Mariana M. Palmeira

Pedro Dalese

A Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/LGPD">LGPD</a>)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> marca um momento importante na defesa de direitos da personalidade na era da sociedade da informação.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Desde sua promulgação em agosto de 2018, a lei tem sido objeto de análises e debates, abrangendo várias áreas de estudo e pesquisa. Um desses campos é o dos neurodireitos, que se refere à proteção dos dados neurais e às questões éticas e legais relacionadas ao uso da neurotecnologia.
Ao observar o contexto histórico, vale ressaltar a obra 1984, escrita por George Orwell (pseudônimo de Eric Blair) na metade do século 20. Nesse livro, Orwell retrata uma distopia em que a supressão da individualidade é utilizada como método de controle e manutenção do poder. Estratégias como a repressão dos sentimentos, memórias e relações pessoais, além da imposição de um pensamento incoerente, são descritas pelo autor. Embora muitas das previsões de Orwell não tenham se concretizado, sua contribuição literária ainda inspira reflexões, inclusive no contexto da sociedade atual.
No campo da privacidade, a preocupação remonta ao século 19, quando Samuel Warren e Louis Brandeis publicaram o artigo “The right to privacy" em 1890, colocando em xeque a insuficiência do direito de propriedade como forma de proteger a privacidade dos indivíduos. Naquele momento dois fatores se mostraram decisivos para o desenvolvimento de um novo direito à privacidade como parte do direito de personalidade: a fotografia instantânea e a florescente indústria de notícias.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Mais de um século depois de Warren e Brandeis, o avanço tecnológico que deu origem à Internet e que transformou a capacidade de coleta e processamento de dados trouxe novas dimensões e preocupações relacionadas à temática da privacidade. Nesse contexto, surgiram discussões sobre a proteção de dados pessoais com uma perspectiva autônoma em relação à privacidade, em especial perante ao uso crescente dos dados pessoais por parte do Estado e de instituições privadas com os mais diversos fins.
Diversos países legislaram sobre a proteção de dados, resultando na criação de princípios comuns que orientaram iniciativas internacionais. Na Europa, as Diretivas 95/46/CE e 2002/58/CE foram marcos importantes na proteção de dados pessoais, culminando no Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD ou mais conhecido como GDPR). No Brasil, apesar da proteção à privacidade ter garantia constitucional, a LGPD representou um avanço significativo, sendo considerada um marco normativo no tratamento de dados pessoais no país.
No entanto, à medida que avançamos no campo da tecnologia, surgem novas fronteiras que apresentam desafios ainda mais complexos relacionados à proteção de dados pessoais. Uma delas está relacionada aos neurodireitos. Os neurodireitos referem-se à proteção dos dados neurais e trazem  questões éticas e legais relacionadas ao uso da neurotecnologia, que permite a coleta e o processamento direto de informações a partir do cérebro humano.
Os primeiros passos para o desenvolvimento da ciência moderna do cérebro foram dados a partir das descobertas de Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) sobre a unidade básica do sistema nervoso.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Cajal produziu as primeiras evidências de que o cérebro é composto por células individuais, mais tarde denominadas neurônios. Ele acreditava que os neurônios serviam como unidades de armazenamento de impressões mentais, como pensamentos e sensações, que se combinavam para formar nossa experiência de estar vivo. Para Cajal, conhecer o cérebro equivaleria a determinar o curso material do pensamento e da vontade, possibilitando a descoberta da história íntima da vida em seu perpétuo duelo com as forças externas.
A neurociência avançou passando pelo desenvolvimento do primeiro eletroencefalograma humano<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, das primeiras conexões entre o homem, o cérebro e a máquina<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, chegando às possibilidades de restauração de funções sensoriais e motoras perdidas devido a lesões ou distúrbios neurológicos. Através de conexões síncronas entre o cérebro e dispositivos eletrônicos e mecânicos com algoritmos capazes de extrair sinais de grandes populações de neurônios, o aprendizado e controle de braços robóticos por pacientes paralisados deixaram de ser assunto de ficção científica.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Todos esses avanços da neurociência têm sido capitalizados por governos de grandes potências regionais nas últimas décadas. Um exemplo é o Projeto Cérebro americano (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies ou Brain),<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> uma parceria público-privada que, desde 2014, já recebeu aportes financeiros próximos a US$ 2,4 bilhões.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> O projeto é voltado para o desenvolvimento de tecnologias de mapeamento do cérebro humano e compreensão de seu funcionamento, visando avançar nas áreas da neurociência, neurotecnologia e tratamento de doenças neurológicas.
