Francisco Glauber Pessoa Alves

Na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/panorama-atual-da-decadencia-dos-beneficios-do-regime-geral-da-previdencia-social-15122020">primeira parte desse ensaio</a>, destacamos o nascimento da decadência em matéria previdenciária, em linha com razões de segurança jurídica, e a tendência de exclusão jurisprudencial de sua incidência no que concerne ao indeferimento dos benefícios. A abordagem prossegue para traçar a progressividade da jurisprudência, especialmente a ADI n. 6.096-DF, as linhas mestras fixadas pelas Cortes Superiores no que tange ao assunto – notadamente sobre se remanescem questões em aberto – potencialmente judicializáveis, o refino da seara de não incidência da decadência, eventuais conflitos e zonas cinzentas de aplicação.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) destacara, julgando o Tema 544 (1ª Seção, REsp 1.309.529/PR, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 04/06/2013), sob recurso repetitivo, que o art. 103 da Lei n. 8.213/91 regia o direito de revisão e não o direito ao benefício previdenciário em si:
“O suporte de incidência do prazo decadencial previsto no art. 103 da Lei 8.213/1991 é o direito de revisão dos benefícios, e não o direito ao benefício previdenciário. Incide o prazo de decadência do art. 103 da Lei 8.213/1991, instituído pela Medida Provisória 1.523-9/1997, convertida na Lei 9.528/1997, no direito de revisão dos benefícios concedidos ou indeferidos anteriormente a esse preceito normativo, com termo a quo a contar da sua vigência (28.6.1997)”.
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Sobre a mesma matéria, o Supremo Tribunal Federal (STF) negara Repercussão Geral (Pleno, ARE n. 1.172.622-RJ, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 15/04/2019). Portanto, o STJ dera, até então, palavra final sobre o assunto. O STJ decidiu, também sob recurso repetitivo, o Tema 975 (1ª Seção, REsp 1.644.191/RS, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 04/08/2020), cotejando-se o punctum saliens referente a questões não apreciadas pela Administração no ato da concessão, para as quais entendeu aplicável a decadência:
"Aplica-se o prazo decadencial de dez anos estabelecido no art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 às hipóteses em que a questão controvertida não foi apreciada no ato administrativo de análise de concessão de benefício previdenciário".
Essa posição já havia sido adiantada pelo STJ, em outro recurso repetitivo, no Tema 966 (1ª Seção, REsp 1.631.021/PR, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 13/03/2019, Tema 966 dos Recursos Repetitivos):
“Sob a exegese do caput do artigo 103 da Lei 8.213/1991, incide o prazo decadencial para reconhecimento do direito adquirido ao benefício previdenciário mais vantajoso”.
No voto, o relator destacou que o STF tem sinalizado no mesmo sentido, de forma a aplicar o prazo decadencial do art. 103 da Lei n. 8.213/1991 independentemente de o objeto da revisão judicial ter sido apreciado administrativamente. A propósito, citou: ARE 845.209 AgR, rel. Min. Marco Aurélio, DJe-021 public 02/02/2015; ARE 1.045.210, rel. Min. Luiz Fux, DJe-142 public 29/06/2017; ARE 921.149/SC, rel. Min. Cármen Lúcia (decisão monocrática), DJe 27.11.2015; RE 983.372/SC, rel. Min. Rosa Weber (decisão monocrática), DJe 18/8/2016; ARE 999.206 ED, rel. Min. Marco Aurélio, DJe-251 public 25/11/2016.  Outrossim, registrou que o STF tem aplicado irrestritamente o prazo decadencial aos casos em que se pleiteia a concessão de benefício mais vantajoso alicerçado em direito adquirido, amparando-se no que foi decidido no julgamento exarado no Tema 334 da Repercussão Geral (STF, Pleno, RE 630.501, rel. para acórdão Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Repercussão Geral, DJe 26.8.2013).
De logo se vê que a parte final do Enunciado n. 81 da TNU (Não incide o prazo decadencial previsto no art. 103, caput, da Lei n. 8.213/91, nos casos de indeferimento e cessação de benefícios, bem como em relação às questões não apreciadas pela Administração no ato da concessão) foi superada pelos novos entendimentos do STJ.
Porém, houve um grande giro normativo com a Medida Provisória n. 871, de 18 de janeiro de 2019, convertida na Lei n. 13.846, de 18 de junho de 2019, ao atribuir nova redação ao art. 103:
“Art. 103.  O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:
I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou
II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo”.
A redação é terrível. Atente-se: fala sobre decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário. Decadência é fenômeno representativo da perda do direito em si, ao passo que prescrição refere-se à pretensão, vocalizada ou vocalizável por uma ação, sem importar a extinção dessa pretensão pela prescrição, necessariamente, na perda do direito, que pode subsistir<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Decadência ata-se aos chamados direitos potestativos (= aqueles que conferem a seu titular um poder que sujeita a outra parte, mas que não lhe obriga a nenhum tipo de prestação); prescrição, aos direitos subjetivos (que permitem exigir da outra parte uma pretensão, ou seja, uma obrigação).</blockquote>
