Paulo Rená da Silva Santarém

Bruna Martins dos Santos

Daniel A. Vila-Nova Gomes

<blockquote class="jota-article__quote">“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
<footer class="jota-article__quote-cite">José Saramago em "Ensaio sobre a cegueira"</footer>
</blockquote>
Este texto responde ao mérito e às premissas do artigo de Tarso Genro e Pedro Abramovay <a href="https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/03/e-hora-de-rever-o-marco-civil-da-internet.shtml">“É hora de rever o Marco Civil da Internet: Plataformas devem ser responsabilizadas pela desinformação em massa”</a>, publicado na Folha de S.Paulo. Em defesa da lei que já foi, com total justiça, apelidada de “<a href="https://web.archive.org/web/20210225101139/http:/www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/Marco-Civil-porque-Constituicao-da-Internet-/40/30579">Constituição da Internet</a>”, refutamos o tom revisionista expresso no título e alimentado nas últimas semanas.
O primeiro passo é reivindicar o reconhecimento de que a <a href="http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12965.htm">Lei 12.695</a>, de 23 de abril de 2014, o Marco Civil da Internet no Brasil, corresponde a um marco do amadurecimento cívico da regulação para a liberdade de internautas. E às vésperas dos seus primeiros nove anos, o segundo passo é defender a compreensão de que na origem essa norma mundialmente paradigmática (Joel R. Putnam <a href="https://www.youtube.com/watch?v=7jKIfoa-BvE">explica o motivo didaticamente</a>) já se contrapunha à raiz dos recentes acontecimentos excepcionais que fragilizaram o ambiente mundial e nacional das instituições democráticas.
Começando pela origem, vale rememorar: em junho de 2013 milhares de pessoas foram às ruas do país, mobilizadas inclusive – à sombra da Primavera Árabe – por diversos usos das redes sociais. A luta social contra o aumento de tarifas de ônibus e a posterior reação à repressão policial duríssima geraram um mosaico difuso de pautas disputando o protagonismo na busca por ampliar direitos. Nas lutas interpretativas foram conquistados avanços, mas também triunfaram retrocessos: oscilações ideológicas e partidárias que pareciam, à época, fazer parte do jogo democrático, mas que no retrospecto evidenciam já um abuso estratégico da tecnologia – em nome do povo mas contra interesses sociais. A história recente mostra: o atual contexto autoritário não é novo nem decorre das regras de responsabilidade de intermediários previstas no Marco Civil. Ele as precede e de certo modo foi um motivo para a edição da lei, em rechaço.
Não se deve inverter ou sobrevalorizar a relação de causa e consequência. A ocorrência do Brexit, a eleição de Trump nos EUA e a vitória de Jair Bolsonaro no Brasil não deturparam, num passe de mágica, a natureza da internet, nem foram uma ruptura política. Esses momentos denotam uma ameaça que ainda exige permanente cuidado no presente, bem como respeito no olhar retrospectivo ao se projetarem limitações ao passado do Marco Civil da Internet.
A tese da necessidade de uma mudança absoluta desse marco cívico equivale à aceitação irrefletida de um presente de grego. Há uma boa chance de surgirem, de dentro desse “cavalo reformista”, vários riscos à democracia e que podem resgatar antigos inimigos – ainda mais com a aparente dificuldade que o atual governo federal terá ao enfrentar buscar maiorias no Congresso.
Abramovay e Genro vinculam o Marco Civil da Internet ao governo Lula. Ocultam, todavia, que a maior parte dos debates e as mais acirradas disputas se desdobraram durante as gestões de Dilma. Foi a presidenta quem obteve consenso na Esplanada e enviou o projeto de lei ao Congresso Nacional, em 2011; venceu a resistência de Eduardo Cunha e conseguiu a aprovação da lei na Câmara dos Deputados, em março de 2014; e editou o decreto presidencial que regulamenta a lei, em 2016, às vésperas do seu afastamento, como parte do impeachment ilegítimo e golpista. Esquecer esse trauma é injusto e nubla a história do Marco Civil da Internet.
Nem se deve exagerar – como fazem os autores – ao ponto de acreditar que o marco reverteu uma tendência autoritária. Ele se contrapôs, mas estava, esteve e está viva a tradição punitivista que ameaça nossas liberdades dentro e fora da internet. No âmbito nacional, se a Lei Azeredo foi desidratada, a Lei Carolina Dieckmann incluiu um tipo no Código Penal antes da aprovação do Marco Civil.
Snowden expôs os abusos do vigilantismo da NSA nos EUA, mas pouca coisa mudou no cenário da segurança da informação: os Estados exercem um “tecnoautoritarismo” que se soma ao capitalismo de vigilância. Brasil adentro, instalam-se câmeras de reconhecimento facial em parceria com empresas privadas. Na última semana, veio a público o monitoramento de celulares de civis pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), sob o comando de Temer e principalmente de Bolsonaro. E na luta contra a desinformação, muita gente boa se mostra capaz de admitir medidas vigilantistas, a exemplo da rastreabilidade de mensagens instantâneas.
