Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote>“Our common law owes its strength to the creative genius of judges who, by obeying their own doctrines and principles, have generally proved more competent to untie the knots of human conflict than has Parliament.”
<footer>Roger Scruton</footer>
</blockquote>
O direito marítimo internacional é um mundo à parte. Praticamente todo ele baseado no direito inglês, conta com uma longa história de desenvolvimento de institutos próprios, entre os quais se destaca o da sobre-estadia ou “demurrage”. Trata-se de uma cláusula indenizatória em contratos de afretamento naval pela demora em liberar a embarcação. A "demurrage" é, de fato, o feijão-com-arroz da litigância marítima internacional, já que, por motivos diversos, as embarcações raramente são liberadas no prazo acordado, conferindo ao instituto uma preeminência indiscutível no comércio mundial.
O conceito de "demurrage" foi recentemente objeto de uma fina clarificação pelo Judiciário inglês em um caso de importância global. No último dia 18 de novembro, a Corte de Apelações da Inglaterra e do País de Gales publicou a sua decisão no caso Eternal Bliss<a href="#_ftn1">[1]</a>, no qual o ponto central era a extensão de uma cláusula de "demurrage" em um contrato de afretamento, mais especificamente, se ela cobriria apenas o ressarcimento pelo excesso de tempo da embarcação na operação de carregamento ou descarregamento no porto ou se, alternativamente, cobriria também outros danos causados pelo atraso. Em outras palavras, a Corte clarificou se seria possível ou não recuperar perdas e danos em geral, em adição à cobrança da taxa de "demurrage".
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Os fatos do caso são clássicos. Trata-se de um contrato de afretamento naval para uma série de viagens de transporte de soja entre a América do Sul e a Ásia, firmado em 30 julho de 2014, entre K-Line, como armadores, e Priminds, como afretadores. O contrato continha a cláusula-padrão de "demurrage" do modelo Norgrain 73. O navio nomeado, em junho de 2015, foi o Eternal Bliss, que, no caso em tela, referia-se a uma viagem específica para embarque de 70,133 Mt de soja do Porto de Tubarão, no Brasil, e desembarque no Porto de Longkou, na China. Devido a congestionamentos e falta de espaço de armazenamento no porto de destino, o Eternal Bliss ficou ancorado por 31 dias antes de atracar no cais. Ao descarregar, a carga apresentava avarias, com mofo e compactação por todos os porões.
O dano à carga, da ordem de US$ 1,1 milhão, foi indenizado ao comprador pelo armador, que, por sua vez, demandou ressarcimento do afretador, em adição à taxa de "demurrage", por intermédio de um procedimento arbitral. A única alegação de quebra contratual contra o afretador foi a de que ele teria falhado em entregar a carga dentro o prazo estipulado. Havia, contudo, indícios de que a carga teria sido embarcada já com um grau alto de umidade para a viagem pretendida. A questão, apesar disso, passou a se constituir exclusivamente em um ponto de direito, qual seja, o dos limites da cobertura da cláusula-padrão de "demurrage" do contrato. O tribunal arbitral, assim, dentro do procedimento previsto pela Seção 45 do Arbitration Act 1996, peticionou ao Judiciário inglês para buscar um esclarecimento sobre o ponto jurídico em questão.
Em primeira instância, o juiz Andrew Baker decidiu que o armador poderia, sim, cobrar perdas e danos em adição à taxa de "demurrage". Partindo da definição consagrada de "demurrage" como a soma acordada entre as partes a ser paga a título indenizatório pela demora no carregamento ou descarregamento além do prazo estipulado, o juiz Baker declarou que “acordar uma taxa de demurrage confere uma qualificação acordada à impossibilidade do armador de usar a embarcação para gerar fretes por emprego futuro em respeito à demora da embarcação depois de expirado o prazo de entrega, nada mais”. Assim, no caso em tela, seria possível recuperar outras perdas e danos não cobertos pela cláusula indenizatória de "demurrage", tendo por base uma única quebra contratual.
Em sede de apelação, contudo, a decisão foi revertida. O relator, Lord Justice Males, resumiu a questão a definir o conteúdo da indenização de uma cláusula de "demurrage". Segundo ele, trata-se, especificamente, de uma questão de interpretação contratual, uma vez que, em princípio, na indústria marítima, as partes são livres para acordar quais perdas serão cobertas por uma cláusula de "demurrage". No caso em tela, contudo, dado que se tratava de uma cláusula-padrão, Lord Justice Males entendeu que se tratava de decidir a questão como um ponto de princípio geral. Dessa maneira, então, “na ausência de qualquer indicação contrária em um contrato de afretamento específico, a demurrage liquida a totalidade dos danos decorrentes da quebra do afretamento por parte do afretador ao deixar de completar as operações de carga dentro do tempo de permanência e não apenas alguns dos danos. Consequentemente, se um armador pretende recuperar danos para além da sobre-estadia decorrente de atraso, deve provar a violação de uma obrigação separada".<a href="#_ftn2">[2]</a>
Lord Justice Males entendeu que essa interpretação é a que ofereceria maior claridade e segurança jurídica ao instituto. Além disso, os operadores da indústria continuariam tendo a liberdade de variar contratualmente o escopo da cláusula de "demurrage". Dada a importância do tema para o comércio global, foi dada permissão para apelar para a Suprema Corte do Reino Unido, que deverá pronunciar-se de maneira definitiva sobre o assunto. Cenas interessantes dos próximos capítulos.
Ressalte-se, cara leitora, que o caso é de extrema importância para os exportadores brasileiros. Como Lord Justice Males ressaltou, os fatos do Eternal Bliss não são usuais, porque, normalmente, as bills of lading estariam sujeitas às Regras da Haia-Visby, o que eximiria o armador de responsabilidade pelos danos à carga, especialmente se ele puder provar que ela havia sido embarcada já com um alto grau de humidade, como parece ter sido o caso em questão.
Em outras palavras, se os armadores, em face dos afretadores, não puderem recobrar indenizações pagas aos compradores por danos à carga em adição às taxas de "demurrage", é de se esperar que se voltem para os vendedores para recuperar eventuais perdas. Os produtores e exportadores brasileiros, em suma, devem se preparar para enfrentar uma onda de litigância internacional a partir de agora. A corda sempre estoura do lado mais fraco.
<hr />
<a href="#_ftn1">[1]</a> K Line Pte Limited v Priminds Shipping (HK) Co Limited (“Eternal Bliss”) [2020] EWHC 2373 (Comm)
<a href="#_ftn2">[2]</a> Ibid, [52].

direito marítimo

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JOTA

Cláusula indenizatória em contratos de afretamento naval está no centro de apelação que pode impactar Brasil

Os riscos para exportadores brasileiros na cobertura do &#8216;demurrage&#8217;

Os riscos para exportadores brasileiros na cobertura do 'demurrage'

"Demurrage", cláusula indenizatória em contratos de afretamento naval, está no centro de apelação que pode impactar exportadores brasileiros