Rafael de Alencar Araripe Carneiro

O Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) iniciou o ano dando o tom sobre os limites da persecução penal na ambiência digital. No julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 222.141/PR, a Segunda Turma, por maioria, anulou provas digitais cujo acesso ocorrera mediante a dinâmica de “congelamento” do conteúdo de contas eletrônicas gerenciadas por big techs<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
No plano fático, o congelamento dos dados ocorreu por iniciativa unilateral do Ministério Público, que logrou compelir Apple e Google a preservarem o conjunto informacional de contas e IMEI’s coletados nas contas vinculadas aos sócios de uma empresa investigada por supostas irregularidades no Detran do Paraná. Os dados coletados envolviam “informações cadastrais, histórico de localização e pesquisas, conteúdo de e-mails e iMessages/hangouts, fotos e nomes de contatos”. O requerimento do Parquet não teve lastro em qualquer decisão judicial de quebra de sigilo telemático.
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O tribunal considerou três paradigmas no exame da constitucionalidade das medidas de persecução: (i) o objeto de congelamento; (ii) a finalidade do acesso informacional e (iii) o marco protetivo da informação congelada. 
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) autoriza o congelamento dos «dados cadastrais», assim compreendidos apenas aqueles que informam (i) a qualificação pessoal, (ii) a filiação e (iii) o endereço do usuário (§ 3º do art. 10). Portanto, o permissivo legal limita o objeto do congelamento de dados que independe de autorização judicial. No caso concreto, contudo, a determinação do Ministério Público englobou: (i) o “IMEI” (Internacional Mobile Equipament Identify) dos investigados, (ii) os seus históricos de localizações e pesquisas, (iii) o conteúdo de seus e-mails e mensagens (e.g. iMessages, Hangouts), (iv) as suas fotos e (v) os nomes de seus contatos digitais. 
A legislação autoriza, ainda, que as polícias e o Ministério Público requeiram aos provedores de internet – cautelarmente e sem prévia autorização judicial – a “guarda” (ex ante) de «registros de conexão» e aos «registros de acesso a aplicações de internet», desde que, nesses casos, tais atores formalizem – dentro do prazo de 60 dias contados do requerimento cautelar – o pedido judicial (ex post) de acesso a tais registros (§§ 2º e 3º e caput do art. 12).
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A expressão «registros de conexão» compreende somente as informações referentes (i) à data e hora de início e término de uma conexão à internet; (ii) sua duração e (iii) o endereço IP (Internet Protocol) utilizado pelo terminal<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> de envio e recebimento de pacotes de dados (art. 5º, VI). Já os «registros de aplicações de internet» abrangem exclusivamente o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet (Art. 5º, VII).
Enquanto fontes de informação, tais registros possuem extensão probatória limitada e de pouca sensibilidade subjetiva, pois – pelo Marco Civil da Internet – a validade do seu alcance informativo está restrita: (i) ao acesso à identificação cadastral do usuário que é titular do terminal de acesso à internet; (ii) ao locus geográfico desse terminal; (iii) ao tempo de sua conexão de rede e (iv) ao rastro (ou listagem) de aplicações acessadas, sem a divulgação daquilo que sucedeu nessas experiências de suas usabilidade. 
À vista disso, a corte considerou que essas possibilidades de acesso e de conteúdo não vulneram, per se, as esferas de privacidade e intimidade dos usuários de contas eletrônicas, já que – em cenários de transformação digital – a publicidade desse tipo de “rastro” informacional forma parte dos riscos que conformam a moderna dinâmica de interação entre Estado, plataformas digitais e os cidadãos-usuários<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>.
Isso não significa, porém, que seja constitucionalmente válido o acesso instrumental e ilimitado das contas eletrônicas de usuários investigados sem o prévio controle judicial. A manutenção, nos autos, de provas originadas de congelamento que extrapola os supramencionados limites implicaria a chancela jurisdicional de “procura especulativa” que, desde a sua origem, relativizou a garantia constitucional do sigilo informacional com o fito de ulterior obtenção de elementos para a fundamentação futura da atribuição de responsabilidade penal: prática que – pelas óticas teórica<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> e judicial<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a> – enseja nulidade probatória pela caracterização da denominada “diligência prospectiva” ou “pescaria probatória” ("fishing expedition”).
Esse tipo de “coleta” de provas, como bem exposto na literatura de referência<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a>, move-se a partir de incertezas típicas das “expedições de pesca”, donde não se sabe “se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade”, de modo que o agir acusatório não se realiza à luz do parâmetro (concreto) da prova, mas sim do paradigma (abstrato) da “convicção”. Daí ser inquebrantável a relação entre o congelamento de contas eletrônicas e as provas introduzidas no momento instrutório. 
Cabe lembrar que no julgamento da ADI nº 6.387, o STF afirmou a existência de um direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informacional. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 115/2022 positivou esse direito fundamental no art. 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal. Além disso, na análise da ADPF nº 695 o tribunal ressaltou que o tratamento de dados pessoais pelo Estado não deve partir de uma visão dicotômica que coloque o interesse público como bem jurídico a ser tutelado de forma totalmente distinta e em confronto com o valor constitucional da privacidade e proteção de dados pessoais.
Nessa trilha, o recente julgamento do HC nº 222.141/PR pelo STF merece ser assimilado como um marco para a interface entre a persecução penal e a internet, já que o seu sentido resolutivo e os fundamentos apresentados avivam duas grandes projeções. Se, de um lado, o julgamento corrobora a premissa de que, na ambiência digital, a relativização da tutela de contas eletrônicas depende sempre de autorização ex ante do Poder Judiciário (art. 5º, XII, da Constituição Federal), de outro, ele escancara que a efetividade das garantias do processo penal digital demanda releitura não só das responsabilidades informativas de big techs, de plataformas digitais e de empresas provedoras de internet, mas principalmente do modo de interação cooperativa entre elas e os atores da persecução penal.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> O julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 222.141/PR, de Relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, iniciou-se em sessão virtual de 7/4/2023. Após dois pedidos de vista, o julgamento foi retomado na sessão realizada em 06/02/2024.
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Nos termos do art. 5º, incisos II e III, do Marco Civil da Internet, entende-se por «terminal» “o computador ou qualquer dispositivo que se conecte à internet”, enquanto o «endereço IP» designa o código atribuído a um terminal de uma rede para permitir sua identificação, definido segundo parâmetros internacionais”. 
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<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Sobre o tema, vide: LYON, David. El ojo electrónico. El auge de la sociedad de la vigilancia. Trad. Jesús Alborés. Madrid: Alianza Editorial, 1995, p. 322. 
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<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos. 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, pp. 389 e ss. 
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<div id="sdfootnote5">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> STF, 2ª Turma, HC nº 144.159/PR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJE 3/8/2020.
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<div id="sdfootnote6">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> Por todos, vide: ROSA, Alexandre Morais da. A prática de fishing expedition no processo penal. Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal/&gt;. Acesso em: 13-02-2024.
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Os limites do congelamento de contas eletrônicas segundo o STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o ano dando o tom sobre os limites da persecução penal na ambiência digital