Há mudanças políticas e grave crise democrática em vários países. As redes sociais e seus algoritmos mudaram o ritmo e a intensidade das ilicitudes. Mas seria um erro consertar o que não está quebrado. Os problemas de opacidade, concentração de mercado, exclusão tecnológica e desordem informacional são velhos conhecidos e ocorriam offline. Sua nocividade é agravada pela economia da atenção, mas esses fenômenos operam na camada mais superficial da internet, a das aplicações: serviços online que acessamos via web ou apps, como buscadores, redes sociais, mensageiros, tocadores de mídia etc. A base da estrutura de funcionamento da internet está intacta, e não devemos abrir mão das premissas normativas e operacionais para a proteção de direitos no ambiente online.
Diversamente do que afirmam Abramovay e Genro, tampouco é verdade que o Tribunal Superior Eleitoral (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a>) revisou o Marco Civil. As ações da corte buscaram fundamento específico na legislação e regulação eleitoral e, mesmo na portaria que autorizou a remoção sumária de conteúdos e perfis, foi mantida a lógica da exigência de decisão judicial prévia.
Sim, o enfrentamento à desinformação requer normas legais. Entretanto, não há resposta pronta, gabarito ou receita de bolo que garanta solucionar a questão sem afetar a livre expressão. Por isso mesmo, o debate aberto, público, transparente, participativo – e que flua em consonância com as demandas sociais e tecnológicas – se faz mais necessário do que nunca. E se o Marco Civil jamais pretendeu ser palco exclusivo desse debate, nem foi pensado para neutralizar atividades golpistas, qual o sentido de cobrar a ele esse ônus? Seria como reformar a casa a fim de reduzir o trânsito urbano. Faz sentido investir em isolamento acústico para ter um pouco de paz, mas isso não diminui o engarrafamento.
Um sério entrave aos debates sobre desinformação – dos quais a Coalizão Direitos na Rede (CDR) participa desde pelo menos 2017 – são vozes que emergem como “inventoras da roda” e ignoram as muitas contribuições já feitas. A disputa por protagonismo, inclusive dentro do governo federal, atrapalham a formação de um consenso progressivo.
As organizações da sociedade civil se veem instadas a apagar um incêndio atrás do outro, e a manter viva a memória dos argumentos, mas são <a href="https://oglobo.globo.com/opiniao/pablo-ortellado/coluna/2023/03/o-fim-do-artigo-19-do-marco-civil-da-internet.ghtml">descritas pejorativamente</a> como "defensoras da lei a qualquer custo". A cobrança radical das premissas de liberdades é tida como postura conservadora – e não o contrário. O avanço de novas tecnologias invasivas e medidas de desinstitucionalização deve animar não uma “revisão” qualquer do Marco Civil – que traga o risco de demoli-lo – mas um incremento que possa aprimorar e fortalecer os seus princípios, fundamentos e objetivos, os quais servem hoje como astrolábio para a regulação da navegação na rede. Nessa linha, a CDR lançou em 2022 uma <a href="https://direitosnarede.org.br/campanha/regulacao-de-plataformas/">campanha pela regulamentação das plataformas</a>, com mais transparência, mais direitos e mais democracia.
O sucesso em proteger a internet e a democracia contra ameaças de ataques extremistas deve começar respeitando e preservando o Marco Civil, em seu processo multissetorial de criação e em seu conteúdo sofisticado de balizamento das questões jurídicas da tecnologia digital. Os desafios presentes e futuros exigem novos passos, mas não o apagamento de nossa trajetória. O momento é de aprofundar a afirmação de direitos, e não de abandoná-la arbitrariamente.
Genro e Abramovay aludem, ao final de seu artigo, ao mito da Hidra de Lerna, monstro serpente com corpo de dragão. Listado na mitologia grega como o “segundo trabalho” de Héracles (ou Hércules, para os romanos), a narrativa ensina uma postura prudente e sábia: o semideus precisou do auxílio de Iolau para cauterizar cada pescoço. Em vez de investir furioso com um facão a esmo para cortar as “cabeças” que se duplicam, a vitória contra o “Bicho-De-Sete-Cabeças” se amparou na colaboração.
O Marco Civil da Internet corresponde a uma importante trincheira que, Nós, o Povo, temos utilizado desde 2014 para resistir e defender nossas liberdades comunicativas. Por medo da aridez de um deserto tecnológico, não apaguemos nossas pegadas na areia. De junho de 2013 a janeiro de 2023, é pela defesa das promessas ainda não realizadas desse mesmo Marco que honraremos a memória dessa luta contínua. Se chegamos até aqui – com renovada esperança nos Poderes constituídos, não só pelas eleições, mas principalmente pela reação institucional no dia 9 de janeiro em marcha conjunta pela praça dos Três Poderes – é, também, graças ao Marco Civil da Internet.

Senadores comemoram aprovação do Marco Civil da Internet em 22 abr 2014 crédito Moreira Mariz Agência Senado

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JOTA

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