Omara Oliveira de Gusmão

Angela Davis, na obra "Mulheres, Raça e Classe", com inspiração em Frederick Douglass, expressivo abolicionista negro estadunidense e apoiador ferrenho da emancipação feminina no século 19, afirma que a luta antiescravagista era, igualmente, uma luta das mulheres. Racismo e sexismo no mesmo rastro.
Ao tratar do movimento antiescravagista e da origem do direito das mulheres, pontuou que o “lugar da mulher”, no decorrer da história, sempre foi em casa, mas o capitalismo industrial fortaleceu a ideia, de forma rigorosa, da inferioridade feminina. Na era pré-industrial, as mulheres eram as trabalhadoras produtivas no contexto da economia doméstica, sendo responsáveis pela manufatura de praticamente tudo o que fosse necessário para a família.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Quando a força de trabalho feminina se transferiu para a fábrica, a ideologia da feminilidade foi encarregada de forjar a ideia da mãe e da esposa ideal, modelo que relegava à mulher a condição de coadjuvante e serviçal de seus maridos e apenas instrumento de reposição da vida humana no papel de mãe. O lugar da mulher perfeita era em casa no papel de mãe e esposa.
O caminho continuou tortuoso para as mulheres no decorrer dos anos, não obstante as conquistas, como o direito de voto, permeados por pautas segregadoras entre as próprias mulheres, com o apoio de homens, como se viu no movimento sufragista ocorrido nos Estados Unidos no início do século 20, em que, além da luta de gênero, havia aberta luta de raça. Era a luta dentro da luta. No dizer de Angela Davis, “com a chegada do século 20, um casamento ideológico sólido uniu racismo e sexismo de uma nova maneira. A supremacia branca e a supremacia masculina, que sempre se cortejaram com facilidade, estreitaram os laços e consolidaram abertamente o romance”.
Como se pode ver, a luta das mulheres sempre foi intensa e, para algumas, em especial para as negras, as dificuldades eram ainda mais diversificadas, o que se reflete ainda hoje no mercado de trabalho.
É nesse contexto que a aprovação da paridade de gênero e da cota racial nos quadros do sistema da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), já para as eleições de novembro de 2021, surge como esperança de maior representatividade feminina nos quadros da secular instituição para ser porta-voz dessas vozes, brancas e negras, muitas vezes submissas e caladas nos metros quadrados dos escritórios de advocacia, nos órgãos públicos, nos fóruns e no cotidiano da vida social.
Em 2016, quando se comemorava o Ano da Mulher Advogada e se buscava a implementação do Plano de Valorização da Mulher Advogada (Provimento 164/2015), contraditoriamente a chapa que comandava o Conselho Federal da OAB até 31 de janeiro de 2019 tinha cinco integrantes, todos homens, e a anterior também era toda masculina.
A direção atual é composta de presidente, vice-presidente, secretário-geral, secretário-geral-adjunto e diretor-presidente, todos homens. A Ordem dos Advogados do Brasil só teve presidentes homens. Nas seccionais, poucas foram as mulheres que ocuparam originariamente o cargo de presidente.
Nas chapas vencedoras das eleições de 2018 para o triênio de 2019 a 31 de janeiro de 2022 não havia nenhuma mulher como presidente de seccional. Por outro lado, elas foram maioria no cargo de vice-presidente de 19 seccionais: AC, AP, AM, BA, CE, DF, ES, MT, MG, PA, PR, PE, PI, RJ, RN, RO, RR, SE e TO <a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. Em 2021, uma mulher esteve na presidência em exercício de seccional (OAB-AM) em razão do afastamento do titular para assumir cargo comissionado na administração pública municipal.
Por outro lado, em setembro de 2018, com inspiração nos objetivos traçados no Plano da Mulher Advogada, o CFOAB decidiu que nas eleições daquele ano as chapas deveriam atender ao mínimo de 30% e ao máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, compreendendo os cargos de titular e suplência das chapas, alterando-se o artigo 131 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB (Resolução nº 1/2014). Dessa feita, no mínimo 30% de mulheres, e de homens, deveriam compor os cargos do sistema OAB, percentual não obrigatório, contudo, para cargos específicos ou de diretoria, incluindo a do Conselho Federal.
Atualmente, a Ordem dos Advogados do Brasil conta com 621.564 advogadas e 614.356 advogados, num total de 1.235.920. Elas já ultrapassam a paridade numérica (50,29%) dos membros da instituição, o que vem se refletindo, continuamente, em algumas seccionais (AM, BA, DF, ES, GO, MT, PA, RJ, RO, RS, SE e SP). A seccional do Rio de Janeiro é a que apresenta a maior diferença, com 76.107 advogadas em seus quadros ante 69.857 advogados registrados <a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Em contrapartida, ainda é lenta a partilha de poder entre homens e mulheres nos cargos de direção da OAB. Como se viu, nas alterações para as eleições de 2014, os percentuais mínimos de 30% para as candidaturas de cada sexo não foram de observância obrigatória para cargos específicos ou de diretoria, inclusive a do Conselho Federal.
