José Augusto Fontoura Costa

O esboço dos Princípios para Ativos Digitais e Direito Privado do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit) se encontra em <a href="https://www.unidroit.org/work-in-progress/digital-assets-and-private-law/digital-assets-and-private-law-public-consultation/">consulta pública</a>, com abertura para sugestões até esta segunda-feira (20). Trata-se de um documento interessantíssimo que, no mínimo, ajuda a sistematizar as questões de Direito Privado e de Direito Internacional Privado referentes aos ativos digitais.
Hoje é corrente o uso das criptomoedas e dos <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/nft">NFT</a>s, bem como o uso de tecnologias de registro descentralizado (distributed ledger). Aliás, não é de hoje que o antigo “mundo virtual” se converteu em uma parte bastante concreta do outrora “mundo real”. Não se trata de fenômeno isolado, mas é profundamente imbricado com a confluência de várias tendências resultantes de mudanças tecnológicas, sociais e econômicas.
As pessoas estão, hoje, habituadas a utilizar e absorver novas tecnologias em grande velocidade e antigas desconfianças referentes à imaterialidade foram se dissolvendo. Além disso, a facilidade de circulação das informações vem ajudando a desterritorializar relações humanas. Por fim, a organização e circulação econômica, marcada pela desmaterialização decorrente, i. a., da securitização e da servicificação da economia criaram um novo cenário para as transações internas e internacionais.
O tratamento dado pelos Princípios é consistente com a busca da adequação das estruturas do Direito Privado, particularmente dos direitos de propriedade, a um cenário em que os ativos digitais representam a dinamicidade, a desmaterialização e a desterritorialização dos fluxos econômicos. Por isso busca-se definir o que são tais ativos em termos de estrutura jurídica, não da base tecnológica, como ponto de partida para a determinação do Direito aplicável e de aspectos referentes a direitos proprietários e suas formas de aquisição originária e derivada, aos ativos não digitais vinculados aos ativos digitais, à securitização e à presença destes ativos nas recuperações judiciais.
É impossível dar conta do conteúdo de um documento extenso e complexo no curto espaço de um artigo informativo. Expresso, porém, meu entendimento no sentido de se trata de um documento importante, abrangente e bem estruturado e merece a atenção dos interessados nos ativos digitais, ou seja, quaisquer pessoas interessadas nos negócios e sua regulação jurídica. Cabe, porém, traçar algumas considerações a respeito de uma pergunta fundamental: como evitar o uso dos ativos digitais para evadir as normas dos Direitos estatais?
A resposta dos Princípios a essa importante consideração se dá a partir de duas importantes estratégias. A primeira é a limitação de sua aplicabilidade a um âmbito material e normativo relativamente estrito: o dos ativos digitais e sua regulação de Direito Privado. Assim, tudo o que não seja especificamente um ativo digital, inclusive aqueles de natureza não digital vinculados a um deles, está fora do âmbito material dos Princípios. Além disso, tudo o que seja matéria pública não se encontra sob a sua cobertura.
Essa estratégia se dá com a articulação, por meio de exceções expressas, entre o Direito dos Princípios (Principles law) e o Direito residual (other law). A regra geral é de que, na matéria objetivamente coberta, o Direito dos Princípios goza de “precedência sobre o Direito residual na medida em que estejam em conflito” (Princípio 3.2). Excepcionam-se expressamente as regras fora do Direito Privado, os ativos não digitais securitizados e aspectos da recuperação judicial, como a classificação dos créditos, as transações fraudulentas e os direitos sobre controle e supervisão do administrador. Observe-se que o texto evita utilizar a expressão “Direito Público” e privilegia “fora do Direito Privado” (outside private law), de modo a afastar de sua cobertura tudo o que não seja referente a direitos de propriedade, mesmo que seu caráter não seja clara e expressamente público.
