“I can see vast changes coming over a now peaceful world, great upheavals, terrible struggles; wars such as one cannot imagine (…). I see further ahead than you do. I see into the future. “
- Sir Winston Churchill, com apenas 17 anos, em 1891.
Não são necessários os poderes de clarividência do buldogue britânico para se perceber que vastas mudanças globais já estão encomendadas. Ainda em plena pandemia, assistimos ao esfacelamento, em pleno ar, do mundo tal qual o conhecemos. Novas modalidades de interação humana, inteligência artificial, extinção da classe média, Segunda Guerra Fria. O sistema internacional do pós-guerra encontra o seu ocaso, e, no horizonte, divisa-se um período de tribulações apocalípticas. O diabo sai do redemunho, e nos coloca de ponta cabeça no meio dele.
O sistema internacional contemporâneo foi erigido ao final da Segunda Guerra Mundial, nas famosas “Conferências de Guerra”, mantidas entre os líderes das potências aliadas, entre 1941 e 1945. Dentre essas conferências, destacam-se os encontros de Bretton Woods e Dumbarton Oaks (1944), nos quais o arcabouço jurídico-institucional do pós-guerra foi desenvolvido, e os encontros de Yalta e Potsdam (1945), nos quais as esferas de influência geopolítica globais foram delimitadas, marcando o início da Guerra Fria. Uma cortina de ferro caía sobre o mundo, como pregava Churchill em seu discurso “Os Tendões da Paz”, proferido em 5 de março de 1946.

Em linhas muito gerais, pode-se afirmar que o sistema internacional contemporâneo passou por três grandes fases: Guerra Fria, Pax Americana e Decadência Espiritual. A primeira fase, das conferências de Yalta e Potsdam, em 1945, até à queda do Muro de Berlim, em 1989, é marcada pelo conflito geopolítico das duas superpotências, os EUA e a URSS. Com fim da URSS, em 1991, solidifica-se a segunda fase, marcada pela hegemonia norte-americana e a sua consequente “irracional exuberância” econômica dos anos 1990, como a batizou Alan Greenspan. Essa segunda fase se encerra com o estouro da bolha da Nasdaq, ao longo do ano 2000, e os atentados do 11 de setembro de 2001. A partir daí inicia-se, então, um período de decadência espiritual e econômica do sistema internacional do pós-guerra, que perdura até os dias atuais.
Esse sistema internacional, desde a sua gênese, já trazia em seu bojo as sementes de sua própria destruição. A opção por um padrão monetário internacional puramente fictício, explicitamente partir de 1971; o crescimento econômico baseado em padrões irracionais de consumo, que põem em risco o equilíbrio ambiental do planeta; e a ênfase puramente retórica em valores humanos, cuja aplicabilidade real é negada nos próprios epicentros do poder, são apenas três exemplos de germes que desde o início corroíam o sistema pelas suas bordas. Esses germes, agora, brotaram, cresceram e se voltam, como cavaleiros do apocalipse, para a destruição mesma do sistema que os gestou.
São quatro os principais cavaleiros do apocalipse, que estão, de fato, enterrando o sistema internacional erigido ao final da Segunda Guerra: a pandemia de COVID-19, a crescente desigualdade, o surgimento de novos centros de poder - em especial a China, e os impactos da inteligência artificial. Repare, cara leitora, que o sistema internacional está em plena desintegração, sob os riscos principais de eclosão de um conflito armado de grandes proporções e da constituição de um novo sistema baseado não no Direito e nos valores humanos, mas em uma visão ao mesmo tempo mais tecnológica e mais primitiva, de anti-humanismo segregacionista.
O primeiro cavaleiro do apocalipse é, sem dúvida, a pandemia de COVID-19. A pandemia alterou profundamente a forma como as pessoas se relacionam entre si, com impactos ainda imprevisíveis a serem sentidos por anos a fio. Já está claro, contudo, que o ideal de um mundo globalizado sem fronteiras, uma “aldeia global”, apresenta-se, essencialmente, como um risco sanitário. Restrições à circulação de pessoas, controle de fronteiras e quarentenas possivelmente voltarão a fazer parte do procedimento padrão internacional, como de fato o haviam feito até o final da Segunda Guerra. Isso sem mencionar o movimento protecionista e nacionalista que se já se manifesta com muita força. Adeus turismo de massas. Acabou-se o que era doce.
