Cristiano Carvalho

Em 2011, ao defender a minha tese de livre docência intitulada “Teoria da Decisão Tributária”, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Universidade de São Paulo, escrevi que a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-tributaria">reforma tributária</a> era um exemplo clássico de “dilema dos prisioneiros”, interação estratégica modelada pela Teoria dos Jogos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. O dilema representa um jogo não cooperativo, onde os incentivos levam a um resultado coletivo sub-ótimo.
Simplificando, os interesses em questão, dos entes federativos e dos contribuintes não se alinham, o que dificultava a reforma a sair do papel. Problemas há décadas enfrentados pela Analise Econômica do Direito e pela Teoria dos Jogos, e que infelizmente parecem ser uma sina em nosso sistema jurídico, inclusive no seu sub-ramo tributário.
De lá para cá, o nó não se desfez, inclusive cheguei a expor o problema do dilema do prisioneiro aos proponentes do projeto original da PEC 45, os competentes e renomados integrantes do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), em eventos de debate sobre a reforma, nos idos de 2018. O dilema ainda permanece, pois percebemos a falta de alinhamento de incentivos entre o atual governo federal, os estados e municípios. Do lado dos contribuintes, o setor da indústria apoia a reforma, enquanto outros setores como o agronegócio e serviços externam contrariedade em relação a muitos pontos do projeto.
A diferença de lá para cá é que o principal mentor do projeto, o economista Bernardo Appy, um dos fundadores do CCiF, tornou-se o secretário especial da reforma, no atual governo, o que traz mais força à iniciativa. Por outro lado, há considerável resistência por parte do próprio Congresso Nacional, além de governadores, prefeitos e boa parcela dos setores da economia, conforme dito acima. Ainda que a reforma eventualmente seja aprovada, ainda veremos novos capítulos desse drama, seja por alterações e concessões no projeto, seja por posteriores litígios, tanto por parte de entes federativos, como pelos contribuintes.
Pois bem. O governo federal e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, vêm insistindo, de forma quase top down, para que a reforma tributária, em texto substitutivo à PEC 45, seja votada pelo plenário da casa nos primeiros dias de julho. Tal pressão parece ser uma forma de sinalização de virtude, de modo a acumular algum capital político para futuras medidas a serem aprovadas, tais como o arcabouço fiscal, reforma do imposto de renda e os prováveis aumentos de carga tributária. Em outras palavras, ao propor eventuais aumentos de impostos, o governo e sua base parlamentar aliada contariam com a “narrativa” (palavra que o presidente tem apreciado utilizar nos últimos tempos) de ter antes aprovado a reforma tributária, uma espécie de salvo-conduto político.
Ocorre que a pretendida votação “a fórceps” de texto, que sequer é o substitutivo apresentado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro no dia 22 de junho, mas um texto desconhecido dos parlamentares e da sociedade, traz vários perigos que devem ser encarados com cautela e prudência, ainda mais considerando a profundidade da mudança pretendida para o sistema tributário brasileiro. Vamos apontar alguns deles, tomando por base o que foi apresentado como substitutivo alguns dias atrás, já que ninguém sabe o que virá no dia da votação.
A tributação sobre o consumo passaria a ser dual, i.e, na esfera federal, substituindo PIS e Cofins, a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e, nas esferas estadual e municipal, o IBS (imposto sobre bens e serviços), substituindo respectivamente o ICMS e o ISS. O Imposto sobre Produtos Industrializados passaria a ser o imposto “seletivo”, uma espécie de excise tax, de feições puramente extrafiscais.
Quanto à CBS e ao IBS, trata-se de trazer para o país o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), tributo aplicado na maioria dos países do mundo (ainda que não por todos, como p. ex, os Estados Unidos, de estrutura federativa semelhante à nossa, que emprega o Sales Tax, incidente apenas na última operação da cadeia, venda ou prestação ao consumidor). Mesmo que se possa arguir que o próprio IVA já é um tributo ultrapassado, pouco afeito à realidade do mercado digital, certamente é mais racional e eficiente que os atuais ICMS e ISS, ao menos na maioria das versões existentes mundo afora. Mas este é um dos problemas: não se realizaram, ou ao menos não foram apresentadas à sociedade, simulações robustas de como a CBS e o IBS irão se portar em nossa realidade.
O que se sabe das consequências são algumas projeções apresentadas pelos formuladores do projeto, bem como alguns números mágicos sobre eventuais futuros aumentos do PIB nacional, por conta da nova tributação. Alguns setores da economia, no entanto, projetaram substanciais aumentos de carga, especialmente o de serviços, que poderá quadruplicar ou até quintuplicar a atual carga. Considerando que a intenção é que a reforma seja neutra, no sentido de não aumento de carga global, provavelmente esse aumento seria desviado da indústria para os serviços, e a promessa é que um eventual ajuste de preços relativos compensaria este último. Em outras palavras, insumos (bens e produtos) ficariam mais baratos, o que compensaria o aumento no setor de serviços.
