Cristiana Losekann

O desastre de mineração de responsabilidade das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton ocorreu em novembro de 2015 e atingiu Mariana, o Vale do Rio Doce e a costa brasileira no estado do Espírito Santo. Apesar de diversos grandes acordos terem sido feitos, nenhum deles foi plenamente cumprido e nem capaz de resolver as controvérsias que envolvem a reparação do desastre.
Até hoje se discute a definição de quem foi atingido e como será reparado. Da mesma forma, os danos ambientais e sua reparação ainda estão em discussão. As disputas continuam com o envolvimento, agora, do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Os acordos foram sendo criados como adaptações dos acordos já existentes. O primeiro acordo chamado TTAC criou a Fundação Renova e estabeleceu os parâmetros gerais da reparação. O segundo acordo, chamado Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), teve como principal crítica ao primeiro a ausência de participação e de instrumentos amplos de diagnóstico ambiental e socioeconômico do desastre realizado por entidades independentes das empresas.
Portanto, foi determinada a contratação de duas empresas para elaboração de diagnósticos (Lactec e Integratio) e outra empresa (Ramboll) para realização de auditoria nas ações da Fundação Renova. O segundo acordo não agradou também pela falta de participação dos atingidos e, então, foi criado um Termo Aditivo ao TAP que adicionava uma proposta de participação dos atingidos no diagnóstico e construção de soluções de reparação.
Esse acordo foi o que mais se aproximou das expectativas dos atingidos e inseriu conceitos e princípios amparados em discussões de tratados internacionais, como é o caso do conceito de centralidade no sofrimento da vítima. O termo aditivo também formalizou um pedido vindo das comunidades atingidas que consistia na viabilização de assessorias técnicas escolhidas por eles para atuar no apoio às demandas mais diretas e pontuais dos atingidos.
Contudo, esse termo aditivo foi logo transformado em outro acordo que tinha como objetivo “unificar” as vias de ações da reparação construídas no primeiro e no segundo acordo. Assim, surgiu a proposta de um terceiro acordo chamado TACGov que prometia resolver o problema da ausência de participação das pessoas atingidas, tanto através das assessorias técnicas, quanto de um sistema de representação dos atingidos na estrutura da Fundação Renova.
Esse terceiro e último grande acordo chegou a ser homologado em juízo, mas nunca se concretizou. Desta vez a atuação do juiz do caso foi decisiva ao desconsiderar os aspectos já pacificados em acordo e iniciar uma série de diálogos com escritórios particulares de advocacia que demandavam indenizações em nome de conjuntos específicos de atingidos.
Foi em função dessas relações estabelecidas entre o juiz e advogados que o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com um mandado de segurança e com uma arguição de suspeição contra o juiz do caso. O MPF entendeu que o juiz aconselhou as empresas e esses advogados e, com isso, violou seu dever de imparcialidade como julgador. Mais tarde, o TRF1 rejeitou o pedido do MPF e o juiz não só continuou no caso, como emitiu diversas decisões criando um modelo próprio de indenizações (Novel) diferente daquilo que estava acordado.
Com uma série de grandes acordos importantes não cumpridos as próprias instituições de justiça envolvidas entraram num emaranhado de difícil solução. A situação de atritos entre as instituições provocou a entrada de novos atores: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) que através do Ministro Fux ingressam em uma posição inusitada de mediação dos mediadores. Esses dois entraram no caso com o objetivo de fazer uma repactuação, ou seja, refazer um acordo entre todos esses atores que não estavam se entendendo, as instituições de justiça e as empresas rés.
Parte do problema desse caso vai além dos superpoderes das empresas sobre o processo de reparação. Há uma série de aspectos das próprias instituições envolvidas que se constituem como obstáculos, entre eles, sobretudo, uma dimensão concorrencial existente entre as instituições e a entrada de uma série de conceitos exógenos e gerenciais que, além de questionáveis, quando mal usados, geram os impasses que vemos nesse caso.
Essa sucessão de acordos inefetivos traz diversas consequências ruins. Estas recaem, para além dos atingidos que não veem seus danos reparados, sobre as próprias instituições de justiça e dizem respeito à desconfiança, falta de adesão, e até a uma discussão de falta de  capacidade estatal e resolutibilidade.
Explico: Cada acordo e seu tempo envolvido gerou custos ao Estado. São quase 6 anos de força tarefa do MP, de núcleos especializados da DP, do envolvimento de quase todas as instituições de justiça em rodadas e mais rodadas de negociações com escritórios de advocacia das empresas; há aí um custo financeiro, institucional e social. Mas, se instituições perdem a confiança e a sua capacidade de fazer valer seus princípios e resoluções, as consequências são ainda piores e extrapolam os contornos deste caso.
Muitos acordos são firmados em nome da resolutibilidade de conflitos para a redução da judicialização. Essa parece ser a tônica atual de instituições que em geral são propositoras de ações judiciais. O grande trunfo do acordo para essas instituições é mostrar seu desempenho institucional e sua capacidade de apresentar além do conflito, a solução para ele.
Há também um evidente ganho de protagonismo na competição entre instituições, ao invés de ser o judiciário a resolver o problema, agora, sobretudo o Ministério Público surge como uma instituição inteligente e capaz de resolver os mais diversos conflitos sociais.
Contudo, é necessário certa cautela para que esses elementos não virem argumentos falaciosos. Existem casos e casos, e o caso deste desastre não envolve disputa entre times de futebol, mas, violações de direitos de milhares de pessoas e de futuras gerações.
