Michelle Ratton Sanchez Badin

Magali Favaretto Prieto Fernandes

Otávio Venturini

Katherine Tai, embaixadora-chefe do escritório de representação comercial dos Estados Unidos (USTR), <a href="https://tradetakes.substack.com/p/ustr-katherine-tai-explains-the-administration?sd=pf">afirmou</a> que os EUA não precisam de mais acordos comerciais. A fala revela uma mudança fundamental na <a href="https://ustr.gov/sites/default/files/2023-05/2023%20Trade%20Policy%20Agenda%20and%202022%20Annual%20Report%20FINAL.pdf">política comercial do governo Joe Biden</a>, que consiste no distanciamento de uma ordem internacional baseada em regras pré-definidas no âmbito multilateral, em direção a uma política de comércio externo nacionalista e voltada à obtenção de vantagem competitiva.
<a href="https://www.politico.com/news/2023/07/03/katherine-tai-free-trade-00104483">Segundo Tai</a>, "os acordos de comércio tradicionais ajudaram as corporações transnacionais a perseguir mão de obra barata e a expandir as exportações globais às custas dos trabalhadores domésticos e da segurança nacional". Agora, o governo Biden busca novos modelos de acordos, focados em padrões trabalhistas e ambientais, na produção de bens essenciais nos Estados Unidos e em países aliados e no combate a eventuais rupturas nas cadeias de valor.
E quais as consequências desses novos modelos para os processos de negociação de acordos de comércio internacional? De partida, os padrões regulatórios da política comercial dos Estados Unidos expressam uma nova gramática, não mais limitada aos parâmetros de eficiência do livre comércio. Na nova dinâmica, incorpora-se um vocabulário articulado com noções de segurança nacional, riscos e resiliência nas relações comerciais. Busca-se "aliados", por meio de "<a href="https://hls.harvard.edu/bibliography/the-rise-of-nonbinding-international-agreements-an-empirical-comparative-and-normative-analysis/">acordos </a><a href="https://hls.harvard.edu/bibliography/the-rise-of-nonbinding-international-agreements-an-empirical-comparative-and-normative-analysis/">não vinculantes</a>", com uma linguagem programática baseada em "melhores esforços" e estruturas flexíveis, que amoldam-se aos parceiros e ao tempo. Mas também contêm previsões muito específicas quanto a bens e setores críticos, e perfeitamente ajustadas aos interesses da nova administração Biden<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Desde 2022, os Estados Unidos negociam com a Europa, no âmbito do <a href="https://ustr.gov/useuttc">US-EU Trade and Technology Council (TTC)</a>, acordos nos setores de aço, alumínio e aeronaves. No mesmo ano, lançaram o Marco Econômico Indo-Pacífico para a Prosperidade (<a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/05/23/statement-on-indo-pacific-economic-framework-for-prosperity/">Indo-Pacific Economic Framework for Prosperity - IPEF</a>), junto com 13 países da Ásia e Oceania, incluindo a Índia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nas Américas, também em 2022, foi lançada a Parceria para Prosperidade Econômica (<a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/06/08/fact-sheet-president-biden-announces-the-americas-partnership-for-economic-prosperity/">Americas Partnership for Economic Prosperity - APEP</a>). Ao contrário do IPEF, o APEP resultou de uma declaração unilateral dos Estados Unidos, antecipando consultas que ocorrerão com países considerados com posições afins ("like-minded"), em especial aqueles com os quais os Estados Unidos já possuem acordos de comércio. Portanto, os parceiros ainda serão definidos.
