Caio Borges

A proposta de uma nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental (PL 2159/2021), que tramita no Senado Federal sob a relatoria da senadora Kátia Abreu, seria, na sua concepção original, um passo importante para racionalizar e dar mais eficiência aos processos de licenciamento ambiental de atividades potencialmente degradantes do meio ambiente no país.
No entanto, a atual versão do PL parte de premissas ou propõe remédios que podem vir a atentar contra a proteção ambiental e dos direitos difusos e coletivos, a ponto de <a href="https://cebds.org/publicacoes/posicionamento-sobre-a-lei-geral-do-licenciamento-ambiental-pl-3-7292004/?utm_campaign=posicionamento_sobre_a_lei_geral_do_licenciamento_ambiental&amp;utm_medium=email&amp;utm_source=RD+Station#.YNIAwOhKhPY" target="_blank" rel="noopener noreferrer">atrair a oposição mesmo do setor empresarial preocupado com a sustentabilidade</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Dentre as mudanças, uma é particularmente relevante, porém menos notada que as demais: a alteração do regime de responsabilização das instituições financeiras por possíveis danos ambientais causados por empreendimentos e atividades que estas financiem e que estejam sujeitos ao licenciamento.
<blockquote class="jota-article__eye">Tal como se encontra na atual versão do texto em discussão no Senado Federal, a abordagem do PL do Licenciamento Ambiental sobre o assunto, além de ser a mais radical dentre todas as versões que já circularam nos últimos anos, é absolutamente inadequada e incompatível com a sistemática constitucional e infraconstitucional de proteção socioambiental no país.</blockquote>
Segundo o art. 54 do PL em questão, uma instituição financeira que exija a apresentação de licença válida para o empreendimento ou atividade a cargo de terceiro não poderá ser responsabilizada por danos eventualmente deles decorrentes. Caso deixe de exigir a apresentação de licença válida, a instituição financeira seria subsidiariamente responsável, na proporção de sua contribuição para o evento danoso.
O que parece, à primeira vista, algo razoável, não o é. Sem dúvidas, a exigência de uma licença válida é um requisito básico de uma boa avaliação da conformidade legal de um projeto a ser financiado. No entanto, essa conduta não pode servir de parâmetro único para a aferição de uma eventual responsabilidade civil dos agentes financiadores por danos ambientais.
Se aprovada, tal medida irá gerar distorções profundas ao atual regime de responsabilidade civil no país e irá neutralizar os esforços do Banco Central do Brasil (BCB) em modernizar o marco regulatório brasileiro no que tange ao gerenciamento do risco socioambiental no Sistema Financeiro Nacional (SFN).
Nesse sentido, são duas as principais fragilidades no tratamento que o PL do Licenciamento Ambiental dispensa ao assunto.
Primeiro, o veículo escolhido é inapropriado para esse tipo de reforma legal. Trata-se de uma lei que regula aspectos gerais do licenciamento ambiental. Além da questionável técnica legislativa de combinar matérias estranhas entre si, seria mais adequado se o Congresso Nacional regulasse tal questão por meio de uma legislação específica sobre a obrigatoriedade das sociedades empresariais de realizar uma diligência socioambiental para evitar e mitigar danos decorrentes de suas atividades, como as que vêm sendo implantadas em várias economias avançadas.
Esse tipo de legislação pode esclarecer, de modo mais coerente e articulado, a conexão entre a responsabilidade civil face às expectativas e exigências normativas sobre o escopo, o formato e o alcance da obrigação da empresa de realizar a devida diligência socioambiental.
Essa é a solução jurídica que vem sendo adotada por países como o Reino Unido, Alemanha, França, Holanda, Noruega, Suíça, Finlândia, Estados Unidos e a própria União Europeia, que está na iminência de aprovar <a href="https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2021-0073_EN.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">uma nova legislação com efeitos extraterritoriais que irá exigir das empresas privadas a adoção de medidas obrigatórias de diligência para a prevenção, monitoramento e mitigação de possíveis impactos socioambientais</a> decorrentes de suas atividades, inclusive nas cadeias produtivas globais
Uma maior harmonização entre o ordenamento jurídico brasileiro e o dos referidos países traria maior segurança jurídica e reduziria os custos de transação. Não é à toa que os países mencionados estão promovendo convergências entre seus arcabouços jurídicos, fenômeno este que parece completamente alheio ao debate brasileiro.
Segundo, no seu mérito, o art. 54 do PL sobre a responsabilidade civil ambiental das instituições financeiras dá um tratamento jurídico insuficiente à própria realidade que ele visa regular.
Ao limitar-se à formalidade burocrática da existência de uma licença ambiental – que, pelo próprio PL, será cada vez mais baseada em autodeclarações do próprio empreendedor e menos por uma avaliação independente do órgão ambiental – e ao enfatizar, de modo pouco técnico, que os financiadores não possuem papel fiscalizatório sobre a regularidade ambiental dos empreendimentos, a regra ignora a diversidade e a complexidade das operações, produtos e serviços oferecidos pelas instituições financeiras.
A enorme gama de produtos e operações que podem ser ofertados e estruturados pelas instituições financeiras resulta em uma arquitetura contratual bastante variada. Para cada tipo de operação, os riscos incorridos pela instituição financiadora podem ser maiores ou menores, assim como o envolvimento desta no desenho e monitoramento pode variar de modo significativo para cada tipo de projeto.
Inclusive, empreendimentos com maior impacto socioambiental, como as operações de project finance, tendem a exigir da instituição financeira um grau elevado de envolvimento em todas as etapas do ciclo do projeto (análise, enquadramento, aprovação, acompanhamento, avaliação) do que os de menor impacto.
