Leonardo e Silva de Almendra Freitas

De longe, a maior queixa da advocacia sob o pálio do Código de Processo Civil (CPC) de 1973 se dirigia à equidade prevista no art. 20, §4º. Por melhores que fossem as intenções do legislador, a prática se encarregou de confiar inteiramente à subjetividade do juízo o arbitramento dos honorários.
Esse estado de coisas é bem retratado por precedente que repudiou abertamente qualquer critério objetivo que pudesse limitar a (ampla) liberdade do julgador em calibrar a remuneração que entendesse justa:
“Não procede a compreensão abstrata de que é irrisória a verba honorária quando houver manifesta desproporcionalidade entre esta e o valor da causa, especialmente quando o feito refere-se a execução de grande vulto. (...). No § 4°, o legislador optou por uma cláusula aberta, a ser preenchida pelo julgador, de forma equitativa, à luz dos elementos de cada caso concreto. A intenção de fixar um limite percentual mínimo (1% da dimensão econômica da causa, por exemplo) acaba limitando a valoração dos critérios previstos nas alíneas "a", "b" e "c" do § 3° do art. 20 do CPC”. (AgRg no AREsp 532.550/RJ, 2ª Turma, rel. p/ acórdão min. Herman Benjamin, DJe 02/02/2015)
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>E foi para romper com tal estado de coisas que o CPC de 2015 alterou radicalmente o trato da questão: como superiormente delineado por robusto leading case da 2ª Seção do STJ (REsp 1.746.072/PR), a objetividade adotada pelo antigo §3º do art. 20 para as sentenças condenatórias em desfavor de particulares foi estendida as demais, inclusive as dirigidas à Fazenda Pública, alterando-se apenas a base de cálculo (condenação, proveito econômico ou, residualmente, valor da causa), restando à equidade o papel de “último recurso”, acionável apenas quando não for factível a aplicação do critério prioritário ou resulte em verba irrisória (art. 85, §8º).
<blockquote class="jota-article__eye">Mas, apesar da resolução do legislador, o abandono do subjetivismo que marcava o modelo anterior ainda está em aberto, pelo menos quando se tratar de valores “exorbitantes” – adjetivo que pouco tem de objetivo.</blockquote>
Além de ser o cerne dos Temas Repetitivos 1.046 e 1.076, no REsp 1.644.077/PR, afetado à Corte Especial do STJ, já foram proferidos 2 (dois) votos que soam muito mais afinados à lógica do sistema revogado.
Além disso, a dimensão constitucional da discussão está posta na ADC 71/DF, na qual a PGR opinou pela “fixação dos honorários advocatícios por apreciação equitativa do juiz, a fim de evitar a condenação do vencido em valor exorbitante”.
Embora bem intencionada, a linha assim esboçada parece cruzar a fronteira da legítima interpretação, sendo bem sugestiva a circunstância de nenhum dos leading cases envolverem valores sequer próximos de 100.000 (cem mil) salários-mínimos, situação contemplada por faixa legal específica (art. 85, §3º, V), eloquente indicativo da “divergência” entre legislador e intérprete sobre casos “exorbitantes”.
Mas se o “produto final” não for capaz de pré-eliminar esse possível desalinhamento, a iluminação do cuidado com que se trabalhou a respectiva “matéria-prima” deixa acima de dúvida razoável que a superação do subjetivismo foi fruto de uma opção refletida e resoluta do legislador, cujo simples desprezo desnaturaria a própria interpretação, convertendo-a no que Karl Larenz qualifica de mistificação.
Já na 1ª reunião da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto do Novo CPC a disciplina dos honorários teve notável destaque, sendo digno de nota que a discussão praticamente se iniciou com o registro, feito por orador não identificado, de que “os juízes fixam qualquer mil reais, 500 reais, sem qualquer padrão”, defendendo, então, um “patamar que seja geral”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, tendo o min. Luiz Fux lembrado o encaminhamento de “10 a 20% do valor da condenação e, não havendo condenação, sobre o valor do direito controvertido”, “evitando sempre o valor pífio”...