Na lógica da administração Biden, coordenada por Tai, esses acordos-quadro são substitutos para os <a href="https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10914/2/NT_42_Dinte_Os_mega_acordos.pdf">tradicionais acordos</a>, como o <a href="https://www.economist.com/the-economist-explains/2018/03/12/what-on-earth-is-the-cptpp?ppccampaignID=18798097116&amp;ppcadID=&amp;utm_medium=cpc.adword.pd&amp;utm_source=google&amp;ppccampaignID=19495686130&amp;ppcadID=&amp;utm_campaign=a.22brand_pmax&amp;utm_content=conversion.direct-response.anonymous&amp;gclid=CjwKCAjwsvujBhAXEiwA_UXnAARsCDBm3uzIEnrpH7z_vKoshCv0IdMUfi3sILZi-coCPkpW-D7KpxoC77sQAvD_BwE&amp;gclsrc=aw.ds">Acordo Amplo e Progressivo de Parceria Transpacífica (CPTPP)</a>, ao qual os Estados Unidos decidiram não aderir, e representam uma contra-ofensiva à <a href="https://www.economist.com/finance-and-economics/2020/11/15/the-meaning-of-rcep-the-worlds-biggest-trade-agreement?ppccampaignID=&amp;ppcadID=&amp;ppcgclID=&amp;utm_medium=cpc.adword.pd&amp;utm_source=google&amp;ppccampaignID=19495686130&amp;ppcadID=&amp;utm_campaign=a.22brand_pmax&amp;utm_content=conversion.direct-response.anonymous&amp;gclid=CjwKCAjwsvujBhAXEiwA_UXnANMyU-bFxEsu0IaT5pnMHL__Wsb3w6sW_4oDNFHy37Ld8yKMaUhCjRoCjxcQAvD_BwE&amp;gclsrc=aw.ds">Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP)</a>, liderada pela China e considerado o  <a href="https://www.statista.com/chart/23497/key-facts-about-the-regional-comprehensive-economic-partnership/">maior acordo comercial do mundo</a> em termos de Produto Interno Bruto combinado.
<h3>Geopolítica e segurança nacional norteiam as políticas doméstica e externa </h3>
O IPEF e o APEP voltam-se claramente a combater a crescente influência econômica da China no Pacífico e nas Américas. No contexto doméstico dos Estados Unidos, inauguram um novo modo de pensar em comércio, no qual o USTR tem um papel coadjuvante aos Departamento de Comércio, Departamento de Estado e Departamento do Tesouro.
Katherine Tai referiu que controles à exportação significam o mesmo que controle de tecnologia e, portanto, uma ferramenta de segurança nacional. O secretário de Estado, Antony Blinken resumiu o desafio de segurança nacional dos Estados Unidos frente à China a partir de três objetivos: <a href="https://www.state.gov/the-administrations-approach-to-the-peoples-republic-of-china/#:~:text=To%20succeed%20in%20this%20decisive,%2C%20our%20innovation%2C%20our%20democracy.">investir, alinhar e competir</a>. Dentre os três, apenas "alinhar" está a cargo do USTR. Os investimentos, incluindo subsídios, são controlados pelo Departamento de Comércio, e os créditos à exportação são administrados pelo Departamento de Tesouro.
No contexto internacional, a política comercial norte-americana transforma-se em potente instrumento de segurança nacional. A própria <a href="https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2022/10/Biden-Harris-Administrations-National-Security-Strategy-10.2022.pdf">política de segurança </a>do governo Biden tem como pilar de sustentação o apagamento da linha divisória entre as políticas externa e doméstica, para que os Estados Unidos possam, segundo sua retórica, "competir em um mundo no qual outros países utilizam-se de práticas injustas e coercitivas para obter vantagens". Para Blinken, o IPEF provê um contra-modelo à China, e para a <a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/press-briefings/2022/05/23/on-the-record-press-call-on-the-launch-of-the-indo-pacific-economic-framework/">secretária de Comércio, Gina Raimondo</a>, o APEP é "antídoto às incursões da China nas Américas".
<h3>Os novos padrões regulatórios: estrutura aberta, flexível e principiológica</h3>
Os novos acordos negociados pelos EUA não tratam de reduções tarifárias ou outras formas de acesso a mercados. Portanto, <a href="https://crsreports.congress.gov/product/pdf/R/R47679">não necessitam</a> da aprovação do Congresso<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Também não impõem obrigações vinculantes aos participantes. O IPEF e o APEP possuem estrutura flexível e arquitetura aberta, baseada em declarações políticas que estabelecem princípios para discussões futuras em política econômica e cooperação em diversas áreas.