Novamente, não se verifica simulações robustas quanto a isso, e ajuste de preços relativos dependem de diversas variáveis micro e macroeconômicas para ocorrerem. Além disso, serviços têm poucos insumos (o principal é a mão de obra, e a desoneração sobre a folha não se encontra no projeto), e a prestação para pessoas físicas não permitirá repassar a carga. Por outro lado, a prestação de serviços para pessoas jurídicas muito provavelmente também encontrará resistência na hora do repasse do imposto, mesmo com o argumento de que poderão tomar crédito sobre a operação, pois o valor nominal da fatura do serviço aumentará significativamente, considerando a provável alíquota final de 25%.
Lembrando que serviços correspondem a mais de 70% da economia brasileira hoje em dia, compreende-se o afã de tributar o setor, porém tal aumento de carga brutal poderá gerar a externalidade de quebrar diversos prestadores, concentrar a atuação em outros poucos, com maior capacidade contributiva, e desincentivar novos negócios e empreendimentos.
Em termos simples, a tributação brasileira sobre o consumo, seja concentrada em bens e mercadorias, seja em serviços, seguiria como uma das mais altas do mundo, permaneceria regressiva e continuaria penalizando a população mais pobre. A não cumulatividade, pretendida como o santo graal para a nossa tributação, pode se mostrar ilusória, pouco eficaz e com altos custos de transação.
Outro perigo é a centralização de poder em um conselho federativo, que regerá virtualmente todos os aspectos do IBS, deixando para a autonomia dos estados e municípios apenas a instituição de alíquota, na prática, liberdade apenas para fixar alíquota que seja menor que o montante global da tributação. Em outros termos, é como se estados e municípios passassem a viver de “mesada” concedida por um ente centralizado, com poderes que os sobrepujam, o que violaria a cláusula pétrea do pacto federativo.
Ainda que supostamente a carga tributária global sobre o consumo permaneça a mesma, o substitutivo menciona também uma futura reforma do imposto de renda, que certamente será majorado, devido à provável tributação sobre dividendos, dentre outras alterações, além de aumento do IPVA, do ITCD e a esdrúxula possibilidade de os prefeitos aumentarem IPTU via decreto
Quanto à regressividade da tributação sobre o consumo, o fim da desoneração sobre a cesta básica igualmente traz preocupações. O argumento dos proponentes é que tal desoneração igualmente é regressiva, pois famílias de renda média e alta também se beneficiam dela, e o fim do benefício fiscal seria compensado com o cashback para as famílias de baixa renda, uma espécie de imposto de renda negativo.
O perigo é que a PEC não apresenta detalhes de como efetivamente se dará essa devolução em dinheiro (seria regulado por futura Lei Complementar, assim como praticamente tudo o mais na reforma), e conhecendo o histórico da governança pública brasileira, é justificável o ceticismo quanto a isso. Como se não bastasse, a ABRAS (Associação Brasileira de Supermercados) estima em cerca de 60% o aumento na carga tributária dos produtos da cesta básica, o que piorará significativamente a vida dos mais pobres se houver o mínimo entrave prático ao cashback.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Ou seja, o aumento da cesta básica afetará imediatamente o bolso das famílias de baixa renda e se o prometido dinheiro não voltar imediatamente para elas, a emenda sairá pior que o soneto.
Outro perigo considerável, que tem sido pouco abordado, é o novo imposto seletivo. A função extrafiscal, hoje aplicada pelo IPI, de forma bastante complexa e ineficiente a bem dizer, passaria a ser função deste novo imposto, cujo texto do substitutivo informa que será cobrado sobre “a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei.” O que até então tradicionalmente se aplicava para desincentivar o consumo de produtos como cigarros e bebidas alcoólicas (com eficiência bastante questionável, devido a inelasticidade da demanda desses itens) passou a incluir a expressão “saúde ou meio ambiente”, sem detalhamento.
Ainda que se possa eventualmente debater se uma tributação pigouviana para evitar poluição ou consumo de produtos prejudiciais à saúde é eficaz, o receio é que esse conceito indeterminado possa eventualmente ser empregado como instrumento para arrecadação ou, pior, de sanção política contra setores ou mesmo pessoas e empresas considerados adversários do governo do momento ou de qualquer futuro governo, já que “ prejuízo ao meio ambiente” , se não tipificado com o devido cuidado, poderia abarcar praticamente qualquer atividade, desde o agronegócio, entretenimento, construção civil, alimentos, cosméticos etc.
Contudo, nem tudo é notícia ruim. É importante também mencionar os pontos positivos do projeto, como por exemplo a não cumulatividade mais ampla do que a atualmente existente nos tributos indiretos, e o fim das bases de cálculo “por dentro”, grandes responsáveis pelas distorções do atual sistema e pela enorme dificuldade na transparência e na identificação dos tributos na formação de preços dos bens e mercadorias.
