Coronavírus

Pandemia, emergência e compras públicas: experiências de Brasil e União Europeia

A atual crise traz diversos reflexos para as contratações públicas e exige ações administrativas eficientes

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Crédito: Pixabay

A pandemia causada pela Covid-19 trouxe sérios transtornos ao mundo. O alto grau de contágio desse novo vírus é um verdadeiro desafio para o Poder Público e para a sociedade, que procuram encontrar formas adequadas e eficientes para conter o avanço da doença e salvaguardar a vida e saúde das pessoas.

Impõe-se, ao Estado, o desafio de, em meio a um cenário caótico, adquirir os bens e serviços necessários ao combate à doença.

Com o prolongamento da crise sanitária, a interrupção de cadeias de suprimento e o aumento da demanda por consumo de bens essenciais (alimentos; produtos médicos; produtos de higiene), desenha-se um cenário de escassez.

As compras públicas são, nessa quadra, extremamente afetadas. As amarras impostas ao Estado contratante tiveram que ser relativizadas: o art. 4º da recente Lei nº 13.979/2020, por exemplo, dispensa a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública ora vigente, com vistas ao atendimento da urgência decorrente da doença.

Diante desse cenário, muitos questionamentos se colocam para o Poder Público: como enfrentar uma possível escassez de bens? De que forma o Estado deverá planejar suas aquisições para que não haja nem falta e nem excesso de compras? Em que medida esse planejamento é eficiente? Em síntese, como coordenar os esforços para que sejam feitas aquisições públicas racionais?

O presente texto tentará, de forma concisa, analisar as compras públicas brasileiras no atual contexto de crise sanitária a partir de uma breve comparação com a experiência de outros países que vivem o mesmo dilema, notadamente dentro da União Europeia.

1. Aquisições Públicas de itens emergenciais para saúde na União Europeia

No âmbito da União Europeia, o uso do instrumento Joint Procurement Agreement for the procurement of medical countermeasures (JPA) tem como objetivo primordial a coordenação internacional dos esforços no contexto da pandemia, destinando-se especificamente à aquisição de insumos médicos em geral – não apenas medicamentos.

Surgido no contexto de outra crise global de saúde: a Pandemia do H1N1, o JPA tem por intuito (i) evitar a competição entre potenciais compradores; e (ii) promover a coordenação entre os níveis supranacional e nacional quando da aquisição de insumos médicos.

Todos os Estados da Comunidade Europeia, bem como o Reino Unido, são signatários. O país britânico, contudo, decidiu por não aderir à compra coletiva, apesar de permissão concedida pelo regime de transição do Brexit.

Na prática, o JPA viabiliza que seus signatários autorizem a Comissão Europeia a agir em seu nome e realizar as contratações necessárias, cf. Artigo 4, itens 1 e 2. Há, aqui, um viés tanto de centralização quanto de cooperação: coordenam-se as vontades dos signatários, que serão, por sua vez, centralizadas na figura da Comissão Europeia, responsável pela efetivação das aquisições. Esse modelo Estados permite, ainda, um maior poder de barganha em face dos fornecedores.

Duas possibilidades surgem, a depender do instrumento contratual a ser assinado.

Se o contrato for do tipo direct contract, no qual a duração e a quantidade dos insumos médicos já se encontram pré-determinados, a atribuição da Comissão se exaure com a adjudicação do objeto.

Por outro lado, se o contrato for do tipo framework contract, no qual não se encontram nem a duração e nem a quantidade de insumos a serem fornecidos, a Comissão será responsável pelo seu gerenciamento, até que os contratos específicos sejam assinados pelas partes.

Há, portanto, no âmbito da União Europeia, instrumento jurídico que permita a coordenação de vontades e centralização de esforços para que haja racionalidade e planejamento na aquisição de insumos médicos.