Recentemente, um trabalho de cientistas australianos publicado na revista Nature apontou que novas teorias sobre as formas de analisar e entender o comportamento do cérebro humano estão a caminho, e podem colocar em dúvida os antigos paradigmas<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. O que significa dizer que com uma nova compreensão acerca do funcionamento do cérebro, uma nova possibilidade de desenvolvimento tecnológico se abrirá.
No entanto, ao lado dos evidentes benefícios para a humanidade, a exemplo do tratamento de doenças neurológicas, o rápido avanço dessas tecnologias e o potencial de acesso direto ao cérebro humano, traz  preocupações éticas e jurídicas relacionadas aos neurodireitos. A coleta e o processamento de dados neurais podem fornecer informações íntimas sobre o indivíduo, como pensamentos, emoções e até mesmo intenções, levantando questões sobre privacidade, consentimento informado, manipulação e discriminação.
Com nosso DNA já disponível<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> e nossos smartphones transmitindo cada movimento nosso, nossos cérebros são cada vez mais a fronteira final para a privacidade. Nossos cérebros precisam de proteções especiais. Se eles podem ser hackeados e rastreados como todas as nossas outras atividades online e ligações telefônicas, se nossos cérebros estão tão sujeitos ao rastreamento e mineração de dados quanto nossos registros financeiros e compras online, então estamos à beira de algo profundamente perigoso.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
Mesmo que ainda não seja possível afirmar que as neurotecnologias aptas a ler e reescrever a atividade neural estejam completamente consolidadas na pesquisa neurocientífica, destaca-se que as transformações oriundas desse novo estágio científico se pautam, basicamente, em três pilares disruptivos: (i) o surgimento de hardwares tecnológicos que permitem a medicina se valer da neurotecnologia para fins clínicos, bem como possibilitam a criação de canais direto de comunicação entre o cérebro humano e dispositivos externos conectados à internet, como smartphones e tablets; (ii) o fato de que o aprendizado de máquina e outras abordagens de inteligência artificial, em particular, a aprendizagem profunda, rompem fronteiras no que tange às possibilidades de análise e processamento de dados e informações neurais e,<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> por último, (iii) o desenvolvimento de neurotecnologias como interfaces cérebro-computador (ICCs) para além de ambientes clínicos e pesquisas científicas.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
Em conclusão, à medida que avançamos na compreensão e manipulação do cérebro humano, é fundamental aumentar o nível de proteção dos chamados dados neurais. O Brasil já dispõe de um tripé institucional que viabiliza a proteção de dados pessoais: uma lei específica (LGPD), uma autoridade reguladora (ANPD) e a condição de direito fundamental.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> É o alicerce sobre o qual um esforço conjunto, envolvendo governos, instituições, pesquisadores e a sociedade como um todo precisará ser construído para que possamos aproveitar os benefícios da neurotecnologia, ao mesmo tempo em que protegemos os direitos e a autonomia individual.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 04 jun. 2023.
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<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis, D. Right to privacy. Harvard Law Review, v. IV, n. 5, December, 1890.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SCIENTIFIC AMERICAN. The Father of Modern Neuroscience Discovered the Basic Unit of the Nervous System. Disponível em: &lt;https://www.scientificamerican.com/article/the-father-of-modern-neuroscience-discovered-the-basic-unit-of-the-nervous-system/&gt;. Acesso em: 31 mai. 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BERGER, Hans. Über das Elektrenkephalogramm des Menschen. Archiv für Psychiatrie und Nervenkrankheiten. Vol. 87(1), 1929, p. 527-570.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> LEBEDEV, Mikhail; NICOLELIS, Miguel. Brain-Machine Interfaces: From Basic Science to Neuroprostheses and Neurorehabilitation. Physiol Rev. 2017, p. 779.
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<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ESTADOS UNIDOS. The BRAIN Initiative. Disponível em: &lt;https://braininitiative.nih.gov/&gt;, Acesso em: 31 mai. 2023.
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<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> ver mais em <a href="https://www.nature.com/articles/d41586-023-01774-8">https://www.nature.com/articles/d41586-023-01774-8</a>
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<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> FARAHANY, Nita A. The Battle for Your Brain: Defending the Right to Think Freely in the Age of Neurotechnology. St. Martin's Press: 2023.
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<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a><a href="https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/laura-shertel-mendes-encruzilhada-protecao-dados">https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/laura-shertel-mendes-encruzilhada-protecao-dados</a>

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Para aproveitarmos benefícios da neurotecnologia será preciso esforço conjunto de governos, instituições e pesquisadores

Os neurodireitos e a proteção de dados pessoais

Para aproveitarmos benefícios da neurotecnologia será preciso esforço conjunto de governos, instituições e pesquisadores