Liquidação extrajudicial

Parcialidade do Banco Central do Brasil como juízo universal

Banco Central tem posição privilegiada na decretação do regime de liquidação extrajudicial

11/02/2020|09:25
Atualizado em 28/07/2020 às 16:19
Confidence Câmbio
Crédito: Agência Brasil

A concepção de uma liquidação bancária ser processada extrajudicialmente foi fundamentada em dois pilares: (i) celeridade do processo, e (ii) capacidade técnica do órgão regulador do setor ― vale lembrar que esta concepção foi também acolhida pelos nossos tribunais.[1]

A consequência prática do regime ser processado fora do Poder Judiciário é o afastamento de várias questões de apreciação deste poder na decretação do regime, em especial a garantia e observância dos direitos e garantias fundamentais.

Neste sentido, a literatura reconhece o aspecto autoritário da liquidação extrajudicial, exercendo esta uma função judicante.[2] SADDI, tratando sobre o tema, observa o caráter autoritário da liquidação extrajudicial, posto que foi editada em “período da história brasileira em que vigorava o arbítrio, forcejando os então burocratas do poder a excluir da apreciação do Judiciário questões das mais variadas”, e conclui que o Banco Central vê-se investido das atribuições de juiz, executor e elaborador dos destinos de qualquer instituição financeira.[3]

No entanto, como já apresentado, a experiência brasileira demonstrou que “as liquidações de bancos no Brasil arrastam-se durante anos, consumindo bilhões de reais, envolvendo suspeitas de desvio de recursos e favorecimentos”.[4] Essa ineficiência na condução do processo de liquidação pelo Banco Central vem ganhando contornos negativos na opinião pública, gerando denúncias contra diretores, liquidantes e funcionários do Banco Central. É o caso, por exemplo, dos bancos Vetor e Open, que, por sua vez, geraram uma matéria jornalística na revista IstoÉ.[5]

A ineficiência da gestão do regime é tamanha que, ao se confrontar o dispêndio mensal da falência do Banco Progresso S/A com a Liquidação Extrajudicial que a precedeu, chega-se aos assustadores valores de R$ 100.000,00 da falência e R$ 600.000,00 da liquidação[6].

Dessa forma, é possível concluir a existência de uma posição privilegiada do Banco Central do Brasil na decretação do regime de liquidação extrajudicial.

Essa afirmação é reforçada pela atuação da Autarquia em reorganizar o ativo e passivo da liquidanda, além de ser este quem decreta o regime.

Essa posição de superioridade pode permitir arbitrariedades por parte do Banco Central, já que este é quem decide sobre a classificação, legitimidade e valor dos créditos declarados, competindo ainda ao Banco Central decidir sobre eventuais recursos (artigos 23 e 24 da Lei nº 6.024/74)[7]. Portanto, a superioridade em relação aos demais interessados retira do Banco Central a isenção própria dos órgãos judicantes.

Em observância à legislação do setor, os bancos são obrigados a manter reservas em contas de depósito no Banco Central, mais conhecidas como reservas bancárias, que garantem a liquidez do banco em face de sua capacidade multiplicadora da moeda.

Assim, os saques realizados acarretam débitos na sua conta de reservas. Logo, se os saques não forem equilibrados por depósitos, os bancos perdem parte de suas reservas, de modo que, caso o banco não consiga compensar essas perdas no mercado interbancário, este recorre ao redesconto do Banco Central, que atua como prestamista de última instância em favor de sua liquidez.[8]

Portanto, levando em consideração que a iliquidez bancária é motivo para a decretação do regime da liquidação, e que é constante a decretação do mesmo por este motivo, o Banco Central, nestes casos, figura no processo como um dos principais credores da liquidanda, por “lhe haver acobertado a conta de reservas” [9]. Assim, como observa parcela da doutrina, “essa condição poderia garantir ao Banco Central, na falência do banco, a função de síndico, mas nunca de julgador” [10].

Entretanto, a Lei nº 6.024/74, em seu artigo 34[11], equipara o Banco Central a “juiz” no decorrer do processo de liquidação, cabendo a ele julgar o valor e a natureza de seu crédito, nos casos em que os sócios ou credores da liquidanda não concordem com a classificação e pagamentos realizados pelo liquidante[12].