2. Realidade Brasileira

Em um país organizado sob a forma de Estado federativo, como o Brasil, a corrida por insumos de saúde é agravada pelo fato de haver três esferas de autonomia: União; estados (e DF); e municípios – situação acentuada pela possibilidade de os entes realizarem o pagamento antecipado nas licitações e contratos como forma de garantir a aquisição do bem, nos termos do art. 1º. II, da Medida Provisória nº 961, de 6 de maio de 2020. Essa realidade federativa tripartite dificulta – se não impossibilita ­– a centralização de compras por meio de um único órgão ou ente.

A Lei nº 13.979/2020 inova neste sentido e, por meio dos parágrafos 4º a 6º do art. 4º e parágrafo quarto do art. 4º-G (com redação dada pela Medida Provisória nº 951/2020), traz mecanismos de centralização das compras através do Sistema de Registro de Preço para compras diretas, por meio de dispensa.

No caso de licitação, na modalidade pregão, cujo objeto seja a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da Covid-19, o parágrafo quarto do art. 4º-G determina que tais aquisições serão consideradas compras nacionais.

Ao revestir a aquisição de insumos médicos para combate à pandemia da qualidade de compra nacional, pretende-se tentar resolver o problema de competição entre compradores, da escassez de insumos, assim como aumentar do poder de barganha, pois a aquisição se dará de forma conjunta, por meio de quantitativos indicados pelos aderentes, nos termos da regulamentação federal do Sistema de Registro de Preços (Decreto Federal nº 7.892/2013, art. 2º, VI ).

O Decreto Federal nº 7.892/13 limita, todavia, a quantidade de itens a serem adquiridos pelos aderentes ao Registro de Preços: não poderão exceder ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado, na ata, para o órgão gerenciador, o que poderá, na prática, não constituir um real óbice, caso as estimativas que rientarão as aquisições apontem um quantitativo elevado.

Há de se mencionar, ainda, a recente Emenda Constitucional nº 106, de 7 de maio de 2020, que parece corresponder a mais uma tentativa de centralizar e racionalizar aquisições de insumos de saúde.

Seu art. 2º, parágrafo único, permite à União a adoção de procedimentos simplificados para aquisição de equipamentos e insumos de saúde, destinados ao enfrentamento da pandemia, e distribuí-los, a partir de critérios objetivos, devidamente publicados, aos demais entes federados.

Além do exemplo federal, há, no âmbito regional, iniciativas para promover aquisições conjuntas (em situação de normalidade) por diferentes entes federados.

Cita-se o Consórcio Nordeste (Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste), consórcio público de direito público, iniciativa anterior à pandemia, que permitiu aos estados dessa região a realização de compras consorciadas de medicamentos e equipamentos médicos.

O primeiro lote de medicamentos adquiridos coletivamente, por exemplo, trouxe economia de R$ 48 milhões. A coordenação e o planejamento, portanto, mostraram-se aptos a lograr o ganho de escala.

A nível interno de cada ente, vislumbra-se a possibilidade de centralização das aquisições. Quando, contudo, há concorrência de consumo entre órgãos e entidades dos diferentes entes federados, todos em busca de bens que hão de se tornar cada vez mais escassos, temos aí um grave problema.

A magnitude da crise pede que o federalismo cooperativo dos manuais de direito constitucional seja retirado das estantes e aplicado na prática. A utilização, por diferentes entes federativos, de instrumentos de aquisição conjunta de insumos médicos se insere, justamente, nessa ideia.

Conclusão

A crise da Covid-19 trouxe diversos reflexos para as contratações públicas. Exigiu, em um primeiro momento, a flexibilização dos procedimentos licitatórios, o que culminou com a inauguração de novas regras de dispensa.

Tal medida exclusivamente não será panaceia para todas as dificuldades a serem enfrentadas pelo Estado-Comprador. São necessários instrumentos jurídicos que possibilitem, dentro do contexto brasileiro, sanear o problema da competição de compras e da possível escassez de insumos médicos.

A atual crise sanitária reclama ações administrativas eficientes. Tais ações não poderão, contudo, constituir a única frente de combate: a superação da crise exigirá uma participação engajada e solidária da sociedade civil.