Mais significativa foi a rejeição da Emenda 158 ao PLS 166/2010, de autoria do senador Marconi Perillo, que propunha a “fixação dos honorários a partir de uma apreciação equitativa pelo juiz”, sob a justificativa de evitar que em causas de baixa complexidade “os advogados receb[essem] honorários vultosos, desproporcionais ao trabalho realizado”, repudiada sob o argumento de que “o projeto avança quando estabelece critérios objetivos”, “evitando, com isso, tanto a fixação de valores irrisórios quanto a fixação de valores exorbitantes”, nos termos do Parecer 1.624/2010<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A tentativa e o resultado se repetiram no âmbito da Câmara dos Deputados. Ao encaminhar a rejeição de 2 (duas) emendas que pretendiam “resgatar a apreciação equitativa” do antigo §4º do art. 20, o relator geral do PL 8.046/2010, deputado federal Paulo Teixeira, reafirmou que “o estabelecimento de bases objetivas (...) é mais adequado do que regular o tema por cláusula geral, já que a prática vem demonstrando incontáveis casos de fixação irrisória, aviltante ao trabalho dos advogados”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
É difícil, assim, cogitar um cenário mais propício para recorrer-se à chamada “interpretação histórica negativa” (Christian Baldus), cuja lógica é a mesma do clássico diagnóstico do min. Aliomar Baleeiro de que não se pode “ressuscitar” na execução da lei uma ideia descartada durante o processo legislativo (RE 61.299/SP), também aplicada mais recentemente na célebre ADI 2.010-MC, rel. min. Celso de Mello.
Ainda mais aguda é a denúncia do mestre italiano Riccardo Guastini de que o descarte de histórico legislativo confiavelmente recognoscível “é uma maneira de eludir, deixar de lado, sabotar a política do direito efetivamente almejada pelos órgãos legislativos, substituindo-a pela política do direito do intérprete”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
É certo que se tem invocado a teoria da derrotabilidade das regras em favor de exceções pontuais quando circunstâncias atípicas reduzem o peso da atuação do advogado, o que tornaria significativa a “simplicidade franciscana” do REsp 1.644.077, enfatizada pela min. Nancy Andrighi.
Mas o verdadeiro ponto de s. exa. parece ser sua clara discordância com o que chamou de “equidade de mão única”, tese que já havia levantado no REsp 1.746.072, no qual o advogado não contou com fatores facilitadores, como bem sublinhado pela min. Maria Isabel Gallotti, que, mesmo favorável à derrotabilidade dos §§2º e 3º do art. 85, acompanhou a divergência.
No fundo, o que parece estar implícito é um certo “saudosismo” do modelo revogado, sendo sintomático que já se chegou a defender abertamente que o art. 85, §8º, do CPC de 2015 “deve ser interpretado de acordo com a reiterada jurisprudência do STJ, que havia consolidado o entendimento de que o juízo equitativo é aplicável tanto na hipótese em que a verba honorária se revela ínfima como excessiva, à luz dos parâmetros do art. 20, § 3º, do CPC/1973”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Mas nada indica que os artífices da radical alteração dos critérios de arbitramento dos honorários se inspiraram na célebre obra de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, “O Leopardo”. Para os que tiveram o prazer de lê-la, o seu ponto alto é a antológica frase “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.
Com efeito, se há algo em relação ao que juristas e legisladores que concorreram para a formatação do art. 85 do CPC de 2015 evitaram hesitações ou meias-palavras foi o seu propósito de romper com o subjetivismo do CPC de 1973. O bom intérprete pode e deve criticar o caminho escolhido pelo legislador – como muitos fizeram com o antigo art. 20, §4º. Mas nem o mais qualificado intérprete pode se desviar desse caminho nem, muito menos, seguir deliberadamente na sua contramão.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/11?sequencia=583">https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/11?sequencia=583</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4550666&amp;ts=1594037218515&amp;disposition=inline">https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4550666&amp;ts=1594037218515&amp;disposition=inline</a>&gt;. Páginas 125 e 226.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do-relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013">https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do-relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013</a>&gt;. Página 641.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Interpretar e Argumentar. Vol. 1, Belo Horizonte: Ed. D’Plácido, 2020, p. 245.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> REsp 1.789.913/DF, 2ª. Turma, rel. min. Herman Benjamin, DJe 11/03/2019.

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A caminho da 'repristinação' do marcante subjetivismo do CPC de 1973?

Os honorários advocatícios, o Leopardo e o ativismo judicial

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