O tema da superioridade e imparcialidade foi discutido nos autos dos Embargos à Execução promovidos pela Massa Falida do Banco Progresso S.A junto à 23ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais[13]. Discutia-se a natureza e o valor do crédito do Banco Central, quando este tentou executá-lo, quando convertido o regime da liquidação em falência. Como argumento central, sustentou a embargante que a apuração do crédito do Banco Central não foi regular por violar os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório.

A decisão baseou-se no fato de que, “estando sob o paradigma de um Estado Democrático de Direito, não se há admitir imposição unilateral de um título executivo, qualquer que seja, sem a participação efetiva do devedor”, concluindo ainda “que os princípios do interesse público e da segurança jurídica, embora válidos, não devem ser considerados como preponderantes, neste caso, porque significaria negar sua própria existência”.

Ainda sobre a imparcialidade e superioridade do Banco Central do Brasil na condução de regimes especiais, em especial o da liquidação extrajudicial, merece destaque o relatório final da subcomissão temporária da liquidação de instituições financeiras (CAELIF), de autoria do Senador Aelton Freitas, que teve como objetivo acompanhar e analisar a liquidação extrajudicial de instituições financeiras pelo Banco Central do Brasil, que chegou a conclusões interessantes sobre o tema[14].

Logo, as premissas aqui citadas tentam sustentar a imparcialidade do Banco Central na condução do processo da liquidação. É no mínimo conflitante a ideia de que o Banco Central, ao decretar o regime, irá proceder na administração de forma imparcial.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 90.135-3, rel. Leitão de Abreu, 17.03.81, DOU, 22.04.81, p. 3.485, e Revista Trimestral de Jurisprudência, Vol. 97, p. 709; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 40.712-RS, rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 26.06.96, p. 29.686; RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança nº 59096952, rel. Des. Araken de Assis, 26.11.92, Jurisprudência do TJRS, 1993.

[2] SADDI, Jairo. Algumas propostas de mudança para a Lei nº 6.024. In: Intervenção e liquidação extrajudicial no sistema financeiro nacional. 25 anos da Lei n. 6.024/74. São Paulo: Texto Novo/UNICID, 1999, pp. 291-319.

[3] Ibid, p. 293.

[4] CAPARELLI, Estela; SOUZA, Leonardo. “Liquidação de banco se arrasta e falha, diz BC”. Folha de S. Paulo, 17.06.01, Dinheiro, p. 6.

[5] GRAMACHO, Wladimir. “Liquidante some com R$ 32 mil do Progresso”. Folha de S. Paulo, 24 de jun.2001, Dinheiro, p. 6.

[6] GRAMACHO, Wladimir. “Liquidante some com R$ 32 mil do Progresso”. Folha de S. Paulo, 24 de jun.2001, Dinheiro, p. 6.

[7] Art. 23. O liquidante juntará a cada declaração a informação completa a respeito do resultado das averiguações a que procedeu nos livros, papéis e assentamentos da entidade, relativos ao crédito declarado, bem como sua decisão quanto à legitimidade, valor e classificação.  Parágrafo único. O liquidante poderá exigir dos ex-administradores da instituição que prestem informações sobre qualquer dos créditos declarados. Art. 24. Os credores serão notificados, por escrito, da decisão do liquidante, os quais, a contar da data do recebimento da notificação, terão o prazo de dez dias para recorrer, ao Banco Central do Brasil, do ato que lhes pareça desfavorável.

[8] RODRIGUES, Frederico Viana. Op. cit., p.140.

[9]Ibid, p.140.

[10]Ibid, p.140.

[11]Art . 34. Aplicam-se a liquidação extrajudicial no que couberem e não colidirem com os preceitos desta lei, as disposições da Lei de Falências (Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945), equiparando-se ao síndico, o liquidante, ao juiz da falência, o Banco Central do Brasil, sendo competente para conhecer da ação revocatória prevista no artigo 55 daquele Decreto-lei, o juiz a quem caberia processar e julgar a falência da instituição liquidanda.

[12] RODRIGUES, Frederico Viana. Op.cit., p.140.

[13] BRASIL. 23ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais. Embargos à Execução nº 200.3800.008208-3, Juiz Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes, 12.07.00.

[14] Disponível em http://legis.senado.gov.br/comissoes/comissao?3&codcol=38. Último acesso em 01.08.17.logo-jota

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