Danilo Tavares

O número de municípios que não cobram mais dos usuários o pagamento de tarifa de transporte coletivo vem crescendo. O passe livre, em cerca de uma década, deixou de ser uma reivindicação que muitos tratavam como ingênua ou utópica e passou a ser tratado seriamente, ocupando um lugar central no debate sobre as políticas de mobilidade e de desenvolvimento urbano.
A adoção por quase 80 municípios no país tem sido acelerada sobretudo por uma reivindicação do empresariado do setor de transportes, o qual, diante da contínua redução de passageiros e do aumento de custos, tem convencido o poder público a assumir a condição de pagador universal. A sobrevivência das empresas de transporte local depende de o setor público contemplar as demandas populares que desencadearam as manifestações de junho de 2013.
Há boas razões para que o Brasil avance na implementação da tarifa zero, sobretudo em cidades pequenas e médias. Isso exige, contudo, levar em conta os consistentes argumentos daqueles que se preocupam com o transporte público mas que se opõem à gratuidade; há muitas providências a serem tomadas para minorar os eventuais efeitos adversos do passe livre sobre o sistema de mobilidade. Os enormes desafios de política pública, contudo, podem ser enfrentados. O Estado brasileiro já lidou com tarefas mais difíceis e conseguiu promover avanços de cidadania.
<h3>A favor da tarifa zero</h3>
Bons motivos não faltam para que a ampla gratuidade prevaleça: há um benefício econômico imediato à população que não possui transporte individual (e é presumidamente mais pobre) e que passa a ter o seu direito de ir e vir efetivamente garantido, dando concretude à disposição constitucional que declara o transporte como direito social (art. 6º, caput). Há incentivos à redução da poluição e à melhoria do trânsito. E pode haver também incentivos à atividade econômica: dado que os custos de transporte são custos de transação de todas as atividades econômicas, a população pode gastar com bens e serviços diversos o dinheiro que economiza no ônibus. O custo do empregador também é reduzido, com o fim da despesa com vale transporte. A economia urbana pode ter no gasto público com a tarifa zero um multiplicador de grande eficácia.
Temos, portanto, uma política social e ambientalmente correta e (ao que tudo indica, mas o que ainda exige estudos mais aprofundados) economicamente eficiente.
E que pode não ser excessivamente cara.
Os dados preliminares coletados indicam que os municípios que adotaram o passe livre têm gasto com esta política, na média, entre 2% a 3% do dispêndio orçamentário total. Esse percentual não é nenhum exagero, considerando que valor que tais municípios gastavam com auxílio transporte equivalia a 1% de suas despesas totais. Assim como no caso da educação e da saúde, cujos gastos mínimos obrigatórios equivalem a proporções bem maiores do orçamento, podemos ter uma política que incrementa radicalmente a fruição da cidade pela população, principalmente a sua parcela mais pobre.
<h3>Contra a tarifa zero</h3>
Mesmo os que apoiam fortemente o transporte público fazem críticas à tarifa zero. E com bons argumentos: ela beneficia também quem poderia pagar pelo serviço, o que é socialmente injusto; as viagens de curtíssima distância são incentivadas e isso causa ineficiências, provocando uma explosão da demanda que gera lotação excessiva dos veículos; e para que o sistema não venha ao colapso e possa dar conta da nova demanda, o poder público tem que gastar colocando mais ônibus em operação e aumentando a frequência de viagens. Em razão disso, o custo total do sistema de transporte (que não raramente passa a atender ao dobro do número de passageiros da noite para o dia) é maior do que se bancado exclusivamente por tarifa. O fato de haver um inevitável aumento da despesa pública não é irrelevante.
Se considerarmos as grandes metrópoles, ainda carentes de sistemas de grande capacidade, é preciso colocar na conta do gasto público com transporte os investimentos em infraestrutura de grande monta em trens e metrôs. Cidades pequenas e médias, em princípio, não lidam com esse drama e têm sua capacidade de transporte ampliada com simples aquisição de veículos e execução de medidas menos dispendiosas, como corredores e faixas exclusivas para ônibus.
Além disso, há o temor de que o sistema universal e gratuito fique depauperado; que o passe livre retire do poder público municipal a já quase inexistente pressão pela melhoria do serviço (como se a gratuidade retirasse a legitimidade de eventuais demandas do incremento do padrão de qualidade). E, em ocorrendo uma eventual degradação, teme-se que as pessoas prefiram o transporte individual - o que já é, hoje, uma tendência acentuada. O risco seria o de a tarifa zero piorar o que já é ruim. Por isso há quem defenda o subsídio focalizado da tarifa, destinado à população mais pobre (por exemplo, as pessoas que estão no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cadastro-unico">CadÚnico</a>).
