Gustavo Lemes de Queiroz

Laura Clímaco Bemfica de Faria

Pietra Vaz Diógenes da Silva

A sabedoria popular ensina há anos que saco vazio não para em pé, em uma demonstração folclórica da importância da alimentação para as nossas atividades cotidianas. No entanto, em uma análise jurídica voltada para o direito à alimentação, cabe ir um pouco adiante: será que, para preencher esse saco, qualquer conteúdo serve?
Na perspectiva da alimentação, o trabalho pioneiro de Josué de Castro em seu livro Geografia da Fome, publicado pela primeira vez em 1946, demonstrou que a alimentação vai além de apenas ingerir comida. O autor constatou que diversos segmentos da população do Brasil, apesar de comerem todos os dias, sofriam lentamente da fome, devido à falta recorrente de determinados nutrientes em suas dietas – trata-se da chamada “fome oculta”. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Dessa forma, é possível concluir que não basta deixar o saco em pé: é preciso dar sustentação a ele. De fato, o direito à alimentação é complexo; sua denominação mais precisa no campo dos direitos humanos, atualmente, é “direito humano à alimentação adequada”, reforçando a necessidade da adequabilidade do alimento para que tal direito seja efetivado em sua completude. A busca por uma alimentação verdadeiramente adequada, assim, tem sido um grande desafio para as sociedades atuais, mesmo quando o acesso ao alimento é garantido.
As diretrizes internacionais para definir o que se compreende como alimentação “adequada” podem ser verificadas em documento publicado em 1999 pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU: o <a href="https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Comentario-Geral-No-12.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Comentário Geral número 12</a> ao artigo 11 do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)</a>. De acordo com o documento, a alimentação adequada está intrinsecamente relacionada com as condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas, etc. em que o alimento foi produzido, distribuído e consumido. Ademais, é preciso haver sustentabilidade: os alimentos, bem como seus modos de obtenção, devem ser passíveis de acesso para a geração atual e também para as gerações futuras, sem comprometer ainda os demais direitos – uma demonstração da interdependência que caracteriza os direitos humanos.
O Comentário ressalta ainda que é preciso que o alimento seja disponibilizado em quantidade e qualidade consoante às necessidades nutricionais dos indivíduos, bem como seja culturalmente aceitável e livre de substâncias adversas. Este último item significa, de acordo com análise de <a href="https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-A89LDS" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Cristiane Kaitel em sua tese de doutorado</a>, que o alimento não pode estar contaminado ou adulterado por má higiene ou por manuseio incorreto em quaisquer das fases da cadeia da alimentação. Nesse sentido, é preciso pensar, na perspectiva da sustentabilidade e da adequabilidade, nos destinatários do produto final e nos – muitos – destinatários do custo ambiental e sanitário para a sua produção.
Como exemplo dessa tensão, tem-se o recente caso das ilhas caribenhas de Martinica e Guadalupe, que são regiões administrativas ultramarinas da França. Em janeiro e fevereiro de 2021, <a href="https://www.france24.com/en/france/20210228-thousands-protest-in-france-s-martinique-against-insecticide-impunity" target="_blank" rel="noopener noreferrer">eclodiram manifestações populares</a> devido aos efeitos do uso de clordecona nos bananais cultivados nas ilhas. A banana é a <a href="https://la1ere.francetvinfo.fr/chlordecone-scandale-etat-grand-dossier-836440.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">fruta mais cultivada em ambos os territórios</a>, sendo uma de suas principais atividades econômicas e fonte de emprego.
A clordecona é um dos itens da <a href="http://chm.pops.int/Countries/StatusofRatifications/Amendmentstoannexes/tabid/3486/Default.aspx" target="_blank" rel="noopener noreferrer">lista de poluentes orgânicos persistentes</a> a serem eliminados pelos países signatários da Convenção de Estocolmo de 2001. A substância, que era amplamente utilizada como pesticida em Martinica e Guadalupe desde 1972, foi proibida na França em 1990 e, em 1993, nas duas ilhas. No entanto, a clordecona já havia contaminado profundamente o solo e as águas das ilhas caribenhas, e atualmente já <a href="https://www.france24.com/en/france/20210228-thousands-protest-in-france-s-martinique-against-insecticide-impunity" target="_blank" rel="noopener noreferrer">contamina mais de 90% de sua população adulta</a>.
De acordo com o professor José Eli da Veiga, <a href="https://jornal.usp.br/atualidades/o-brasil-nao-controla-o-uso-excessivo-de-agrotoxicos/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">em entrevista concedida em 2018</a>, Martinica e Guadalupe são dois territórios com altos índices de câncer, desregulação hormonal e malformação fetal. Apesar das consequências perceptíveis do desequilíbrio ecológico e sanitário bem na origem da cadeia produtiva das bananas, que põe em xeque os direitos humanos das gerações atuais e futuras das ilhas, essa crise não é compartilhada com os demais territórios: a banana em si, que é um dos principais produtos de exportação, não carrega grandes traços da clordecona, que <a href="https://la1ere.francetvinfo.fr/sites/regions_outremer/files/assets/documents/2020/05/26/192286_synthese-etude-kannari-chlordecone-organochlores-2013-2014_2-1382598.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">concentra-se em taxas mais elevadas nos alimentos mais próximos do solo e na água</a>.