Desta forma, uma lei que minimamente considere a riqueza e a complexidade da atividade de intermediação financeira não pode eleger como única medida de diligência socioambiental a mera exigência de apresentação de uma licença ambiental válida pelo empreendedor. A esse respeito, a atual regulação do risco socioambiental no SFN já exige das instituições financeiras medidas que vão muito além da mera e protocolar exigência de uma licença válida.
A Resolução 4.327/2014 do Conselho Monetário Nacional (CMN) sobre as Políticas de Responsabilidade Socioambiental (PRSA) exige das instituições financeiras a criação uma PRSA e um plano de ação para sua implementação, além de uma governança mínima e de rotinas, procedimentos e sistemas de controles internos para o gerenciamento do risco socioambiental.
A regra em vigor sofrerá significativos aprimoramentos a partir de normas que estão sendo gestadas pelo BCB, no âmbito da sua agenda de sustentabilidade, anunciada em 2020. O Edital de Consulta Pública nº 85, recém-encerrado para comentários públicos, é um exemplo.
Reconhecendo a necessidade de superar o atual modelo regulatório, que pouco diz sobre o que deve fazer parte da diligência, e de modo a atender a expectativas de investidores internacionais preocupados com as questões ‘ESG’, o Banco Central propõe uma série de novos e sofisticados critérios para nortear a diligência socioambiental das instituições reguladas.
Percebe-se, a partir da leitura de tais normas, que o escopo da regulação setorial do Banco Central é consideravelmente mais completo do que o objeto do PL de licenciamento, pois exige ações de diligência que possam de fato permitir a identificação, mensuração e mitigação dos riscos socioambientais. Destaca-se, no caso da norma ainda em discussão, a exigência de que o financiador avalie continuamente o grau de suficiência das medidas mitigatórias do risco socioambiental e a necessidade de considerar a real capacidade das contrapartes e terceiros de cumprir com suas obrigações legais e contratuais.
Ao romper com a lógica da regulamentação do Banco Central sobre o gerenciamento do risco socioambiental, amesquinhando o papel das instituições financeiras na prevenção e mitigação de danos socioambientais associados às suas atividades, o PL do licenciamento ambiental esvazia toda a agenda de sustentabilidade da autoridade monetária. Não há outra conclusão possível.
Antecipa-se o argumento de que uma regulação setorial mais exigente justificaria um tratamento mais brando no tocante à responsabilidade civil, já que as instituições estariam sujeitas à supervisão do BCB nessa dimensão do risco socioambiental.
Nada mais equivocado.
A responsabilidade civil é um componente fundamental de qualquer regime jurídico que se pretenda eficaz na prevenção e a repressão a condutas antijurídicas.
É certo que a exata medida em que o regime de responsabilidade civil irá cumprir com sua dimensão dissuasória de condutas indesejadas dependerá da calibragem jurídica de seu desenho e da sua real aplicação.
Mas é justamente para distribuir, de forma equilibrada, os ônus e os deveres, entre as partes de uma relação jurídica, pela internalização de externalidades negativas ao meio ambiente decorrente de atividades econômicas de risco, que um regime jurídico de responsabilidade civil deve prever diferentes tipos de responsabilidade.
Isentar completamente todo um setor econômico de categorias mais rigorosas de responsabilidade, como a objetiva e solidária, <a href="https://undocs.org/A/HRC/32/19" target="_blank" rel="noopener noreferrer">vai contra recomendações da ONU sobre o desenho de regimes jurídicos efetivos domésticos para a responsabilização de atores privados</a> por danos socioambientais, pois desestimula a adoção de políticas corporativas e procedimentos de vigilância eficazes para lidar com situações de elevado potencial de riscos e impactos.
Ademais, a real aplicação prática do instituto da responsabilidade civil nos tribunais pátrios em causas envolvendo danos ambientais decorrentes de empreendimentos financiados por bancos e outras instituições financeiras mostra que, ao contrário do que normalmente se leva a crer, há um amplo espaço disponível para a construção de interpretações sensíveis aos pleitos das instituições financeiras quanto ao alcance das normas de responsabilidade civil, mesmo na esfera judicial.
A existência de casos isolados, em que possa ter havido a imputação de responsabilidade a uma instituição financeira pelo esgarçamento do nexo de causalidade, ou a existência de precedentes sobre o conceito expandido de “poluidor indireto”, que trataram da matéria apenas em abstrato, não podem servir de justificativa para uma reforma legal despida de razoabilidade e tecnicidade. Um debate desta relevância não pode ser pautado pelos seus extremos.
Caso seja aprovado pelo Senado Federal e sancionado pelo presidente da República, são mínimas as chances de que o PL da Lei Geral do Licenciamento e seus dispositivos mais controversos, como o art. 54 sobre a responsabilidade civil das instituições financeiras, não venham a ser questionados em juízo.
Caberá a todas as partes envolvidas avaliarem o custo de uma judicialização evitável, que apenas agravará o quadro de insegurança jurídica que tanto preocupa os setores produtivos e os participantes do mercado financeiro.
Uma batalha judicial sobre esse dispositivo apenas irá drenar recursos e obstruir a formação de consensos e alianças tão necessárias para que o sistema financeiro nacional, que já ocupa uma posição de vanguarda em aspectos como tecnologia e inovação em produtos e serviços de varejo e atacado, assuma de vez seu papel de líder global em temas ESG e de sustentabilidade.
<hr />
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JOTA

Atual versão do PL 2159/2021 pode vir a atentar contra a proteção ambiental

O PL de licenciamento ambiental e as instituições financeiras

Atual versão do PL 2159/2021 pode vir a atentar contra a proteção ambiental