O segundo cavaleiro do apocalipse é a crescente desigualdade, que se verifica em escala mundial. A classe média encontra-se em processo de extinção, dando lugar a um rígido sistema de estratificação social, com parcos meios de ascensão, que se cristaliza em um padrão binário, de pouquíssimos ricos e de muitos pobres. A extinção da classe média é, em si, um subproduto de um fenômeno mais amplo, que é o da transição de um sistema econômico baseado no investimento e na produção, para outro baseado no crédito e no consumo. O resultado é um processo inflacionário de ativos reais, como imóveis, crescentemente inacessíveis à classe média que se vê, além disso, a cada dia sendo mais e mais substituída por tecnologia autônoma. O resultado é o acirramento dos extremismos e do populismo, nos quatro cantos do globo, ameaçando de morte a democracia e as liberdades civis. Desta vez não haverá trabalho para libertar.
O terceiro cavaleiro do apocalipse é a alteração do equilíbrio de poder internacional pela emergência de novos atores, em particular da China.
Graham T. Allison cunhou o termo “armadilha de Tucídides”, para indicar a aparente tendência histórica de ocorrência de um conflito armado toda a vez que uma potência emergente ameaça a posição hegemônica de uma potência dominante.
Em seu livro, Destined For War: Can America and China escape Thucydides's Trap?, Allison analisou 16 casos históricos de situações em que uma potência emergente desafiava a posição da potência hegemônica, concluindo que em 12 desses casos o desfecho foi uma guerra. O fato é que se verifica uma tensão crescente entre os EUA e a China, que não parece arrefecer na atual administração Biden. O termo “Segunda Guerra Fria” já se tornou mesmo de uso corrente. A administração dessa tensão será, a partir de agora, um dos principais pontos da geopolítica global. Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.
O quarto e último dos principais cavaleiros do apocalipse é a nova revolução tecnológica, causada pela inteligência artificial, cujos efeitos são pervasivos e potencializantes dos outros três cavaleiros. Se por um lado a tecnologia permitiu que as pessoas continuassem interagindo, ainda que de forma online, durante os períodos mais duros de lockdown, ela também vem substituindo, continuamente, a necessidade de trabalho humano. A renomada consultoria McKinsey estima que até o final da década cerca de 40% dos postos de trabalho no mundo todo podem ser deslocados pela tecnologia. Isso representaria um universo de cerca de 800 milhões de pessoas que veriam seu ganha-pão literalmente desaparecer. Além disso, empresas como a Neuralink, de Elon Musk, vêm estudando possibilidades de se criar híbridos de inteligência humana e artificial, pela implantação de eletrodos cerebrais. Segundo Musk, seu objetivo seria o de criar uma possibilidade de “cognição super-humana”, para fazer face à ameaça que ele vê de a inteligência artificial destruir a humanidade. Não, cara leitora, ainda não estamos em uma odisseia no espaço. Mas quase. Adeus, planeta dos macacos.
Esses quatro cavaleiros do apocalipse, enfim, estão em um estágio avançado de sua campanha para destruir o mundo como o conhecemos. Certamente, um novo sistema internacional surgirá dos escombros de Bretton Woods e Dumbarton Oaks, com ou sem a emergência de uma terceira guerra mundial. Que sistema será este, dependerá das escolhas que nossa geração fará a partir de agora, sob o risco mesmo de encerramento da nossa presença, ao menos da forma como a conhecemos, neste planetinha azul.
O grande advogado Sobral Pinto aconselhava aos jovens do século XX que lutassem para que o mundo voltasse à belle époque, o período anterior à Primeira Guerra Mundial, quando o mundo era organizado juridicamente, quando o Direito regia a vida do homem como uma realidade e o cotidiano das pessoas não era conduzido pela força, pela violência. “Se este mundo existiu, ele pode voltar”, pregava o grande tribuno. Noves fora, ainda é um bom conselho. A defesa intransigente do Direito e da ordem jurídica é a única proteção que temos contra a barbárie, que desta vez virá no lombo de um processo de desumanização tecnológica. O diabo está a espreita, em cada esquina, no meio dos redemunhos. Na confiança está o perigo.