Grazielle Albuquerque

A denúncia do Ministério Público de São Paulo (MPSP) que pediu na última quinta-feira (10/03), em uma entrevista coletiva, a prisão preventiva do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva por lavagem de dinheiro e falsidade ideológica causou polêmica tanto na imprensa quanto nas redes sociais. Fora as inúmeras críticas à formulação jurídica do pedido – um capítulo à parte, considerado até mesmo pela oposição ao Governo um ato atropelado e sem embasamento –, o material fazia uma impagável menção aos pensadores Marx e Hegel. 
Literalmente, o texto colocava que “as atuais condutas do denunciado Luiz Inácio Lula da Silva certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados”. A clara confusão entre o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel e o coautor do Manifesto Comunista, Friedrich Engels, amigo e companheiro de escrita de Karl Marx, foi uma espécie de gatilho perfeito para uma infinidade de memes que rapidamente tomaram a Internet. Das usuais montagens, como a da apresentadora Bela Gil dizendo “Você pode substituir Engels por Hegel, por exemplo”, a charges de Hegel sendo preso; quizz para testar os conhecimentos sobre os pensadores alemães; e capas de antigos LPs de duplas sertanejas cujos nomes foram trocados por Marx e Hegel, somou-se uma profusão de trocadilhos sem fim. 
Uma das piadas talvez defina bem o ponto em questão. Num diálogo imaginário, monta-se a seguinte cena: o cara de gravata chega numa livraria de São Paulo e pergunta: “Você tem aí o Pequeno Príncipe, de Maquiavel?”. E o vendedor responde: “Já sei! Você é promotor de São Paulo, né?!”. Sendo direta, mais do que o escárnio das “gafes” que invariavelmente caem na rede e podem atingir qualquer um, o que chama a atenção neste caso é o despreparo do MP de São Paulo para lidar com esse terreno árido, que não obedece ao protocolo, chamado Internet. A sensação que temos é de que, ao provocar tal exposição, os membros do MP não contavam com o imprevisto da crítica. Prova disso está na reação do promotor de Justiça José Carlos Blat, um dos responsáveis pelo pedido de prisão preventiva, que, ao ser abordado por um repórter da BBC Brasil sobre a repercussão em torno do erro, respondeu: "Vão caçar o que fazer. Vão catar coquinho". 
Embora ele ainda argumente que as críticas são uma tolice, que o erro já havia sido verificado e retificado, a resposta do promotor deu ao incômodo uma voz e um rosto. Mais do que isso, comprovou como todas as ressalvas ao pedido de prisão de Lula ultrapassavam os questionamentos materiais e atingiam a forma, o que, neste caso, diz muito, visto que foi o próprio Ministério Público que jogou a questão na arena pública. Vale lembrar que a denúncia foi divulgada em uma coletiva de imprensa e que, apesar da convocação dos veículos de comunicação, os promotores José Carlos Blat, Cassio Conserino e Fernando Henrique de Moraes Araújo em nenhum momento falaram sobre a prisão. A informação foi dada pelo Jota, ao publicar na íntegra o texto que continha o pedido. 
Durante a coletiva, repórteres perguntaram aos promotores alguns detalhes e, quando a questão avançava, os membros do MP respondiam que se restringiriam à denúncia. Mas, ora, por um acaso o pedido de prisão não estava contido na denúncia? Por que, então, não abordá-lo claramente na entrevista, visto que o sentido de uma  coletiva é expor pública e diretamente as informações? Se pudéssemos tirar uma foto e congelar o instante, esse meio do caminho de quem quer, mas hesita foi o prelúdio perfeito de todo o movimento que se seguiu na Internet e deste episódio se tiram algumas lições. A primeira delas, que permeia todo o enredo, é de que é preciso preparo e serenidade para lidar com a opinião pública. Neste caso, as brincadeiras sobre Marx e Hegel foram mais enfáticas pela caricatura de uma má conduta do que pelo erro em si. Em outro contexto, renderiam menos. Contudo, o que elas mostram é que não se pode buscar a exposição como um palco em que os aplausos estão garantidos. Além disso, quando uma ação midiática sofre reveses, simplesmente se aborrecer com o resultado não costuma ser solução.
Nesse sentido, é importante perceber como todas as sátiras à ação do MP de São Paulo são irônicas porque colocaram a instituição exatamente como alvo das críticas que a peça do MP condena ao argumentar que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não respeita as instituições do Sistema de Justiça e as ordens judiciais, se acha acima da lei, se sente incomodado com a necessidade de observância de ordens judiciais etc. O curioso, neste caso, é que o próprio MP se coloca nesse lugar. Aqui, precisamos nos afastar da polaridade política que cerca algumas análises para deixar claro que o ponto em questão não trata da defesa do ex-presidente, mas do fato de que, sim, é democrático que o Sistema de Justiça possa e deva ser alvo de críticas. A denúncia do MP de São Paulo demonstrou isso com fina ironia.
Nesse ponto, se poderia retificar o argumento ao colocar que o Sistema de Justiça pode e deve ser alvo de críticas – desde que pertinentes e respeitosas. Mas ocorre que, na prática, esse filtro é incontrolável. Os memes em questão provam isso e eles são, na verdade, um ponto de saturação de algo já mencionado: a necessidade de tratar as ações públicas com o devido cuidado. A Internet, sobretudo as redes sociais, obedecem a formas de atuação próprias, mas não estão descoladas de algo maior, este ente chamado “opinião pública”. Ao contrário, a Internet é parte dele. 
A enxurrada de brincadeiras com o MPSP já rondou o Supremo Tribunal Federal, em 2013, quando algumas atrizes da Rede Globo postaram uma foto de luto protestando contra a corrupção. Uma imagem postada originalmente no Instagram da atriz Bárbara Paz fazia referência ao voto do ministro Celso de Mello, que deferiu os famosos embargos infringentes na Ação Penal 470, o “mensalão”. Na sequência do protesto, Carla Peres e Xandy resolveram fazer o registro da família também de luto. Daí proliferavam versões da foto com as atrizes em montagens com Darth Vader, Chiquinho Scarpa, Família Addams, Paquitas etc. Antes da explosão dos memes, o Orkut chegou a ter um perfil fake do ministro Gilmar Mendes em que bonequinhos buddy poke mostravam ele recebendo uma “voadora” do então ministro Joaquim Barbosa. Poderíamos nos estender em exemplos, mas o ponto central sobre a lucidez de se lidar com uma arena que nos foge ao controle permanece.
Por isso, a outra lição que a dupla “Marx e Hegel” nos dá é de que a discussão sobre as relações entre o Sistema de Justiça e a opinião pública no Brasil está só começando. Como bem demonstra esse caso, ela não se restringe aos memes de Internet. Vai além, ao explicitar que o Sistema de Justiça há muito deixou de ser um ilustre desconhecido e que, ao fomentar uma disputa na arena pública, deve ter noção do que faz. Aliás, o ponto-chave é mais incisivo: no centro dessa questão está o sério debate sobre novos os contornos do posicionamento político do Sistema de Justiça brasileiro.
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Grazielle Albuquerque é jornalista, pesquisadora do Sistema de Justiça e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp. Twitter: @grazalbuquerque

Karl Marx

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