O fim de benefícios fiscais também busca eficiência econômica, acabando com tributação setorial e com o velho problema econômico de agência, qual seja, incentivos para formação de grupos de interesse e das capturas por estes dos formuladores de políticas públicas, outro fator distorcivo e injusto do sistema. A compensação para o fim desses benefícios seria a criação de um fundo de desenvolvimento regional, a ser regulado por lei complementar (como quase tudo mais). Uma uniformização, em nível nacional, da legislação igualmente é salutar, pois racionalizaria o atual e caótico sistema normativo tributário. Por fim, a tributação no destino teria o condão de amainar a guerra fiscal, problema federativo antigo. Nestes aspectos, o IVA dual (CBS + IBS) apresenta vantagens em relação ao sistema atual .
Somos céticos, todavia, em relação à tão propalada redução de custos de conformidade, atualmente os maiores do planeta. Enquanto houver o regime de transição, o pagador de impostos terá que cumprir dois sistemas simultâneos, o que fatalmente aumentará a complexidade. É bom lembrar que para os contribuintes, a transição se daria em oito anos, enquanto para as administrações públicas, o prazo seria de 50 anos (a longo prazo, estaremos todos mortos, como disse Keynes). É certo que uma mudança brusca seria ainda pior, porém tampouco parece ter havido simulações quanto ao período ótimo dessa transição, ao menos não consta a sua justificativa nos projetos. Nesse ínterim, muito provavelmente aumentará a litigiosidade tributária, tanto entre contribuinte e Estado, como entre os próprios entes federativos.
Portanto, em minha opinião, mesmo na concepção original do IBS, este não se trata de um tributo “ótimo”, pois não atende a todos os requisitos para tanto. Ainda que tenha uma base grande de pagadores, o próprio sistema de não cumulatividade (falho para o setor de serviços), a incerteza do cashback, o desafio do fundo de desenvolvimento regional, dentre outros, tornam o imposto ainda por demais complexo para que alcance o máximo de eficiência. Há muitos “se” e “talvez” na proposta para que possamos vislumbrar uma vindoura tributação nos moldes que Adam Smith propôs em seu A riqueza das nações: um tributo simples, que arrecade o suficiente sem penalizar excessivamente o contribuinte.
Assim, se pudermos sintetizar todos os perigos e receios mencionados em um só, diríamos: a incerteza. A pressa atabalhoada, a falta de transparência sobre o próprio texto final da reforma, as alterações de última hora não debatidas com a sociedade, com os entes federativos ou mesmo com o próprio parlamento amplificam o maior obstáculo ao desenvolvimento do país, que é a falta de segurança jurídica. É certo que o atual sistema não provê segurança, muito pelo contrário, com a sua legislação irracionalmente complexa, enorme litigiosidade e alta carga tributária. Porém, a forma como está sendo encaminhada a aprovação de uma mudança total do sistema tampouco sinaliza qualquer preocupação dos poderes com a estabilidade e a certeza do Direito.
Por outro lado, mesmo que se considere pouco prático um texto constitucional, ainda que por emenda, exaurir o tema que se propõe normatizar, o fato é que a maioria dos aspectos e detalhes importantes relativos à nova estrutura tributária – por exemplo, como se dará o cashback, como funcionarão o conselho federativo, os poderes fiscalizatórios, o contencioso, o fundo de desenvolvimento regional, dentre outros, são delegados à futura lei complementar, e sabemos que o diabo mora nos detalhes. Portanto, a PEC pouco amarra a estrutura, de forma a evitar possíveis e futuros abusos ou regras ruins pelo legislador infraconstitucional.
Assim, estamos diante de um trade-off arriscado: ficarmos com o diabo conhecido, que é o atual sistema, um dos grandes componentes do chamado “custo-Brasil”, ou darmos um passo largo no escuro (e, talvez, cairmos num abismo). Não há dúvida que uma boa reforma tributária é necessária ou mesmo imprescindível para desatarmos esses nós de desenvolvimento, especialmente se for precedida por uma reforma administrativa profunda.
Porém, reformar todo o sistema sem sabermos de forma minimamente clara e segura onde aportaremos é rumar ao desconhecido, talvez sem possibilidade de retorno. É preciso prudência e uma aprovação apressada e pouco transparente é irresponsável e perigosa, e criará incentivos ruins, possivelmente piorando o ambiente de negócios e gerando ainda mais litígios, o contrário do que se quer com a mudança do sistema. Portanto, que o debate siga, para que se possa um dia superar o dilema do prisioneiro da reforma, alinhando os incentivos entre todos os jogadores da tributação brasileira.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Posteriormente publicado em livro, atualmente em sua 2ª edição. São Paulo: Almedina, pp. 119-120.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/abras-sinaliza-que-reforma-tribut%C3%A1ria-pode-gerar-aumento-de-60-em-impostos-na-cesta-b%C3%A1sica/ss-AA1dnTU8">Abras sinaliza que Reforma Tributária pode gerar aumento de 60% em impostos na cesta básica (msn.com)</a>

Plenário do Congresso

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JOTA

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Os perigos de uma aprovação às pressas da reforma tributária

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