Rafael A. F. Zanatta

Michel Roberto Oliveira de Souza

É desafiador sintetizar a vida e a obra de Michele Taruffo, intelectual italiano falecido no dia 10 de dezembro, aos 77 anos de idade, após quatro décadas de docência em direito processual civil na Università degli Studi di Pavia.
As incontáveis mensagens de instituições, professores e professoras e de estudiosos do direito já dão conta de externar o quanto o Maestro era próximo do nosso país. São histórias de como o professor tinha um carinho especial com todas as pessoas, que mostram que além de um profissional de referência para todos, com enorme capacidade intelectual, também era um ser humano com um coração enorme, como <a href="https://www.conjur.com.br/2020-dez-11/limite-penal-michele-taruffo-estudo-multidisciplinar-prova" target="_blank" rel="noopener noreferrer">revelado por Janaina Matida</a>.
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Apesar de Pavia ser uma cidade pequena, com 73 mil habitantes na região da Lombardia, Taruffo <a href="https://laprovinciapavese.gelocal.it/pavia/cronaca/2020/12/11/news/addio-al-prof-taruffo-maestro-per-generazioni-di-avvocati-1.39646837" target="_blank" rel="noopener noreferrer">garantiu prestígio à instituição</a> sendo um pensador com influência global, dando continuidade à cátedra antes ocupada pelo professor Vittorio Denti, e na esteira dos grandes comparatistas italianos como Mauro Cappelletti. Muitos no Brasil o viam como um sucessor dos grandes teóricos do processo, como <a href="https://it.wikipedia.org/wiki/Francesco_Carnelutti" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Francesco Carnelutti</a> e <a href="https://it.wikipedia.org/wiki/Piero_Calamandrei" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Piero Calamandrei.</a> No México e Chile, Taruffo foi chamado de “maior processualista vivo” - uma honraria que se sustenta diante da qualidade e profundidade de suas reflexões.
Neste brevíssimo ensaio, resgatamos as origens do pensamento de Taruffo e algumas de suas contribuições mais importantes ao direito, sem a pretensão de esgotar os contornos e importância de sua obra completa.
Das origens em Pavia ao problema da justiça civil
Os primeiros anos de Michele Taruffo foram dedicados a temáticas caras à Vittorio Denti, seu <a href="https://www.youtube.com/watch?v=RfMMFeWutOE" target="_blank" rel="noopener noreferrer">“primeiro grande maestro”</a>, como a advocacia de interesse público, o processo coletivo e a teoria dos direitos difusos, que se difundiu enormemente nos anos 1970 e influenciou uma enorme geração de juristas brasileiros.
Aos 26 anos, Taruffo publicou o estudo “I limiti soggettivi del giudicato e le class actions”, amplamente lido na comunidade jurídica interessada em ações coletivas. Aos 30 anos, publicou estudos importantes de processo civil, como “Povertà e giustizia: aspetti processuali del caso Boddie v. Connecticut” (publicado com Vittorio Denti no Il Foro Italiano) e “Prove atipiche e convincimento del giudice”, na Revista de Direito Processual. Em entrevistas, Taruffo dizia que estudos de juventude sobre psicologia e filosofia o levaram ao debate sobre motivação da sentença. De fato, um desses estudos pioneiros, escrito aos 21 anos, foi "L'obbligo di motivazione della sentenza civile tra diritto comune e illuminismo" - tema que Taruffo retomou posteriormente em obra de fôlego.
Em um período maduro de ampla produtividade - entre os 30 e 40 anos de idade -, Taruffo sedimentou sua influência como intelectual dentro e fora da Itália. Publicou “La motivazione della sentenza civile” em 1975 (que contou com importante tradução no México em 2006 e tradução no Brasil em 2015), sua tese de doutorado, e "La giustizia civile in Italia dal'700 a oggi" em 1980, obra historiográfica de fôlego sobre a redefinição do judiciário italiano e da justiça civil, incluindo o problema do “ordenamento judiciário” e a crise da “concepção liberal do processo”. Esta última obra, inclusive, ganhou recentemente uma versão brasileira escrita em conjunto com Daniel Mitidiero, “<a href="https://www.livrariart.com.br/a-justica-civil-da-italia-ao-brasil-dos-setecentos-a-hoje-1-edicao-9788554947880/p" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A justiça civil - Da Itália ao Brasil, dos Setecentos a Hoje</a>”. Como revelou Mitidiero em 2018, Taruffo sugeriu não apenas a tradução do livro, mas sua adaptação para o Brasil com dois capítulos inéditos e notas sobre a influência do pensamento jurídico italiano no Brasil.
<blockquote class="jota-article__eye">Ainda na década de 1970, nota-se que Taruffo passou a ser lido no Brasil.</blockquote>
Um exemplo: em tese apresentada na VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1979, o professor da Universidade Federal do Paraná, <a href="https://www.youtube.com/watch?v=8PWkZhNAqh0" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Egas Dirceu Moniz de Aragão</a>, debateu as “limitações da legitimidade para agir à própria pessoa atingida” e, partir da citação de estudos de Taruffo e Nicolò Trocker, analisou a experiência das ações coletivas, argumentando ser necessário analisar o direito constitucional à ação e as possibilidades que coletivos pudessem obter tutela judicial.