O IPEF estabelece quatro pilares para as negociações: "Comércio", "Cadeias de Valor", "Energias renováveis, descarbonização e infraestrutura" e "Boa Governança", este último abrangendo assuntos tributários e anticorrupção". Em 7 de setembro deste ano, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos tornou público o <a href="https://www.commerce.gov/sites/default/files/2023-09/2023-09-07-IPEF-Pillar-II-Final-Text-Public-Release.pdf">Acordo sobre Resiliência das Cadeias de Valor</a>, que dá maior concretude ao segundo pilar do IPEF e prevê três novas instituições: a) um Conselho para Cadeias de Valor, para a resiliência e competitividade de setores críticos e bens considerados chave; b) uma Rede de Resposta a Crises de Cadeias de Valor, como canal de comunicação de emergências em caso de ruptura; e c) um Conselho de Direitos Laborais, com representantes do governo e dos setores empregador e trabalhador das partes, para identificar preocupações laborais que possam trazer risco às cadeias de valor.
O APEP estabelece três pilares, que se sobrepõem aos do IPEF: “Comércio inclusivo e sustentável", “Cadeias de valor mais resilientes" e “Energia limpa, descarbonização e biodiversidade". Em ambos, os países aderentes podem escolher os pilares nos quais querem participar. A Índia decidiu não participar do pilar de "Comércio" do IPEF, por ser tradicionalmente contrária a vincular comércio a questões ambientais e trabalhistas.
<h3>Impactos para quem atua no comércio internacional</h3>
Os novos acordos propostos pelos Estados Unidos para comércio – e investimento – não seguem mais a lógica nem a estrutura daqueles acordos de comércio assinados durante os anos 1990 e <a href="https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1074/1/TD_1773.pdf">início dos anos 2000</a>. Nitidamente, a nova lógica orienta-se pela disputa geoeconômica global, em especial face à ascensão da China. Mas também repensa a relação dos Estados Unidos com outros países emergentes do sistema internacional. Isso faz com que as necessidades domésticas para retomar o vigor assimétrico da economia dos Estados Unidos sejam necessariamente priorizadas, para pautar os novos modelos de acordos.
A alteração no espaço de orientação e produção de regras, que se desloca para o âmbito doméstico, requer, portanto, maior atenção daqueles que atuam no comércio internacional. Em especial, para o fato de que diferentes órgãos do estado – muito além do USTR que trata de comércio e temas associados a comércio, estejam definindo agendas, planos e, até mesmo acordos executivos, com seus homólogos em outros países. O mote da segurança nacional, com preocupações de natureza geopolítica e econômica, associam os temas de comércio e cadeias de valor às agendas de política industrial e de investimento, emprego, energia, infraestrutura e corrupção, orientando novos procedimentos administrativos e critérios de coordenação internacional, sob noções de risco e resiliência.
Se os Estados Unidos estão com uma nova estratégia para as Américas, é de se pensar qual será a nossa para a relação bilateral com os EUA, no novo contexto internacional.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O termo "acordo não vinculante" não é consensual no âmbito acadêmico. Bradley, Goldschimdt e Hathaway definem: "um acordo internacional não vinculante é aquele que não é regido pelo direito internacional e pode incluir acordos com termos vagos ou precisos, obrigações superficiais ou profundas e conter ou não mecanismos de aplicação e cumprimento de obrigações". (tradução nossa).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Os países são Austrália, Brunei Darussalam, Filipinas, Fiji, Índia, Indonésia, Japão, Malásia, Nova Zelândia, República de Coreia, Singapura, Tailândia e Vietnã.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Recentemente, o Congresso dos EUA apresentou relatório que avalia as bases jurídicas para que o Poder Executivo celebre acordos comerciais "híbridos", sem a aprovação do Congresso.

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JOTA

O que significam os novos padrões regulatórios dos Estados Unidos para o comércio internacional?

'Os EUA não precisam de mais acordos comerciais'

O que significam os novos padrões regulatórios dos Estados Unidos para o comércio internacional?