o autêntico prosador. É reconhecido, ainda que travestido em versos. Há sempre uma tese por detrás de um bom prosador, que se antecipa e se desenvolve no caminho até a previsão de uma nova era. Tal como Narciso, sempre se volta ao espelho, com raiva do eco. Não há espaço para o homenageado.
O revolucionário, por sua vez, age em defesa da sociedade. Nada nele é próprio; só o sentido que ele atribui a sua ação. Confunde facilmente símbolo e realidade. O Che Guevara, com a boina de Che. Sai às ruas. Mas, na primeira oportunidade, defronta-se no espelho. Nos livros de homenagens, tende a evidenciar alguma idiossincrasia no homenageado que o afaste dos reles normais; virtude que só ele quem homenageia viu. Precisa justificar porque está ali no livro de homenagens, e não de pernas no mundo, fazendo a revolução. Segue os rastros de Narciso.
O poeta agiria a seu modo, em dois tempos. Primeiro, ele sofre com a linguagem, depois, faz ela sofrer por meio dele. Conforme esclarece Leminski, o poeta teria em relação à linguagem uma transa apaixonada, que poderia se manifestar de duas formas: uma forma masoquista e a outra sádica. O poeta seria primeiro uma vítima da linguagem, que exerce uma violência sobre ele, com a sintática, com seu estilo, tropos, enfim, com o todo o aparato da língua como fenômeno social. No segundo momento, o momento sádico, o poeta passaria a ser algoz, a ser carrasco, e daí a inverter o jogo. Só nessa fase haveria espaço para questionar um livro de homenagens ou a própria ideia de compor um livro a respeito.
A questão permanece em aberto: o que dizer então num livro de homenagens? O mais óbvio seria seguir as pegadas de Leminski, caminhando sobre os ombros de um gigante, e agir como um carrasco. Poderíamos questionar tudo e todos, o tema escolhido, sua pertinência, a editora escolhida. Por que diabos teria nascido o homenageado, e não outra pessoa em seu lugar, na longa fila da existência?
O próprio Leminski desabonaria esse procedimento. Se fizermos isso, seremos tudo, menos poetas, denuncia. Não existe nem poderá existir dois Leminskis ou, o que dá na mesma, duas subversões em livros de homenagens. O que Leminski fez está por assim dizer morto e sepultado no universo poético. Toda a replicação posterior será uma cópia mal-acabada, um esboço de poesia, mas não uma autêntica poesia. Revolucionários também não poderíamos ser, porque o revolucionário precisa agir no mundo, ainda que no seu próprio mundo; e não para manter o status quo, como favorece o cenário de um livro de homenagens.
Sejamos, então, prosadores; o que não é pouca coisa. Como alerta Leminski, em um de seus versos mais conhecidos, contentemos em fazer um “proema”. Afinal: “Não há verso, tudo é prosa [...] coisa feita de brisa, de mágoa e de calmaria, dentro de um tal poema, qual poesia pousaria?”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a> Homenageemos a nós mesmos nos livros de homenagens; e deixemos o homenageado pensar que é tudo por ele, que é tudo por causa dele. Só não o deixem saber que é tudo feito de prosa.
O que sobra, então, é o não dito, esse inconfessável silêncio [poético] que não se converte em prosa. Há um pingo de poesia em cada homenagem jurídica: corvus oculum corvi non eruit (o corvo não arranca o olho de outro corvo)!
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> LEMINSKI, Paulo; NOVAES, Adauto (org). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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JOTA

Há um pingo de poesia em cada homenagem jurídica

Paulo Leminski, jurista: o que dizer nos livros de homenagens?

Admitindo-se que Leminski esteja certo, e toda homenagem é falta; então, o que sobra para dizer num livro de homenagens?