Maria Luiza Gorga

A recente notícia de que o Ministério da Saúde prevê um gasto de R$ 250 milhões para o oferecimento de hidroxicloroquina e azitromicina no programa Farmácia Popular como parte de um “kit covid” surpreendeu até mesmo aqueles já calejados com a ladainha a respeito da medicação.
O valor, que permitiria a compra de vacinas – de Oxford, não “daquele outro país” – para aproximadamente 7 milhões de brasileiros<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, vai ser usado para desencalhar os milhões de comprimidos encalhados nos estoques oficiais.
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Só o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército chegou a produzir cerca de 3,2 milhões de comprimidos, tendo hoje 1.456.616 comprimidos para devolução pelos estados que não querem o medicamento e cerca de 400 mil em estoque.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Os insumos foram adquiridos de forma pouco ideal. Conforme apurações, uma das empresas mineiras os vendeu com sobrepreço de 167%, estando sob investigação pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Até junho, os gastos estavam na casa de R$ 1,5 milhão aproximadamente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e, de acordo com dados do Portal da Transparência, as maiores beneficiadas com dispensas de licitação foram duas empresas do mesmo grupo comercial, de Minas Gerais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o mesmo envolvido na importação superfaturada acima mencionada. Além disso, outra empresa, cujo fundador é apoiador do presidente, recebeu contrato por dispensa de licitação junto à Ebserh no valor de R$ 788 mil, por exemplo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A dispensa de licitação, que teve sua aplicação ampliada por novas regras vigentes na pandemia, inflaram as contratações feitas nessa modalidade. Pelo Portal da Transparência, neste ano 83,24% das licitações do Ministério da Saúde foram feitas com dispensa ou inexigibilidade de licitação, num valor total de quase R$ 10,5 bilhões, enquanto o Ministério da Defesa realizou 53,68% das suas licitações nestes formatos, em um valor total de aproximadamente R$ 3,5 bilhões. Colocando um filtro de busca por “cloroquina”, 90% das contratações foram feitas com dispensa de licitação.
Esses valores motivaram reportagens apontando quais seriam os empresários nacionais que estariam ganhando com a febre da cloroquina<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> - e agora pode chover dinheiro a todos os estabelecimentos que conseguirem passar adiante um “kit covid”.
Pois bem. Mais do que as investigações que já estão em curso a respeito de todo esse frenesi de compra e fabricação, a nova situação impõe outra questão: para além do possível prejuízo ao erário (e enriquecimento, quiçá ilícito, de alguns), promover este tipo de ação e gastar este montante com um medicamento que já foi provado por A+B que é não apenas ineficaz contra a covid-19, como também possui efeitos colaterais potencialmente fatais, não seria um atentado aos deveres de honestidade que regem a administração pública?
Promover continuamente um medicamento que é ao menos inútil, e quando o mais fatal a qualquer indivíduo que o tome sem a devida prescrição e acompanhamento médico, bem como fazer com isso passar uma imagem de controle de uma pandemia que mata centenas no país diariamente – o que, por certo, contribui para o relaxamento das necessárias medidas de controle social e isolamento –, não seria um ato contra a segurança interna do país, contra a probidade administrativa, e contra os direitos individuais e sociais (na sua acepção plena, inclusive de direito à vida e à saúde)?
<blockquote class="jota-article__eye">A resposta positiva – ou majoritariamente positiva – a qualquer uma destas questões escancara mais uma situação que aponta para a prática de atos definidos como improbidade administrativa e até mesmo como crimes de responsabilidade.</blockquote>
Infelizmente, parece-nos que as instituições apenas colocarão mais esse fato no bolso, deixando impunes seus praticantes.
Se a responsabilização dos (des)mandos não poderá trazer à vida as milhares de vítimas, ou dar qualquer respaldo aos milhões de contaminados, pelo menos serviriam como demonstração de que as instituições funcionam.
Como estão, caminha-se cada dia mais para um estado de absoluto descrédito do Direito e do Estado, uma rota perigosa que pode tanto descambar no autoritarismo como na anarquia de uma revolta nos moldes recentes aos de diversos países da América Latina. A ver qual será o nosso desfecho.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.ictq.com.br/politica-farmaceutica/2388-governo-gasta-mais-r-250-milhoes-para-distribuir-hidroxicloroquina-em-farmacias-populares">https://www.ictq.com.br/politica-farmaceutica/2388-governo-gasta-mais-r-250-milhoes-para-distribuir-hidroxicloroquina-em-farmacias-populares</a>. Acessado em: 13.12.2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/11/16/sem-demanda-nos-estados-400-mil-comprimidos-de-cloroquina-encalham-no-exercito">https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/11/16/sem-demanda-nos-estados-400-mil-comprimidos-de-cloroquina-encalham-no-exercito</a>. Acessado em: 13.12.2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://reporterbrasil.org.br/2020/06/laboratorio-do-exercito-ja-gastou-mais-de-r-15-milhao-para-fabricacao-de-cloroquina-alvo-de-investigacao-do-tcu/">https://reporterbrasil.org.br/2020/06/laboratorio-do-exercito-ja-gastou-mais-de-r-15-milhao-para-fabricacao-de-cloroquina-alvo-de-investigacao-do-tcu/</a>. Acessado em: 13.12.2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Licitações do Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército n. 14/20, 17/20, 18/20, 23/20, 24/20, 25/20, 46/20 e 57/20. Estes últimos dois geraram contratos de R$ 652 mil cada.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Licitação 55/20.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/quem-sao-os-empresarios-que-ganham-com-a-cloroquina-no-brasil,80333af7a8414c728847120d754d6003usfs89ms.html">https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/quem-sao-os-empresarios-que-ganham-com-a-cloroquina-no-brasil,80333af7a8414c728847120d754d6003usfs89ms.html</a>. Acessado em: 13.12.2020.

Jair Bolsonaro

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JOTA

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