A segunda estratégia se constrói em torno da determinação do Direito aplicável aos ativos digitais. Destaque-se, inicialmente, que os Princípios gozam de precedência e, portanto, o Direito estatal indicado os deverá respeitar. Dito isso, a construção da vinculação a um Direito estatal se dá sem referência direta a qualquer aspecto territorial ou pessoal, como o lugar do servidor ou o domicílio do titular, mas à determinação voluntária e ao país do foro. Assim, o Direito aplicável deve ser aquele “expressamente especificado no ativo digital” (Princípio 5.1.a) ou “expressamente especificado no sistema ou plataforma em que o ativo digital está gravado” (Princípio 5.1.b), presumindo-se juris et de jure o consentimento de quem negocie o ativo (Princípio 5.2.c). Nesse sentido, entretanto, é importante reconhecer a independência do critério, sendo que a vinculação a um Ordenamento pelo emissor do ativo digital não deve ser compreendida como um resultado do consentimento do adquirente, mas atuar ipso facto, até porque deve ter efeitos sobre terceiros, o que se espera de um direito proprietário, com oponibilidade erga omnes.
Ademais, para o leitor familiarizado com o Direito Internacional Privado salta aos olhos o afastamento em relação à tradicionalíssima regra da lex rei sitae em favor da determinação expressa no texto do ativo ou em seu contexto de gravação. A opção por um critério mais afeito ao campo obrigacional tem por objetivo evitar critérios territoriais, os quais podem não ser tão claros nas relações digitalizadas.
Para os casos em que não houver a expressa menção do Direito aplicável no próprio ativo ou na plataforma ou sistema, é dado ao Estado do foro que adote os Princípios a possibilidade de identificar os aspectos em que se aplica a própria lex fori e, residualmente, a indicação do Direito aplicável conforme as suas regras de Direito Internacional Privado.
Destaca-se o fato de que, ao contrário de grande número dos instrumentos internacionais que empregam técnicas do Direito Internacional Privado, não há qualquer inclusão no texto dos Princípios ou de seus comentários da noção de ordem pública, bem como a normas de aplicação imediata ou normas cogentes. Embora seja inevitável o reingresso desse critério a partir dos Direitos estatais envolvidos, especialmente o do foro, é fato que a relação entre o Direito dos Princípios e o Direito residual não se pauta pela possibilidade de excluir, por razões de ordem pública territorial ou do foro, a aplicação das normas indicadas.
Trata-se, portanto, de uma estrutura bastante interessante de instrumento de uniformização do Direito. Em primeiro lugar, oferece um ponto de partida conceitual importante, pois define de modo claro e tecnicamente neutro o que viriam a ser os ativos digitais e aspectos relacionados. Aponta, ainda, aspectos relevantes da regulação privada desse tipo de ativos, buscando a articulação jurídica de conceitos e problemas como os da aquisição, transferência, adquirente de boa-fé, ativos associados e distribuição da matéria referente a recuperação judicial.
Nesse sentido, estabelece soluções principiológicas padronizadas, importantes para influenciar as formas nacionais de regulamentação da matéria e, ao mesmo tempo, delimitar direitos e obrigações para os Estados que venham a aderir ao texto. Ademais, o emprego da uniformização de Direito Internacional Privado, com a proposição de um critério inovador e a preocupação em circundar a matéria da avaliação de ordem pública a partir da caracterização dos direitos tutelados como privados e, evidentemente, das constantes indicações de que não se pretende gerar qualquer ingerência nas capacidades administrativas e regulatórias dos Estados.
Nesse sentido, o instrumento se destaca como um importante ponto de partida para a reflexão e a eventual regulação legal em matéria de ativos digitais. A grande profusão destes objetos, permeando a realidade das vidas e das relações econômicas, demanda o pronto reconhecimento e tratamento jurídico estruturado da matéria, sem descurar dos aspectos inter e transnacionais. Os Princípios se mostra fundamentais para tanto.

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JOTA

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