Coronavírus

Pagamento antecipado por bens adquiridos pelos órgãos públicos na pandemia

Oportunidade de repensar aspectos da contratação pública

Crédito: Pixabay

Muitas são as indagações surgidas nesse período pandêmico, especialmente nas relações havidas com os entes públicos. Dentre essas estão as atinentes a quando e como podem ocorrer adiantamentos ou antecipações de pagamento aos contratados.

Borbulham notícias sobre fornecedores que condicionam a entrega de produto ao prévio pagamento pela Administração Pública que, por sua vez, está particularmente desafiada a não se enclausurar dado o risco de morte em larga escala.

A malha legal brasileira dissipa regras que partem da premissa de que tutelar o interesse público é antes de tudo agir com desconfiança em face dos operadores econômicos e também do gestor. São inimigos com os quais a conveniência é necessária, mas a prudência recomenda atenção.

Daí um arsenal de normas a criar obstáculos à má utilização dos recursos públicos, gerando, por vezes, uma espiral burocrática não só inábil a assegurar de fato o interesse público, como, por vezes, a ele antagônica, até pela oportunidade de corrupção que encerra.

Claro que o artigo não tem o escopo de defender ilicitudes cometidas por empresas ou por agentes públicos.

A proposta é fomentar a discussão, a partir do momento vivido e no breve espaço destas linhas, as premissas que calçam a estrutura legal aplicável aos contratos do cotidiano da Administração Pública.

A essência da Lei nº 8.666/93 está em atribuir condição de primazia à Administração Pública, reconhecendo-lhe prerrogativas que, muitas vezes, na vida fora dos muros, servem para encarecer as contratações públicas.

O risco de não receber, de receber com atraso e sem juros, de ter o contrato rescindido, ainda que não se possa atribuir falha ao contratado, de sofrer sanções por vezes dilacerantes, contribuem para o alto preço praticado. Engana-se quem acha que a corrupção é a única vilã.

Portanto, a reação de parte importante dos fornecedores hoje apenas escancara a realidade de má pagadora da Administração Pública brasileira.

Claro que também não se pode descurar do que pronuncia a Lei nº 4.320/64 que, não bastasse ter sido concebida em regime autocrático, não conhecia os perfis do atual texto constitucional que cobra eficiência como princípio e nem a realidade atual.

Prevê a citada lei que antes do pagamento (Art. 65) terão lugar o empenho (Art. 58) e a liquidação da dívida (Art. 63), tudo em relação a prestações de bens e serviços já ocorridos. A ela se associa o disposto no Art. 65, inc. II, alínea “c” da Lei nº 8.666/93.

Para condições normais, a regra pode até fazer sentido, embora indiscutivelmente se deva considerar que situações várias, e não apenas a pandemia, justificam o pagamento adiantado para prestígio do interesse público.

O PL 1292/95, em seu Art. 144 § 1º, condiciona a antecipação a uma de duas hipóteses: a) a obtenção de sensível economia de recursos ou se a medida encerrar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço; b) a segunda reflete a experiência atual.

Ainda que limitada a duas únicas situações, a alteração proposta sinaliza um aprimoramento na tratativa da matéria.

Importante recordar que o TCU já se pronunciou favoravelmente à medida em diversos julgados, entre os quais o Acordão nº 4.143/16 da 1ª Câmara, observadas as condições ali contidas.

Parece-nos que a pandemia impulsiona a reflexão, dado que comprova não só a inabilidade das regras ordinárias, como nos convida, uma vez mais, a discutir sobre a relação público-privado.

Repensar a estrutura legal brasileira, em especial as prerrogativas da Administração Pública, tal como ainda constantes da ordem jurídica e agravadas pelo seu mau uso, é urgente.

Consideremos o contido no Art. 78, inc. XV da Lei nº 8.666/93: o não pagamento no momento atrasado, quando a lógica da licitação envolve o planejamento e a indicação, como regra, de recursos orçamentários (Art. 7º, § 2º, inc. III, Art. 14 e Art. 38), deveria configurar verdadeira exceção, aplicável a casos justificados.

Infelizmente, a realidade nos diz o oposto, até porque a Lei nº 8.666/93, especificamente no Art. 78, inc. XV, não é expressa ao sinalizar que se cuida de exceção à regra.

Evidentemente que não precisaria, lida a lei na sua inteireza e considerada a base principiológica a conduzir a atividade administrativa.

Essa e outras tantas cláusulas exorbitantes tornaram-se lugar comum, aplicáveis boa parte das vezes para encobrir ausência de planejamento, quando não caprichos e voluntarismos.

A proposta que hoje tramita no Congresso Nacional de reduzir para dois meses o prazo do inadimplemento “tolerado” (Art. 136, § 2º, inc. IV do PL 1292/95), fixando o dever de atualizar o valor devido quando superior a 45 dias, sem prejuízo dos juros (Art. 140,§ 4º do PL 1292/95), e para garantir os recursos financeiros para custear a execução de obras (Art. 114, § 2º do PL 1292/95) suaviza os dissabores.

Mas permanecem intocadas outras tantas regras relativas a outras cláusulas exorbitantes, mesmo que a experiência ao longo dos anos tenha revelado desacertos na sua utilização.

Essas cláusulas, entre outros fatores, conduzem os privados a cobrar mais pelos mesmos produtos e serviços.

São condições que pesam os ombros do contratado e vão na contramão da política pública de acolhimento de micro e pequenas empresas, além de desestimularem de forma indistinta a participação em certames, quando não a utilização de subterfúgios pelos licitantes, entre os quais, a inflação da proposta.

Em tempos de pandemia, quando a vida das empresas também está ameaçada pelo vírus, repensar essas questões se tornou obrigatório.

Afinal de contas, faria sentido que nos agarrássemos a velhos padrões pelo simples fato de sermos refratários à mudança?

A oportunidade é para refazer as perguntas e ter coragem de criar as novas respostas, indo além do mesmo e do óbvio.