Além disso, trata-se de um confronto em que os oponentes são os inventores das mais badaladas técnicas de mediação, escritórios de advocacia prestigiosos e internacionalizados. E, finalmente, trata-se de construir um acordo que substitui uma ação civil pública, instrumento jurídico que tem um escopo demasiadamente amplo para ser limitado em um acordo qualquer.
Em 3 evidências nós conseguimos observar que os acordos em questão não garantiram resolutibilidade, eficácia ou acesso à justiça, deixando de ter a mesma função garantidora de direitos que a ação civil pública a qual substituíram. A primeira evidência está no efeito de backlash de judicialização. Segundo os dados do observatório nacional de questões ambientais do CNJ existem ao menos 573 ações judiciais contra a Fundação Renova, o principal fruto do primeiro grande acordo. Ou seja, o acordo gerou uma judicialização adversa.
A segunda evidência está na ação judicial ajuizada na Inglaterra em nome de mais de 200 mil indivíduos atingidos, 25 municípios brasileiros, 530 empresas, uma arquidiocese católica e membros da comunidade indígena Krenak, requerendo cerca de 5 bilhões de libras contra uma das rés, a BHP Billiton. Tal ação só se sustenta lá pois foi considerado que há risco real de que as instituições judiciais brasileiras não garantam os direitos desses atingidos.
A evidência disso é apresentada na falta de demonstração de enforcement das instituições brasileiras em relação às empresas rés. A terceira evidência é a denúncia protocolada na Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro por não garantir que seja assegurada a dignidade humana das pessoas atingidas, a punição e a cessação das violações de seus direitos humanos.
Mas, a pergunta que você pode estar se fazendo é, se um acordo homologado em juízo não é cumprido, ele não deveria ser executado? Qual o sentido de produção de acordo se a qualquer pretexto uma das partes pode sair do acordado sem consequências?
A resposta para esta questão é ainda mais inusitada. Ao invés de executar o acordo, a ação do judiciário foi criar um modelo próprio de reparação em conjunto com escritórios de advocacia e contra as demais instituições de justiça responsáveis pelo último acordo em vigor, o Novel que já foi citado antes.
O modelo criado pelo juiz está longe de responder aos pontos pleiteados nas diversas ações civis públicas e limita-se a prescrever parâmetros de indenização dos atingidos. Mas, ao invés de uma decisão fundamentada em critérios técnicos sobre os danos já levantados pelos diversos experts contratados, o que o juiz fez foi uma espécie de decisão mediadora, ao evocar a noção de “justiça possível” no lugar do estabelecimento da justa reparação.
O texto da decisão, replicado para diversos casos, revela na verdade a “decisão possível” tendo em vista a posição do julgador. A tentativa de uma decisão mediadora é tão evidente que foi incluída uma cláusula que define a obrigatoriedade de desistência da ação na Inglaterra e define a quitação geral dos danos.
A linha argumentativa da decisão constrói uma relação forçosa entre uma pretensa flexibilização proporcionada pela decisão e a necessidade de renúncia à ação judicial na Inglaterra. Argumenta-se que estaria sendo concedida uma “flexibilização de critérios probatórios em favor dos atingidos” a qual permitiria que “um maior contingente seja incorporado ao sistema de indenização simplificado” fundamentando-se na concepção de “justiça possível” e que isso conduziria a uma solução definitiva para o caso.
A partir disso a articulação forçosa que é construída na decisão conduz a uma ideia de que algo estaria sendo concedido ao atingido mesmo sem evidente direito e que por isso o mesmo deveria abrir mão do litígio do exterior para que não fosse configurado o recebimento de indenização duas vezes pelo mesmo crime. A evidência de repercussão do caso Inglês no âmbito local está exatamente na artificialidade da relação causal criada já que não existe relação necessária entre o litígio que corre da Inglaterra e o tal acordo proposto pelo juiz.
A linha argumentativa tem vários problemas e entre eles está a atribuição e adjetivação de seu próprio conteúdo no trecho “Trata-se, portanto, de uma decisão claramente benéfica e favorável aos atingidos”  o que coloca o juiz em um duplo papel de ator e intérprete da ação decisória.
Mas, para além disso, extrapola o âmbito do julgamento em questão e cria uma projeção de ato supostamente ilícito ao atingido, para o qual ele já antevê um tipo de julgamento de ilicitude. Dessa forma, extrapola o âmbito da ação em questão (Novel) e pretende produzir um efeito sobre outros litígios, inclusive em âmbito internacional.
A partir dessa observação acerca do papel do juiz deste caso está claro que ao criticar a solução via acordos que vêm sendo propostos, não se trata de achar que a decisão de um único sujeito dará conta de resolver um caso de tamanha magnitude. Já vimos que não. Mas, não se pode, também, simplesmente substituir uma ação civil pública por um acordo negociado nos moldes empresariais. A questão está em construir um acordo que tenha a mesma grandeza em termos de princípios e garantia de direitos que uma ação civil pública, e que por esta qualidade ganhe a adesão do público beneficiário.
Lembro-me do dia em que cheguei na comunidade de Povoação no ES e lá encontrei um atingido com um calhamaço de papéis encadernado e marcado com post-its coloridos. Tratava-se da ACP dos 155 bilhões proposta pelo MPF que ele mesmo, sem cursar direito, havia estudado com o objetivo de usá-la como instrumento para ajudar a sua comunidade.
As comunidades afetadas esperam por uma reparação que seja estabelecida em termos de direitos e resguardadas todas as garantias frente aos riscos que este desastre ainda significa aos seus futuros. Quaisquer acordos e decisões que não estejam baseados nisso significam uma diminuição do arcabouço institucional.
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Os tropeços da justiça brasileira no caso do desastre em Mariana e Rio Doce

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JOTA

Entre acordos e decisões ruins as instituições de justiça não conseguem garantir a reparação aos atingidos