Pandemia

Os estados podem legislar sobre descontos em mensalidades escolares?

Em razão do cenário atual, vários estados-membros aprovaram leis impondo descontos em mensalidades escolares

Prefeitura de Salvador interdita universidades e escolas por desrespeito a decreto do coronavírus. Foto: Jefferson Peixoto/Secom

Nos últimos meses, em razão da pandemia e das medidas tomadas pelos governos locais e federal, vários estados-membros aprovaram leis impondo descontos em mensalidades escolares. Tais leis estão sendo agora questionadas no Supremo Tribunal Federal.

Na última semana, pelo menos duas ações direta de inconstitucionalidade foram propostas em face de tais leis.[1] A principal alegação dos requerentes é a de os estados estão usurpando uma competência da União. E eles têm razão.

Consoante o previsto no art. 22, parágrafo único, da Constituição, os estados somente podem legislar em matéria afeta ao direito civil se autorizados pela União por meio de lei complementar, autorização essa não concedida aos estados para impor de descontos, especialmente a contratos firmados anteriormente as leis aprovadas, tendo em vista a garantia constitucional do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF).

No que diz respeito às mensalidades, a relação entre os estabelecimentos de ensino e o usuário desse serviço abrange, inequivocamente, matéria de direito civil, em razão da relação contratual entre as partes, e não matéria de direito do consumidor ou educação, tendo em vista tratar-se de remuneração dos estabelecimentos de ensino pelos serviços prestados.

Esse é, inclusive, o entendimento assentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, chamado a se manifestar sobre a constitucionalidade de leis semelhantes, as declarou inconstitucionais por violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, CF).

A primeira decisão representativa desse entendimento foi proferida em 2006, quando a Corte analisou a constitucionalidade de Lei nº 10.989/2005, do estado de Pernambuco, que fixava prazo para pagamento das mensalidades escolares com vencimento no último dia do mês da prestação do serviço.

Naquela ocasião, o tribunal assentou o entendimento de que normas incidentes sobre contraprestação de serviços de educação possuem natureza de direito civil, por tratarem de relações contratuais, o que fazia com que a legislação estadual impugnada fosse formalmente inconstitucional, por usurpar competência privativa da União sobre direito civil, a despeito da alegação feita nos autos de que se tratava de norma sobre educação ou mesmo sobre direito do consumidor.[2]

Esse entendimento foi referendado, tempos depois, pelo Plenário da Corte em decisão proferida à unanimidade.[3] Na hipótese, estava em discussão lei do Distrito Federal que, entre outras questões, estabelecia descontos nas mensalidades escolares para as famílias que mantinham mais de um filho no mesmo estabelecimento de educação básica.

O procurador-geral da República, requerente na ADI 1.042, apontou a incompatibilidade da lei distrital com o art. 22, I, da Constituição Federal, que atribui competência privativa à União para legislar sobre direito civil, bem como ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que garante a intangibilidade ao ato jurídico perfeito, tendo em vista que todos os contratos de prestação de serviços eram anteriores à lei. A Corte julgou procedente o pedido formulado e declarou a inconstitucionalidade formal da lei distrital.

Em síntese, para o STF, o estado-membro não dispõe de competência para instituir regras contratuais. Isto porque a disciplina sobre mensalidade, enquanto contraprestação aos serviços de ensino prestados, representa a forma de remuneração de uma atividade básica e fundamental.

Entretanto, para não pairar qualquer dúvida, importa demonstrar a seguir que as legislações estaduais que impõem descontos em mensalidades não versam sobre direito do consumidor, não caracterizando, por essa razão, matéria de competência concorrente suplementar a autorizar sua criação pelos estados-membros da Federação.

De início, importa relembrar que a Constituição, no tocante à proteção e à defesa do consumidor, estabelece competência concorrente entre a União, os estados-Membros e o Distrito Federal. Pela disciplina estabelecida no texto constitucional, cabe à União editar normas gerais e às unidades da Federação, legislar de forma supletiva ou complementar (art. 24, §§ 1º e 2º, CF).

Embora seja ampla a competência legislativa concorrente em matéria de defesa do consumidor, ainda assim restará violado o artigo 22, inciso I, da CF, se a norma estadual, a pretexto de editar normas consumeristas, adentrar em matéria contratual afeta ao ramo do direito civil.

Esse entendimento é seguido pelo STF, que o tem assentado em inúmeros precedentes, inclusive recentes, como o da ADI 4.701, de relatoria do min. Luís Roberto Barroso.

Cumpre observar que as anuidades, enquanto contraprestações devidas pelos alunos pelo serviço privado de educação que lhes é prestado, já são exaustivamente reguladas pela Lei federal nº 9.870/99, lei esta que “dispõe sobre o valor total das anuidades escolares e dá outras providências”.

Em seu art. 1º, § 5º, estabelece esta lei que o valor total, anual ou semestral, apurado na forma dos parágrafos precedentes terá vigência por um ano e será dividido em doze ou seis parcelas mensais iguais, facultada a apresentação de planos de pagamento alternativos, desde que não excedam ao valor total anual ou semestral apurado na forma dos parágrafos anteriores.