Em mais uma política afirmativa em prol da igualdade de gênero, na sessão de 14 de dezembro de 2020, o Conselho Pleno da OAB aprovou, por maioria de votos, a paridade de gênero (50%) para as candidaturas a partir das eleições de 2021, tanto para titulares quanto para suplentes. Na mesma oportunidade foram aprovadas cotas raciais de 30%, reparação histórica da OAB nos seus 90 anos de existência sem política expressiva voltada para os advogados e advogadas negras. No triênio que ora se encerra, o Conselho Federal possui somente um negro em sua composição, Conselheiro Federal pela OAB-CE, autor da proposta da cota racial. Nesse cenário, além de um homem negro, há mulheres advogadas, ainda que poucas, no Conselho Federal, mas advogadas negras não há nenhuma.
Sob o enfoque do acesso da mulher advogada aos cargos do sistema OAB, além do aumento percentual de 30% para 50%, a conquista é expressiva na medida em que a paridade vai alcançar obrigatoriamente os cargos de diretoria do Conselho Federal, dos Conselhos Seccionais, das Subseções e das Caixas de Assistência e “deverá incidir sobre os cargos de titulares e suplentes, se houver, salvo se o número for ímpar, quando se aplicará o percentual mais próximo a 50% na composição de cada gênero”. No Conselho Federal, deverá ser garantida uma vaga de titularidade pelo menos para cada gênero.
Por sua vez, o percentual de 30% na composição de cotas raciais para advogados negros e advogadas negras levará em conta o total de cargos da chapa e não por órgãos, como estabelecido para as candidaturas de gênero, o que não garantirá, com efeito, a presença de negros no Conselho Federal ou em órgãos de diretoria, ou ainda na titularidade do Conselho Seccional, por exemplo.
Ressalte-se, ainda, que foi delegada à Comissão Eleitoral decidir os casos nos quais as chapas das Subseções informarem a inexistência ou insuficiência de advogados e advogadas negras com condições de concorrer no pleito no percentual de 30%. Advogados negros e advogadas negras são considerados aqueles(as) inscritos(as) na OAB que se classificam (autodeclaração) como negros(as), ou seja, pretos(as) ou pardos(as), ou definição análoga (critérios subsidiários de heteroidentificação).
Percebe-se que, a par da grandeza das conquistas, há novos desafios a serem enfrentados na instituição que se torna cada vez mais feminina. A recente desvantagem numérica de advogados ainda não se reflete na ocupação dos espaços de poder do sistema OAB, predominantemente masculino. As composições das chapas vencedoras nas eleições de novembro de 2021 vão mostrar se as políticas adotadas representarão, além do aumento da participação das mulheres no sistema OAB, também a efetiva escalada aos cargos de direção maior dos seus órgãos (Conselho Federal e seccionais) ou se a predominância da ocupação das diretorias dos citados órgãos continuará sendo masculina, relegando-se às advogadas os cargos de vice-presidência que, majoritariamente, ocuparam na gestão de 2019-2022, continuando apenas a legitimar o poder masculino na instituição.
No caso da cota racial, o desafio consiste ainda, além da verificação do integral cumprimento da cota, em aferir-se a veracidade étnica dos ocupantes dos cargos a ela destinados, cujo grupo reúne negros e pardos, estes últimos não apresentando necessariamente cor de pele escura ou descendência africana, correndo-se o risco de, no olhar, não se perceber a mistura de cores nos órgãos da instituição, pela qual tanto se lutou, inclusive nos dias que antecederam a histórica sessão do dia 14 de dezembro de 2020 do CFOAB.
Nesse contexto, como no clássico de Angela Davis, as lutas dos negros e das mulheres, inclusive das negras, agora se cruzam no âmbito do sistema OAB, exsurgindo como esperança, não obstante os desafios ainda existentes, de que os espaços de poder da instituição também comecem a ser por eles ocupados, representando um grande passo para a democratização pela diversidade, de gênero e de raça, e para ferir de morte a segregação vertical existente na instituição com a reparação desse erro histórico. Não há dúvida, assim, que uma nova OAB surge nas próximas eleições de 2021, mais democrática e mais representativa das advogadas e dos advogados. É o que se espera.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CFOAB. Institucional /Quadro da Advocacia / Quantitativo por Gênero. Disponível em: <a href="https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados">https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados</a>. Acesso em: 31 de out. 2021.
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[2]</a> CFOAB. Institucional / Seccionais. Disponível em: <a href="https://www.oab.org.br/seccional/ac">https://www.oab.org.br/seccional/ac</a>. Acesso em: 31 out. 2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[3]</a> CFOAB. Institucional /Quadro da Advocacia / Quantitativo por Gênero. Disponível em: <a href="https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados">https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados</a>. Acesso em: 31 out. 2021.

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A esperança de uma Ordem mais democrática e representativa nas eleições de 2021

Lutas cruzadas: paridade de gênero e cota racial no sistema OAB

A esperança de uma OAB mais democrática e representativa nas eleições de 2021 com as cotas raciais e de gênero