Apesar dos estudos iniciais e comparativos serem bastante conhecidos, sua teoria sobre a motivação como discurso justificativo - que contém uma sofisticada discussão sobre indícios, signos e juízo da motivação - encontrou inúmeros leitores no Brasil. Como dizem Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero na apresentação de “<a href="http://www.marcialpons.com.br/a-motivacao-da-sentenca-civil/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A motivação da sentença civil</a>” pela editora Marcial Pons, “já se pode reparar”, na obra de Taruffo, “a incorporação de novos horizontes para processualística, na medida em que conceitos filosóficos e epistemológicos começam a comparecer à ciência processual pelas suas mãos”.
No pensamento de Taruffo, o processo não é a simples somatória dos institutos processuais. A perspectiva da justiça civil é o que dá tom à formatação do processo, sendo crucial pensar criticamente sobre a formação e as funções das instituições judiciárias. Como as cortes funcionam e dão unidade ao sentido do direito?
A teoria do processo em perspectiva comparada
O interesse nas grandes pesquisas comparativas levou Taruffo ao ambiente universitário estadunidense, onde aprofundou pesquisas sobre as estruturas do processo civil dos EUA, as características de modelos adversariais e a interpretação jurídica baseada em precedentes e direito positivo. Em 1991, com Robert Summers, publicou “Interpretation and comparative analysis”. Em 1995, com Geoffrey C. Hazard Jr., Taruffo publicou “<a href="https://books.google.com.br/books?id=srSf9vjwN20C&amp;dq=American+civil+procedure:+an+introduction&amp;hl=pt-BR&amp;sa=X&amp;ved=2ahUKEwjb-vWN5cbtAhUDLLkGHZNTAtMQ6AEwAHoECAQQAg" target="_blank" rel="noopener noreferrer">American Civil Procedure: an introduction</a>”, um pequeno livro sobre as estruturas de funcionamento das cortes em perspectiva comparativa, o papel dos advogados e o significado político do acesso público à justiça civil.
Ao lado de Geoffrey Hazard Jr., Taruffo participou do American Law Institute e do projeto <a href="https://www.unidroit.org/work-inprogress-studies/studies/civil-procedure/1346-study-lxxvi-principles-of-transnational-civilprocedure-2" target="_blank" rel="noopener noreferrer">UNIDROIT Principles and Rules for Transnational Civil Procedure</a>. Tornou-se, também, professor visitante nas universidades estadunidenses de Cornell, Pennsylvania e Califórnia.
Neste período, no início da década de 1990, Taruffo publicou dois dos seus livros mais influentes. Em 1991, pela Il Mulino, publicou o famoso ensaio “Il vertice ambiguo: saggi sulla Cassazione civile”. Em 1992, pela editora Giuffrè de Milão, publicou “La prova dei fatti giuridici: nozioni generali”, obra que encontrou grande circulação na América Latina por meio da tradução de La Prueba de Los Hechos.
Taruffo pode ser visto não apenas como um pensador do direito processual, mas como um teórico do direito interessado em grandes questões sobre justiça civil, sobre a relação entre fatos jurídicos e provas e sobre as funções interpretativas de cortes superiores. Em obras da maturidade, como “<a href="https://mulino.it/isbn/9788815089458?forcedLocale=it" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sui Confini: scritti sulla giustizia civile</a>”, nota-se a amplitude do pensamento de Taruffo, que enfocava questões como o senso comum e a experiência no raciocínio dos juízes, os limites da racionalidade no direito processual, a legalidade e justificação na criação judiciária do direito (o debate clássico sobre a capacidade de criação jurídica por decisões judiciais), a dimensão transnacional de controvérsias civis e as complicadas relações entre prova e verdade.
Macrocomparação e teoria dos precedentes: importância para o Brasil
<blockquote class="jota-article__eye">Para os comparatistas, Taruffo tornou-se uma referência obrigatória.</blockquote>
Ao estudar em profundidade as estruturas do sistema de precedentes nas comunidades políticas influenciadas pela experiência jurídica do common law, Taruffo problematizou as distinções estilizadas entre “sistemas de common law” e “sistemas de civil law”, rompendo com versões caricatas sobre como sistemas jurídicos operam e as exageradas distinções entre países europeus e Estados Unidos da América em termos de funções do direito positivo (estatutário) e funções das Cortes. Assim como o Brasil, a Itália também passou por uma grande discussão sobre funções nomofilácicas (nomofilachia) das Cortes e redesenho institucional sobre a força de decisões judiciais.
