Beatriz Barbosa Soares

Esse artigo propõe-se a retratar os obstáculos de carreira de uma jovem negra. Pensei, primeiro, que pudesse ser egoísta ou autocentrada ao falar sobre o tema trazendo a minha vivência como referência, mas ao longo do texto vocês vão perceber que quando conto minha história estou narrando também a vida de muitas outras pessoas negras no Brasil. Como veremos a partir de agora.
Não possuir fluência no idioma inglês é um dos obstáculos mais relevantes. Após três experiências de estágio em órgãos públicos, passei a procurar vagas em empresas privadas e escritórios de advocacia, a "falta" do inglês dificultou ainda mais a minha busca. Participei de muitos processos seletivos, cheguei até às fases finais e semifinais de alguns, mas essa exigência era um impasse. 
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Depois de muita persistência, consegui uma oportunidade no mundo corporativo. A fase presencial desse processo seletivo foi muito marcante para mim, pois em um dos testes os candidatos tinham que falar em inglês e eu pedi a licença para não fazer, pois não me sentia confortável. Finalmente fui contratada!
A falta de inglês para mim e para grande parte da população negra se fundamenta principalmente na desigualdade social e econômica do Brasil. Isso porque entre os mais pobres do país, 75% dessas pessoas são negras<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A renda dessas pessoas, assim como foi a da minha família, é destinada às necessidades básicas; inglês é luxo em meio à falta de recursos. De acordo com um relatório da Oxfam, em 2017, o rendimento médio dos negros foi de R$ 1.545,30, enquanto o dos brancos alcançou R$ 2.924,31.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
O segundo obstáculo que posso trazer é a falta de experiência internacional e o choque de cultura que acaba se conectando com o primeiro obstáculo supramencionado.
Introduzir a pessoa negra no ambiente de trabalho é tão importante quanto investir no pertencimento dela nesse universo.
Eu sempre morei em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, as pessoas que eu convivi durante toda a minha infância e adolescência também eram de daqui, a cultura era a mesma e as condições financeiras eram parecidas.
Em contrapartida, no ambiente corporativo, encontrei um cenário diferente, as pessoas tinham compatibilidade entre si em vivências que eu nunca tive, como andar de avião, passar férias em outro país, fazer ensino médio em outro país e fazer intercâmbio para aprender inglês e outras línguas.
Todas essas experiências oferecem repertórios e competências em maior grau para essas pessoas que são, predominantemente, brancas. Considerando esses aspectos, se estivéssemos em uma corrida a largada não seria a mesma, as condições não são iguais, a competição não seria justa.
O terceiro aspecto que gostaria de assinalar é a falta de representatividade, visto que, das 500 maiores empresas do Brasil, 95% do quadro de liderança é ocupado por pessoas brancas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o que matematicamente não faz sentido se pensarmos que 56% da população brasileira se autodeclara como negra.
Desde pequena fui afetada pela falta de representatividade e isso não mudou quando me tornei adulta. Quando buscava atendimento nos hospitais públicos os médicos eram brancos, assim como os personagens protagonistas e de espaços de poder dos filmes, desenhos e novelas, enquanto os negros ocupavam papéis de seguranças e empregadas domésticas. Não há problema nenhum com essas profissiões. Entretanto, pensem em uma criança negra que busca identificação e o seu lugar de pertencimento, não há referências.
A falta de representatividade me afetou muito na estética e na minha aparência também, os cabelos lisos e as peles claras das bonecas e personagens dos desenhos faziam eu não querer ser como eu sou, negra e de cabelo crespo. Tanto que, até os meus 20 anos (3 anos atrás), alisei meu cabelo. Lembrando que não há problema nenhum em alisar o cabelo, somos livres para escolhermos como nos sentimos bem, porém o meu motivo era para me aproximar do padrão de beleza.
Existem muitas outras dificuldades que não determinam, mas prejudicam a ascensão do jovem negro na carreira. Eu gostaria muito que essa fosse uma história isolada minha e que não tivesse relação com o racismo, mas não podemos fechar os olhos para os fatos.
Com a pandemia, por exemplo, as pessoas negras foram as mais afetadas pelo desemprego, isso porquê via de regra ocupam cargos que exigem pouca qualificação e esses são os primeiros a serem cortados nas empresas em uma situação de crise econômica, segundo o Estadão.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Da mesma forma, podemos tomar como exemplo a baixa escolaridade, visto que a cada 10 jovens negros, 4 não terminam o ensino médio<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e o inadequado saneamento básico, considerando que a cada uma hora e meia morre uma pessoa negra no Brasil por doença relacionada à inadequação do saneamento<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, tema chamado de racismo ambiental, temos, sim, que racializar essas temáticas, pois é uma realidade que afeta em grau superior a população negra do Brasil.
Além de tudo, outra questão que não permite que o jovem negro sequer chegue no mercado de trabalho é a violência, visto que entre as vítimas de violência no país 75% dos mortos pela polícia são pessoas negras<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Os indicadores, dados e estatísticas falam antes de nós, falam mais que nós e falam nos espaços em que não podemos falar.
Todos essas dificuldades aqui apresentadas são, certamente, resultado do racismo estrutural que está arraigado, enrraizado no Brasil. Fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão e quando o sistema escravocrata foi interrompido as pessoas negras foram abandonadas à própria sorte, sem amparo algum, até chegar às nossas gerações.
O combate ao racismo estrutural e suas consequências se torna ainda mais difícil e moroso no Brasil, visto que há um negacionismo e a falsa imagem de democracia racial. Nas palavras de Djamila Ribeiro: “Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Que a minha luta e meu constante crescimento de carreira, assim como de outras pessoas negras, não seja suficiente, não seja usada como manchete de “querer é poder”. Precisamos de oportunidades, de ações afirmativas, olhar direcionado aos nossos problemas, comprometimento e esforço intencional para mudarmos o status quo.
<hr />
O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/13/ibge-dos-135-milhoes-vivendo-em-extrema-pobreza-75percent-sao-pretos-ou-pardos.ghtml
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.cursosead.sp.senac.br/antirracismo/page1.html
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> cursosead.sp.senac.br/antirracismo/page1.html
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://www.estadao.com.br/infograficos/economia,com-pandemia-desigualdade-racial-no-mercado-de-trabalho-bate-recorde,1136046
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/09/4-em-cada-10-jovens-negros-nao-terminaram-o-ensino-medio.shtml
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> https://www.geledes.org.br/a-relacao-colonial-entre-saneamento-basico-e-populacao-negra-brasileira-notas-sobre-racismo-ambiental-genocidio-eugenista-e-estigmas-raciais/
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/negros-sao-75-dos-mortos-pela-policia-no-brasil-aponta-relatorio.htm
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> O que É Lugar de Fala? Djamila Ribeiro

johnathan-kaufman-wsELDlSVQ7A-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Quando conto minha história, estou narrando também a vida de muitas outras pessoas negras no Brasil

Os obstáculos de carreira de uma jovem negra

Obstáculos de uma jovem negra: quando conto minha história estou narrando também a vida de muitas outras pessoas negras no Brasil