Ainda não está totalmente claro se os benefícios econômicos para os mais pobres são maiores do que os custos (que não parecem ser excessivos porém não são insignificantes) e riscos de degradação do serviço. A gratuidade ampla e a garantia efetiva do direito ao transporte podem vir a prejudicar o transporte público, no que seria um caso exemplarmente triste de consequências indesejadas das políticas públicas e de tragédia dos bens comuns?
<h3>Apostar no passe livre e reduzir seus efeitos indesejados</h3>
Temos, portanto, de um lado, alguma incerteza sobre os eventuais efeitos adversos da política pública; de outro, um potencial inequívoco de transformar a mobilidade das nossas cidades, contribuindo para a efetividade do direito social ao transporte e suas externalidades positivas.
Devemos apostar nos potenciais efeitos positivos da política, cuidando para que seus efeitos indesejados sejam evitados ou minorados. O desafio é grande, e exige um esforço interfederativo - não sem motivo há proposições de um Sistema Único de Mobilidade, do qual a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/uniao">União</a> participe com apoio financeiro e institucional. A mudança do padrão de mobilidade urbana é um tema que interessa a todo o país, e por isso a participação federal é importante. Se a União liderou os esforços de estruturação de outras políticas sociais relevantes na educação, saúde, assistência social e, mais recentemente, até mesmo no saneamento básico, por que não ajudar a promover uma mudança urgente no transporte coletivo local?
Há aspectos fundamentais da implementação do passe livre que dependem decisivamente da União, a quem competiria algumas mudanças normativas e a montagem de um arcabouço de financiamento e regulação, valendo-se de sua maior capacidade estatal:
(i) aumento de frota e política industrial verde: O risco de superlotação tem de ser enfrentado com o necessário aumento da frota de veículos. A tarifa zero aplicada em todo o Brasil ensejaria um grande programa de encomendas públicas que poderia sustentar uma política de incentivo de fabricação de ônibus elétricos. O <a href="https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home">BNDES</a>, que já anunciou a intenção de financiar esse tipo de veículo, poderia financiar os municípios, os quais, por sua vez, poderiam contar com novas fontes de arrecadação incidentes sobre o transporte individual (pedágio urbano, uso do viário) para arcar com o custo de aquisição dos novos ônibus. A “neoindustrialização” verde teria, aqui, um bom campo de incidência.
(ii) regulação da qualidade do serviço: aqui temos um desafio decorrente especificamente do passe livre, mas algo que funciona muito mal em quase todos os sistemas locais de transporte. A revisão dos atuais contratos de operação e o estabelecimento de parâmetros de qualidade não é algo impossível de ser feito. Os operadores de ônibus não podem ser incentivados a andar com ônibus lotados e com baixa frequência. Para isso, têm de ser remunerados predominantemente por quilômetro rodado, e não apenas por passageiros. A adoção de normas nacionais de referência, de modo semelhante ao feito no saneamento básico, poderia ser um caminho para disseminação de melhores práticas; e
(iii) custeio: Os municípios precisam ser induzidos a cobrar melhor o IPTU e pelo uso das vias públicas por automóveis em movimento ou estacionados, bem como obter uma maior parcela dos tributos federais e estaduais sobre combustíveis. O transporte individual deve ajudar a financiar o coletivo. De todo modo, uma primeira medida para o debate público amplo sobre os custos do passe livre seria uma medida de transparência ativa: a divulgação dos dados sobre o sistema de transporte local (número de passageiros, custo médio por passageiro/km rodado e demais dados). Assim se pode ter uma noção mais clara de quanto custaria um programa de gratuidade universal do transporte numa dada localidade.
Ainda que melhorar a mobilidade urbana e a qualidade do ar sejam questões urgentes, a implementação gradual da tarifa zero deve ser considerada, e talvez seja a única maneira factível de vê-la se tornar realidade.  É melhor executar uma política que se dissemine de forma menos rápida porém consistente do que arriscar uma mudança atropelada e que possa colocar a ideia em descrédito. O serviço de transporte permite que se faça uma implementação progressiva: pode-se testar a gratuidade em dias e horários específicos da semana, de modo a preparar o sistema para o aumento de passageiros. Alternativamente, a gradação pode ocorrer no preço da tarifa - ao invés da gratuidade repentina, um aumento progressivo nos subsídios.
O passe livre tem sido aprovado pela população. Mesmo com as dificuldades e carências do serviço, ele é visto como um avanço de cidadania. Não há motivos para que o Brasil não avance em sua adoção ampla, ainda que gradualmente.

Onibus

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JOTA

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