Ainda como exemplo da força dos estudos com viés comparatista e focado em problemas do funcionamento e da própria função da justiça de cada país, esboça dois modelos ideais para possibilitar uma análise mais precisa sobre o funcionamento das Cortes Superiores, um modelo de terceira instância e outro de Cortes Supremas, modelo pelo qual o professor italiano teria certa preferência por conta de a função nomofilácica ser um fator de evolução do direito e de tutela dos valores fundamentais do ordenamento jurídico.
Valendo-se da observação do sistema jurídico italiano, acoplado a uma economia globalizada e integrado ao regime político comunitário da União Europeia, Taruffo notou que, ao contrário do que defendido década de oitenta, o precedente judicial não é um fenômeno presente somente nos países anglo-saxões. Mesmo em países de tradição civilista (direito codificado), o precedente judicial tem progressivamente ganhado força e importância no sistema, merecendo ser objeto de análise pelos estudiosos do direito.
Assim, Taruffo formulou uma nova teoria sobre tal fenômeno, constituída da teoria do precedente do common law, complementada por correções necessárias de algumas peculiaridades relevantes dos sistemas da civil law, observando que existem “relevantes diferenças relativas ao uso dos precedentes, que estão ligadas a fatores inerentes à organização judiciária, à teoria das fontes, à concepção do papel do Juiz, à cultura dos advogados e à prática postulatória-defensiva e judiciária”.
Por isso, a necessidade de hipotetizar uma teoria do precedente mais ampla, capaz de definir como o precedente opera em diversos contextos distintos, tendo em mente que o precedente existe em ordenamentos historicamente e estruturalmente diversos e que isso apresenta características diversas nos vários ordenamentos. Segundo esta hipótese teórica, o precedente se define em função da combinação de quatro fatores diversos, isto é, como uma intersecção de quatro dimensões, institucional, objetiva, estrutural e eficácia. Essas formulações do professor de Pavia tiveram importância fundamental nas mudanças que se deram pela aprovação do Código de Processo Civil brasileiro de 2015.
Em seus estudos e palestras, Taruffo ressaltou sempre o fato de quais escolhas legislativas seriam tomadas pelos legisladores de cada país, de forma consciente acerca das questões que estão envolvidas, apesar de expressar suas ideias e preferências de escolhas, que não deixava de comunicar objetivamente. Taruffo foi um pensador à frente de seu tempo e com certeza sua obra será uma das grandes referências para os pensadores atuais e para construir um futuro com um sistema jurídico mais efetivo e consciente de suas obrigações.
Um legado permanente
Michele Taruffo alargou os contornos do pensamento jurídico sobre a justiça civil, sofisticando-a com uma abordagem pluridisciplinar. Ao transitar entre a análise sociológica, o pensamento institucional e a análise normativa, Taruffo mostrou a importância de se pensar as instituições judiciárias, as relações entre juízes e advogados (e Defensores Públicos) e o funcionamento da justiça por normas procedimentais. Trouxe uma reflexão crucial sobre as cortes de vértice em um momento de profundas transformações institucionais no Brasil.
Como dito no começo deste ensaio, o impacto de Taruffo é enorme, mesmo sendo difícil mensurá-lo de imediato. Sua aproximação com o Brasil neste século foi notável. Em 2001, sua aula magna na Universidade Federal do Paraná tornou-se um livro amplamente lido. Anos depois, formou-se o “Grupo de Estudos Michele Taruffo”, por iniciativa de Vitor de Paula Ramos e Rafael Abreu, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - um entre vários grupos dedicados ao estudo das obras de Taruffo. Nos últimos anos, surgiram importantes traduções pela editora Marcial Pons, assim como o importante trabalho inédito com Daniel Mitidiero.
Sem dúvidas, Taruffo encontrou amplo diálogo com os processualistas de diversas escolas brasileiras, o que ajudou a disseminar sua obra para o público brasileiro e demonstra a força do seu pensamento. Seu trabalho tende a se disseminar não só para o campo do processo, mas para a sociologia jurídica, os estudos institucionais sobre as Cortes e para a teoria do direito, de forma mais ampla.
No Brasil, Taruffo deixa inúmeros leitores e estudiosos influenciados por sua obra, em diversas partes do país. As discussões sobre justiça civil, politização das cortes e sistema jurídico brasileiro no século XXI sem dúvidas continuarão a ser impactadas por suas sofisticadas reflexões. São múltiplos os legados do Maestro de Pavia.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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taruffo

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JOTA

As origens do pensamento do processualista italiano e algumas de suas contribuições mais importantes

Os legados de Taruffo

As origens do pensamento do processualista italiano e algumas de suas contribuições mais importantes