O estopim das manifestações populares de 2021 foi uma audiência ocorrida em Paris, referente a uma ação coletiva martinicana que já dura quinze anos e demanda indenização por danos generalizados devido à exposição e contaminação dos requerentes à clordecona. Na ocasião, porém, <a href="https://www.economist.com/the-americas/2021/05/22/two-caribbean-islands-wrestle-with-their-colonial-powers" target="_blank" rel="noopener noreferrer">foi levantada a possibilidade de prescrição do caso</a>, levando milhares de pessoas aos protestos.
Todo esse imbróglio, que ainda está sem desfecho, mostra como o direito humano à alimentação adequada não é nada simples ou pontual. Todas as etapas de produção e consumo são imprescindíveis para a verificação de sua efetividade, que ainda tem implicações em uma gama de outros direitos. Isso porque, embora o impacto sanitário e ambiental da cadeia produtiva não tenha, necessariamente, uma relação direta com a carga nutritiva adequada do alimento destinado ao consumidor final, ou mesmo com sua adequação cultural e subjetiva à dieta do alimentado, tal impacto pode subsistir por um longo período de tempo, infligindo danos irreparáveis ao meio ambiente e aos sujeitos envolvidos, mesmo que eles se encontrem distantes dos processos produtivos no espaço ou no tempo.
No Brasil, essa questão também é delicada. O país possui amplo histórico de dificuldades para a concretização do direito à alimentação. Nos últimos anos, e especialmente a partir da pandemia de COVID-19, o problema da fome se aprofundou. De acordo com <a href="http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">pesquisa realizada em 2021</a>, os moradores de 55,2% dos domicílios brasileiros convivem com insegurança alimentar, sendo que 20,5% da população total do Brasil não tem acesso a alimentos em quantidade suficiente e 9% sofre de insegurança alimentar grave, encontrando-se em situação de fome. Esses dados alarmantes demonstram a urgência de enfrentar a questão da perspectiva da quantidade e da distribuição, mas é essencial também pensar na qualidade.
A erradicação da fome, ou a concretização do direito humano à alimentação adequada, é uma pauta inadiável, mas não deve ser tratada de qualquer forma, justamente em razão de sua complexidade. A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lei de Segurança Alimentar e Nutricional</a> prevê a alimentação como direito de acesso universal, regular e permanente a alimentos de maneira adequada, balizada pela garantia da saúde, respeitando a diversidade cultural e buscando a adoção de práticas sustentáveis.
As dificuldades para isso são muitas. Como demonstram os estudos da obra <a href="https://www.observalei.net.br/ambito-do-observatorio/elaboracao-legislativa-em-direito-agroalimentar" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Elaboração Legislativa em Direito Agroalimentar</a>, a normatividade brasileira agroalimentar é exemplo de um sistema multinível, em blocos e complexo, que articula o direito à alimentação com o direito à saúde e afeta uma imensa variedade de destinatários.
<blockquote class="jota-article__eye">A competência normativa compartilhada por diversos órgãos federais, estaduais e municipais, por muitas vezes em desarmonia, revela um denso cipoal normativo, no qual perder-se não é nenhuma surpresa.</blockquote>
Nesse sentido, como é possível garantir a sustentabilidade nas longas cadeias de produção, distribuição e consumo de alimentos, se o sistema normativo da área é tão desordenado que dificulta até mesmo a identificação do direito vigente? Como é possível garantir um alimento nutritivo, saudável, sustentável – enfim, adequado –, evitando efeitos indesejados na saúde e no meio ambiente, se o campo normativo da alimentação é falho? Como lidar com conflitos de competência, embates políticos materializados em atos normativos sobre as escolhas concernentes a cada instituição, insegurança jurídica e falhas na comunicação entre agentes normativos, produtores e demais setores sociais?
O que se vê é que essas múltiplas facetas do direito à alimentação são interdependentes e complementares entre si, sendo essenciais para que o direito à alimentação seja alcançado de maneira coerente consigo mesmo, sem prejudicar os alimentados no presente ou no futuro, como apontam as tensões vividas em Martinica e Guadalupe. É preciso que o sistema normativo agroalimentar seja aprimorado, sendo mais consistente e eficaz, para que essas qualidades repercutam no direito que ele pretende concretizar.
A sustentabilidade, assim, é elemento essencial para a adequabilidade na produção e na distribuição do alimento, promovendo não apenas a nutrição, mas também a integridade ambiental e o respeito aos demais direitos dos afetados pelo consumo e pela produção dos alimentos, seja na nossa região ou nas vizinhas, e para a nossa geração ou para as futuras.
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sustentabilidade

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JOTA

Martinica e Guadalupe revelam a importância da produção sustentável para uma alimentação adequada

Oui, nós temos bananas - mas falta sustentabilidade

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