Luiz Eduardo Dias Cardoso

Processo legislativo irracional, punitivismo, tentativas de democratização da legislação processual penal, ativismo, tensões institucionais, insegurança jurídica – todos esses ingredientes fizeram parte, em alguma medida, da trajetória percorrida pelo Pacote Anticrime desde sua proposição inicial, há praticamente um ano. O Pacote Anticrime já representa, por conta disso tudo, um episódio marcante na sempre tortuosa História do Direito Penal brasileiro.
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A começar pelo processo legislativo, infenso a qualquer forma de racionalidade<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Elemento central das metas prometidas pelo Governo Federal para seus primeiros cem dias, o Pacote Anticrime não foi precedido de qualquer debate público, de forma que as instituições cotidianamente envolvidas no sistema de justiça criminal foram afastadas da construção dessa proposta. Por ocasião de sua apresentação, o projeto, em um silêncio eloquente, não foi acompanhado de qualquer exposição de motivos; apenas consignou o mote de enfrentar o crime violento, a corrupção e a criminalidade organizada<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Muito embora uma exposição de motivos tenha sido acrescida à proposta encaminhada à Câmara dos Deputados, seu teor – um mix de paráfrases com alusões a ordenamentos jurídicos estrangeiros e estatísticas nada confiáveis – é pouco elucidativo e, mais, denota a limitação da lógica subjacente aos dispositivos ali contidos, bem como a carência de solidez teórica e empírica da proposta.
Com efeito, as 20 medidas propostas pelo Governo Federal são imbuídas, em geral, da premissa de que o recrudescimento do sistema penal – invariavelmente acompanhado do desprezo a cláusulas constitucionais – é a melhor forma de combater a criminalidade. O punitivismo, portanto, é a tônica do Pacote Anticrime desde seu nascedouro.
No Congresso Nacional, de forma nada surpreendente, o projeto foi conduzido mais por razões político-partidárias do que por qualquer lógica de política criminal. De todo modo, a formação de um Grupo de Trabalho, constituído com o fim de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, acrescentou novas nuances ao Pacote Anticrime, a começar pela análise conjunta do PL n. 10.372/2018, elaborado por Comissão de Juristas coordenada pelo então Ministro da Justiça Alexandre de Moraes.
No GT, algumas das principais e mais polêmicas propostas do Pacote Anticrime foram derrotadas – caso do plea bargain, da execução em segunda instância e da excludente de ilicitude para agentes de segurança pública. Paralelamente, dispositivos bastante relevantes foram acrescentados ao projeto, em meio aos quais o exemplo mais simbólico é aquele relativo ao juiz das garantias. Verifica-se aí, então, uma tímida tentativa de democratização da legislação processual penal brasileira, de forma a, acentuando as reformas já realizadas em 2008 e 2011, garantir a acusatoriedade da ação penal, para que o Brasil deixe de ser a ilha inquisitória em meio a uma América Latina eminentemente acusatória.
Mas nem tudo, é claro, são flores. Essas modificações ocorreram de forma abrupta e, de certo modo, surpreendente. Além disso, como também se verificou em relação à proposta do Governo Federal, não houve qualquer estudo de impacto político-criminal, tampouco um amplo debate que congregasse as instituições envolvidas na persecução penal. Para piorar, a despeito da dimensão das mudanças provocadas pelo Pacote Anticrime em sua versão final, a vacatio legis foi de apenas 30 dias, o que é agravado pela ausência de regras de transição. Mais uma vez, a irracionalidade do processo legislativo se fez presente.
Sancionado pelo Presidente da República na véspera do Natal – não sem suspense quanto à possibilidade de veto em relação ao juiz das garantias, a qual acabou por não se confirmar –, o Projeto de Lei converteu-se na Lei n. 13.964/2019, que entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020.
Mas como nada é simples no iter do Pacote Anticrime, o Min. Dias Toffoli, na condição de Presidente do STF, acolheu medidas cautelares postuladas em ADIs propostas contra alguns dos dispositivos da nova lei – inclusive aqueles relativos ao juiz das garantias – e suspendeu a sua vigência por 180 dias.