Assim, a Lei federal nº 9.870/99, já trata da possibilidade de descontos, de modo que inexiste omissão a justificar a intervenção ou complementação legislativa realizada pelos estados.

Como se não bastasse, é importante deixar claro que os estados também não poderiam inovar no tema, obrigando as instituições de ensino a agir de modo distinto do preconizado pela Lei federal nº 9.870/99, que disciplina a matéria, já que também nessa hipótese haveria clara interferência na competência da União para legislar sobre direito civil, uma vez que representaria norma própria de direito obrigacional.

Enfatize-se que não se trata de meras taxas de serviços esporádicos – emissão de diplomas e histórico escolar, por exemplo – que possam ser considerada cobranças indevidas. Trata-se de remuneração pela prestação do serviço de ensino, sendo este o principal objeto do contrato firmado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a competência concorrente suplementar dos estados sobre questões associadas a serviços prestados por estabelecimentos de ensino apenas no que diz respeito a serviços secundários e acessórios, cobrança para realização de provas de segunda chamada, finais e equivalentes.

Isso fica evidente quando se analisa os precedentes da Corte sobre a questão.[4] Em julgado recente, esta Corte teve a oportunidade de examinar outra lei fluminense que proibiu a cobrança de taxa de repetência, taxa sobre disciplina eletiva e taxa de prova por parte das instituições particulares de ensino superior.[5]

De fato, a legislação relativa à prestação de serviços educacionais acessórios não é meramente de direito civil, de competência da União, mas envolve, também, relações de consumo e temas associados à educação, que constitui competência concorrente dos Estados, pelo disposto no art. 24, V e IX.

Todavia, sendo a mensalidade uma contraprestação pecuniária prevista em cláusula do contrato de prestação de serviços educacionais as questões atinentes à essa contraprestação é afeta ao direito contratual e, portanto, civil, o que atrai a competência da União prevista no art. 22, I, da Constituição.

Assim, muito embora haja uma competência concorrente entre a União, o estado e o Distrito Federal para tratar de educação, a questão da mensalidade não é matéria que diz respeito a serviços acessórios ou mesmo de consumo, mas, sim, ao contrato particular entre as instituições e os alunos ou seus responsáveis.

Ainda que se considerasse ser matéria atinente ao direito do consumidor, sabe-se que, consoante o disposto no art. 24, § 1º, da Constituição Federal, os estados só podem lançar mão de sua competência suplementar na hipótese de existência de alguma peculiaridade local que justifique um tratamento diferenciado aos alunos e instituições no que diz respeito à necessidade de se impor descontos.

Tanto não é assim que vários estados estão aprovando leis absolutamente idênticas, o que mais uma vez evidencia não se tratar de disciplina de especificidades locais e que o tema deve ser reservado a um tratamento a ser dado pela União, já que prepondera um interesse nacional sobre a questão.

Questão importante que também está fundamentalmente em causa é o princípio constitucional que protege o ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF) contra efeitos de leis supervenientes. Essa garantia constitucional assegura a estabilidade aos negócios jurídicos legítimos e traz segurança às partes que lançam mão de regras jurídicas disponíveis ou não que regulamentam as relações sociais.

É por essa razão que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firmada no sentido de considerar impróprio que lei nova insira nas relações contratuais avençadas em regime legal específico novas disposições, sequer previstas pelas partes quando da manifestação de vontade. Há, inclusive, precedentes desse entendimento associado a contratos de prestação de ensino.

Por exemplo, na ADI. 1.042-MC, por votação unânime, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o Distrito Federal legislou sobre matéria de direito civil, que é da competência exclusiva da União, violando o art. 22, I, da Constituição Federal. Também viram prejuízo ao ato jurídico perfeito, pois os contratos de prestação de serviços relativos ao ano letivo eram anteriores à lei.[6]

Mas não é só isso. Não sendo matéria de direito do consumidor, essas legislações estaduais representam intervenção ilegítima no domínio econômico, violando o princípio da livre iniciativa, haja vista que a imposição de descontos não encontra respaldo constitucional nas exceções constitucionais que permitem uma legítima intervenção do estado nesse domínio.

Por fim, importante considerar que os princípios da iniciativa privada e da livre concorrência permitem a afirmação de a que a concessão de descontos é ato de liberalidade que foge ao controle estatal. Conclusão contrária equivaleria ao esvaziamento, a um só tempo, de ambos os princípios.

Diante de todo o exposto, resta evidente que as leis estaduais que impõem descontos em mensalidades interferem na relação contratual estabelecida entre as instituições de ensino e os estudantes ou responsáveis.

 


[1] ADI 6.423 (Rel. Min. Edson Fachin) e ADI 6.435 (Rel. Min. Alexandre de Morais)

[2] ADI 1.007, Rel. Min. Eros Grau, j. em 31.08.2005, DJ 24.02.2006.

[3] ADI 1.042, Rel. Min. Cezar Peluso, j. em 12.08.2009, DJ 06.11.2009.

[4] ADI 3.874, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 23.8.2019, DJe de 09.09.2019

[5] ADI 5.462, Rel. Min. Alexandre de Morais, j. em 11.10.2018, DJe 29.10.2018.

[6] ADI 1.042, Rel. Min. Sydney Sanches, j. em 16.03.1994, DJ 29.04.1994.