Por outro lado, numa redação truncada, trata de revisão: (i) do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício; e (II) do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício. A inovação ao art. 103 da Lei n.  8.213/1991 foi a extensão da aplicação do prazo decadencial da concessão (deferimento) ou decisão de não mais pagar (cancelamento ou cessação) para a revisão administrativa deferida, indeferida ou não concedida. Se redação capenga e pouco inteligível fosse fundamento de inconstitucionalidade, ninguém certamente sairia em defesa dessa norma. Bastaria uma redação clara dizendo “Decai em dez anos o direito de impugnar o ato administrativo que aprecia benefício previdenciário ou sua repercussão financeira”. Tudo seria mais técnico e prático.
A novidade foi ao debate constitucional qualificado do STF via ADI, tombada sob n. 6096-DF, e, em 13/10/2020 (apenas dois meses após o STJ, pela sua 1ª Seção, de certa forma, enfrentar a matéria no Tema 975, REsp 1644191/RS, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 04/08/2020), a Corte julgou parcialmente procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei n. 13.846/2019 no que deu nova redação ao art. 103 da Lei n.  8.213/1991.  O relator, Min. Edson Fachin, ressaltou aspectos importantes:
a) o STF reconhecera (RE 626.489) o caráter de direito fundamental da prestação previdenciária (fundo do direito) e, como tal, insujeitável a prazo decadencial, o que não ocorre, porém, com o aspecto revisional respeitante à graduação pecuniária (forma de cálculo ou o valor final) das prestações;
b) a decisão administrativa que indefere o pedido de concessão ou que cancela ou cessa o benefício dantes concedido nega o benefício em si considerado, de forma que, inviabilizada a rediscussão da negativa pela parte beneficiária ou segurada, repercute também sobre o direito material à concessão do benefício a decadência ampliada pelo dispositivo;
c) o direito à previdência social é direito fundamental, expressamente previsto pelo art. 6º da Constituição da República, que, fundado no direito à vida, na solidariedade, na cidadania e nos valores sociais do trabalho e consubstanciado nos objetivos da República em construir uma sociedade livre, justa e solidária, em erradicar a pobreza e a marginalização e em reduzir as desigualdades sociais e regionais, caracteriza-se como instrumento assegurador da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial;
d) na medida em que modificadas as condições fáticas que constituem requisito legal quando da entrada de um novo requerimento administrativo para a concessão do benefício negado ou de novo benefício que possa depender da reconsideração fática da negativa, a revisão do ato administrativo que indeferiu, cancelou ou cessou o benefício é mecanismo de acesso ao direito à sua obtenção, motivo pelo qual o prazo decadencial, ao fulminar a pretensão de revisar a negativa, compromete o núcleo essencial do próprio fundo do direito;
e) o prazo decadencial pode até fulminar a pretensão ao recebimento retroativo de parcelas previdenciárias ou à revisão de sua graduação pecuniária, mas jamais cercear integralmente o acesso e a fruição futura do benefício, motivo pelo qual, como acima já sustentado, o art. 103 da Lei n. 8.213/91, na redação dada pela Lei 13.846/2019, por fulminar a pretensão de revisar ato de indeferimento, cancelamento ou cessação, compromete o direito fundamental à obtenção de benefício previdenciário (núcleo essencial do fundo do direito), em ofensa ao art. 6º da Constituição.
A votação foi virtual.  A divergência foi inaugurada pelo Min. Marco Aurélio, destacando: “Mostra-se pertinente que o legislador, visando resguardar a segurança jurídica, procure impedir sejam atos administrativos mantidos em discussão por período indefinido”. Os Ministros Roberto Barroso, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Luiz Fux acompanharam a divergência, ao passo que os Ministros Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Celso de Mello seguiram o relator. O placar, como se antevê, ficou em seis a cinco para declarar a inconstitucionalidade do art. 24 da Lei n. 13.846/2019 no que deu nova redação ao art. 103 da Lei n. 8.213/1991.
Maiorias apertadas, no limite, nada obstante representem decisão formalmente qualificada (art. 97 da Constituição Federal; art. 23 da Lei n. n. 9.868/99), podem eventualmente ressentir-se de persuasividade necessária e demonstrar divisão profunda na Corte.  A extensividade incontida da não decadência para benefícios previdenciários repercute em duas vertentes (utilitaristas para uns; realistas, para outros; sempre jurídicas, para todos) de grande repercussão: a) a perenidade da insegurança jurídica evidenciada por relações jurídicas insepultas entre segurados e outros beneficiários para com a Administração (o INSS é um dos maiores litigantes do país, como já adiantamos na primeira parte deste artigo); b) o incremento da complexidade da formação do orçamento da Seguridade Social (para o custeio administrativo) e dos precatórios (para o custeio de decisões judiciais).