Entre a prudência e a violação à tripartição do Poderes, a suspensão concedeu mais tempo para que os Tribunais se adaptassem às significativas mudanças promovidas pela Lei n. 13.964/2019.
Quando a estabilidade parecia se instalar, o Min. Luiz Fux, substituindo Dias Toffoli na presidência do STF, revogou a liminar de seu colega e suspendeu, indefinidamente, a vigência dos dispositivos concernentes ao juiz das garantias, ao impedimento de juiz que conheça de prova ilícita, ao arquivamento do inquérito policial e à ilegalidade da prisão pela não realização da audiência de custódia em 24 horas. Nem mesmo o art. 3º-A – espécie de miniconstituição do Código de Processo Penal – ficou incólume à decisão de Fux.
Entre as justificativas, mencionou-se a ausência de estimativas de impacto financeiro e de dotação orçamentária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> – deficiência que, se realmente é verificada em relação ao juiz das garantias, também o é quanto a outros dispositivos (como aqueles relativos a aumento de penas). Chegou-se ao ápice – até agora, pelo menos – da celeuma que acompanha o Pacote Anticrime desde a sua proposição. A medida, de caráter eminentemente ativista, aprofunda a violação à tripartição dos poderes e acirra as tensões institucionais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, porque despreza a lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada por seu proponente, o Poder Executivo.
Conjugada a deficiência da proposta do Poder Executivo, a irracionalidade que permeou a atuação do Poder Legislativo e a temeridade da conduta do Poder Judiciário, chega-se ao resultado final: uma síntese, repita-se, daquelas que representam as principais características do sistema penal brasileiro. O Pacote Anticrime e o seu tortuoso percurso são emblemáticos quanto à insegurança jurídica que permeia o Direito Penal e o Processo Penal, cujas normas são tratadas à revelia de qualquer racionalidade procedimental ou material.
No final das contas, o pessimismo e a negatividade que permeiam este texto talvez possam ser contrastados com uma singela razão para otimismo: a esperança – provavelmente vã – de que essa trajetória legislativa deixe uma lição, no sentido de que a legislação penal e processual penal deve ser tratada, técnica e racionalmente, com o cuidado de quem manipula liberdades alheias e a mais gravosa forma de exercício do poder estatal.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre a racionalidade do processo legislativo, remete-se à obra de José Luis Díez Ripollés (La racionalidad de las leyes penales. Madrid: Editorial Trotta, 2003), que a decompõe em cinco níveis: racionalidade ética, teleológica, pragmática, jurídico-formal e linguística. Precisamente sobre a racionalidade legislativa, no nível da racionalidade pragmática, Raquel Scalcon (Breves reflexões sobre a racionalidade do processo legislativo e seu impacto na presunção e no controle constitucional da lei penal. In: D'AVILA, Fabio Roberto; ANTUNES, Maria João; GIACOMOLLI, Nereu. (Org.). Direito Penal e Constituição. Diálogos entre Brasil e Portugal. Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2018, v. 1, p. 397-407) a subdivide em racionalidade no impulso, no tempo e no modo de condução do processo legislativo.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sobre a forma inicial de apresentação do Pacote Anticrime, remete-se a CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. “Projeto de Lei Anticrime”: uma análise preliminar. Disponível em: <a href="https://consultorpenal.com.br/projeto-lei-anticrime-analise-preliminar/">https://consultorpenal.com.br/projeto-lei-anticrime-analise-preliminar/</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Quanto aos impactos práticos e às eventuais dificuldades de implementação da novidade legislativa, v. LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal">https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> No que toca à reação de boa parte do Poder Judiciário à instituição do juiz das garantias, vale a leitura de texto do Desembargador Ney Bello (Juiz das garantias: de te fabula narratur. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2020-jan-19/crime-castigo-juiz-garantias-te-fabula-narratur">https://www.conjur.com.br/2020-jan-19/crime-castigo-juiz-garantias-te-fabula-narratur</a>).

03/10/2019 Solenidade de Lançamento da Campanha do Projeto Anti

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JOTA

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