Mercado de capitais

Os efeitos do Brexit no mercado de capitais europeu

Direito e fragmentação regulatória

14/06/2017|06:59
Atualizado em 14/06/2017 às 08:04
28/03/2017- A premiê Theresa May assina a carta invocando o Artigo 50, para a saída britânica da União Europeia Foto: Jay Allen

No início desta semana, foi anunciada a derrota simbólica da premiê Theresa May, do Partido Conservador, nas eleições gerais antecipadas do Reino Unido. Amplamente discutido durante a campanha, o desfecho das negociações do Brexit parece ter sido o tema mais antagônico e sensível para a perda da maioria parlamentar pelo Partido Conservador. O excelente desempenho do Partido Trabalhista pode ser atribuído a Jeremy Corbyn, demonstrando que a possibilidade de um Brexit moderado (soft) voltou com força à agenda política e econômica dos britânicos.

O resultado das eleições antecipadas sugerem que o Brexit, referendado pelo Reino Unido em junho de 2016, continua gerando incertezas para atores políticos e econômicos. As negociações para a saída do Reino Unido da União Europeia têm gerado discussões acirradas em Londres. Um tema de importância significativa, e ainda pouco debatido pelo jornalismo brasileiro,  é o futuro do Mercado de Capitais Comum (Capital Markets Union – CMU), anunciado em junho de 2015.

O projeto foi idealizado como marco regulatório de mobilização do capital produtivo nos países membros da União Europeia. Os objetivos principais do CMU eram o restabelecimento da estabilidade financeira, aumento da confiança pública no sistema financeiro, aquecimento da economia e geração de empregos. No entanto, com o advento do Brexit em 2016, essa reforma regulatória está incerta. A continuidade de Londres como capital financeira da União Europeia parece depender de instável esfera política, a despeito de benefícios econômicos desse projeto.

Um dos elementos destacados no plano de ação do programa era a necessidade de coerência regulatória no setor financeiro. Segundo o relatório, consistência, coerência e certeza regulatória seriam elementos fundamentais no processo decisório de qualquer operação no mercado de capitais, especialmente em um contexto transnacional. O direito, nesse contexto, atuaria como balizador da racionalidade econômica, desenvolvendo processos dinâmicos de coordenação, controle, coerência, segurança e homogeneidade entre os diversos atores dessa estrutura financeira da UE.

Não por acaso, em conferência sobre o CMU sediada na Lituânia em 15 de setembro de 2015, o prefeito do distrito financeiro de Londres, Mark Boleat, ressaltou que a prioridade mais imediata é revisar o impacto cumulativo das legislações locais criadas no pós crise de 2008/09 sobre serviços financeiros. Em estudo encomendado pela City of London para a PricewaterhousCoopers (PwC), concluiu-se que a consistência regulatória geraria um adicional de €850 bilhões na economia europeia até 2030, assim como a criação de 11 milhões de empregos nos países membros.

O departamento de estabilidade financeira da União Europeia endossou o suporte ao projeto. Em documento apresentado à imprensa, o Comissário Jonathan Hill da comissão europeia destacou a importância do CMU, que possibilitaria a mobilização de capitais para setores econômicos que necessitam de financiamento. “[O CMU] não é uma ideia abstrata”, afirmou Hill no lançamento do Plano de Ação do CMU.

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A centralidade do Reino Unido no mercado financeiro europeu é evidenciada pelo fato de que mais da metade das atividades financeiras relacionadas ao mercado de capitais perpassam por Londres e, portanto, o CMU seria extremamente favorável para a perpetuação do distrito financeiro londrino como peça necessária no tabuleiro regulatório.[1] Verifica-se, por exemplo, que diversos bancos não europeus, com operações na UE, usam Londres como centro estratégico. Para exemplificar, é sintomático que os cinco maiores bancos de investimentos americanos auferiram 92% das suas receitas no Reino Unido[2].

Entretanto, o referendo de 2016 colocou algumas incertezas na viabilidade do CMU. Alguns analistas passaram a analisar as consequências para o CMU com a saída do Reino Unido da UE. Segundo Philipp Stander, da Hertie School of Governance de Berlin, os impactos seriam notados em três perspectivas: (i) instabilidade entre os mercados financeiros do Reino Unido e da EU, especialmente setores econômicos em que as operações estão centralizadas em Londres; (ii) enfraquecimento do apoio político do CMU, já que o Reino Unido era um dos principais apoiadores econômicos e políticos do projeto; e (iii) acirramento do debate sobre a transferência de competências regulatórias.

O Jota já havia antecipado a tendência pelo divórcio definitivo entre o Reino Unido e a UE, modelo próximo ao hard Brexit. Em janeiro deste ano, o cenário negativo foi reforçado com a declaração da primeira ministra britânica Theresa May, em Lancaster House, de que a decisão a respeito da saída do Reino Unido do bloco europeu é irrevogável. Mesmo com o crescimento do Partido Trabalhista, e a discussão atual sobre um Brexit moderado, a fragmentação das operações financeiras na Europa parece mais próxima do que a consolidação de um mercado de capitais comum.

A primeira consequência evidente do Brexit é o fracionamento espacial do mercado de capitais, o que gera implicações em termos de custos e eficiência. Essa é a opinião, por exemplo, de Reza Moghadam, vice-presidente de fundos soberanos de banco de investimento norte-americano, em artigo para o Financial Times.

O segundo efeito, mais profundo e problemático, decorre da fragmentação regulatória, já que todas as operações sediadas no Reino Unido estavam sob supervisão da UK Prudential Regulation Authority. Essa consequência, drástica em termos de consistência e eficiência na atividade financeira, acarretaria em dificuldade de investidores e bancos em transitar nas diversas jurisdições e interpretações das regras financeiras locais.

Aparentemente, o sucesso do CMU depende das negociações futuras da primeira ministra britânica para que o Reino Unido permaneça em uma espécie de salvo conduto dentro da UE para operações financeiras. A opção entre o hard e o soft Brexit pode ser determinante para a continuidade de um mercado financeiro europeu, o que interessaria sobretudo ao distrito financeiro de Londres. Os discursos proferidos por May na recente campanha para as eleições gerais indicam um posicionamento firme sobre a saída do Reino Unido, mas possivelmente flexível em relação ao mercado financeiro de um modo geral (free-trade agreement). Para a analista e Professora Ngaire Woods, diante da fragmentação política demonstrada pelas eleições antecipadas, o caminho atualmente menos arriscado para Theresa May é apostar em uma negociação colaborativa e realista do Brexit.

O cenário parece indicar, portanto, que o futuro consistente e unificado de um mercado de capitais comum na UE, com participação central do Reino Unido, depende exclusivamente da esfera política. Os benefícios da inclusão do Reino Unido no CMU são evidentes, desde a centralização regulatória, a utilização do direito inglês para garantir a coercibilidade dos contratos, bem como a expertise do centro financeiro londrino em operações financeiras. Resta analisar se os benefícios regulatórios serão suficientes para modular os interesses políticos de diferentes países da União Europeia envolvidos nas negociações do Brexit.

 

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[1] WRIGHT, William. Beyond Brexit: What next for European Capital Markets? New Financial, June 2016.
[2] GOODHART, Charles; SCHOENMAKER, Dirk. The United States dominates global investment banking: does it matter for Europe? Bruegel Policy Contribution 2016/06, 2016.logo-jota