A perpetuação de relações, agora duráveis por décadas – e mesmo toda uma vida –, comunga contra qualquer segurança jurídica. Sempre se poderá provocar a Administração e depois o Estado-juiz, num espiral de litígios nunca superáveis (indeferimentos originários para segurados e seus pensionistas, indeferimentos revisionais para segurados e seus pensionistas etc etc e etc). A lição clássica de constitucionalista de escol fala por si – e aqui já se recorre à dogmática ao invés de utilitarismo:
“O homem tem necessidade de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito” (CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito constitucional e teoria da constituição. 3ª. ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 252).
Embora patente que a coisa julgada, berçário real de apaziguamento de litígios, para o bem ou para o mal, poderá dar-lhes cabo definitivo, o dado concreto é que um malha de atos complexos tenderá a se repetir na esfera administrativa e na judicial para, nada obstante, ter-se uma mesma resposta negativa – sempre lembrando, como já adiantado na primeira parte desse artigo, que dos cerca de 40% dos benefícios indeferidos pelo INSS, apenas 30% prosperam nos tribunais (= cerca de 2,4 milhões de um universo de 8 milhões em 2019).
Remanesce, ao que se vislumbra, a necessidade de se conciliar o que decidiu o STF na ADI n. 6096-DF com o posicionamento, poucos meses antes, do STJ no Tema 975 (1ª Seção, REsp 1644191/RS, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 04/08/2020). Estariam todas as questões não apreciadas, abrangidas pela decadência (Tema 975 do STJ) ou, inversamente, poderiam ser reavivadas eternamente em sede revisional, mesmo sem terem sido suscitadas originalmente (ADI n. 6096-DF)? A prudência aconselha um esclarecimento e maturação jurisprudencial sobre esse aparente claro residual da matéria.
Um primeiro sinal foi dado. A TNU, quando do julgamento do Tema 265 (PEDILEF 0510396-02.2018.4.05.8300/PE, na sessão de 09/12/2020), fixou a seguinte tese acerca da matéria: "A impugnação de ato de indeferimento, cessação ou cancelamento de benefício previdenciário não se submete a qualquer prazo extintivo, seja em relação à revisão desses atos, seja em relação ao fundo de direito. (Tese que altera a Súmula 81/TNU)".  Resta saber se não haverá alguma área de atrito para com os precedentes do STJ nos Temas 966 e 975.
Enfim, já nos é dado concluir apontando a matriz hermenêutica atual em sede previdenciária, sintetizada a seguir:  I)  "Inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário" (STF, Tema 313); II) "sob a exegese  do  caput  do  artigo 103 da Lei 8.213/1991, incide o prazo decadencial  para  reconhecimento  do direito adquirido ao benefício previdenciário mais vantajoso" (STJ, Tema 966); III) "Aplica-se o prazo decadencial de dez anos estabelecido no art. 103, caput, da Lei 8.213/1991 às hipóteses em que a questão controvertida não foi apreciada no ato administrativo de análise de concessão de benefício previdenciário" (STJ, Tema 975); IV) é inconstitucional a decadência quanto à revisão de atos de indeferimento, cancelamento ou cessação, por comprometerem o direito fundamental à obtenção de benefício previdenciário (núcleo essencial do fundo do direito), em ofensa ao art. 6º da Constituição (ADI n. 6096-DF); V) "A impugnação de ato de indeferimento, cessação ou cancelamento de benefício previdenciário não se submete a qualquer prazo extintivo, seja em relação à revisão desses atos, seja em relação ao fundo de direito” (Tema 265 da TNU, que alterou a Súmula 81 do mesmo órgão julgador)"; VI) cabível a decadência do aspecto revisional respeitante à graduação pecuniária (forma de cálculo ou o valor final) das prestações (ADI n. 6096-DF; STF, Tema 313), de forma que permanecem perfeitamente aplicáveis as Súmulas 443/STF e 85/STJ, que tratam da prescrição das parcelas vencidas, atualmente representadas pelo Parágrafo Único<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> do art. 103, caput da Lei n. 8.213/91.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “A prescrição é a extinção da pretensão à prestação devida – direito esse que continua existindo na relação jurídica de direito material – em função de um descumprimento (que gerou a ação). A decadência se refere à perda efetiva de um direito pelo seu não exercício no prazo estipulado” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 224).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Parágrafo único. Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil".

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JOTA

As linhas mestras fixadas pelas Cortes Superiores sobre decadência em matéria previdenciária

Panorama atual da decadência dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social

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