Série Voz

Os direitos mais baratos do mercado

Uma decisão pode salvar centenas de vidas negras, mas romper com o racismo estrutural depende de mudanças institucionais

Crédito: Pexels

No artigo que deu início à série Voz, Adriana Cruz expôs a inaptidão do sistema de justiça para lidar com a violência contra a religiosidade negra no Brasil. Em uma análise técnica e crítica, a professora da PUC-Rio demonstrou que atentados contra terreiros de umbanda e candomblé se amoldam aos tipos penais previstos na Lei n. 13.260/16: são atos de terrorismo doméstico. A dificuldade de qualificar juridicamente estes atos, nos termos da lei, decorre de uma resistência sistemática de agentes políticos, jurídicos e institucionais quando está em jogo a subversão de um sistema estruturalmente discriminatório.

Essas resistências não são fruto apenas de inclinações pessoais ou psicológicas. Ainda que possa haver maus juízes, promotores e políticos, não há motivo para crer que sejam uma maioria, ou mesmo que existam em proporção superior à de maus profissionais em outras categorias. O problema parece estar nas próprias estruturas e instituições políticas, sociais e jurídicas. Daí se falar que o racismo não é apenas um problema de condutas individuais. O racismo é uma racionalidade, como tem apontado o professor Silvio Almeida[1]. Uma racionalidade que opera por determinados modos e produz sistematicamente certos efeitos ao guiar instituições e estruturas que, já estando postas, resistem às investidas pontuais de mudança. Vamos entender melhor cada uma destas afirmações, antes de avançar.

Quando se fala que o racismo é uma racionalidade que opera a partir de certas estruturas, não se quer dizer – ao menos, não aqui – que há uma vontade racista, específica e oculta, guiando nossas instituições como marionetes. Pensar o racismo como uma racionalidade estrutural significa simplesmente seguir aquilo que, na filosofia política, John Rawls já apontara desde a década de 70.[2] Estruturas importam e induzem determinados resultados. Uma estrutura social injusta pode, acidentalmente, produzir resultados justos. Mas a tendência é que produza exatamente resultados injustos. No caso brasileiro, herdamos – sem grandes rupturas – uma estrutura social erigida sobre a escravidão. Um sistema escravocrata sem precedentes, tamanha sua impregnação em nosso tecido social – basta lembrar que, até às vésperas da abolição, toda pessoa livre no Brasil pretendia (e uma boa parte conseguia) ser proprietária de ao menos uma pessoa escravizada[3]. O fim da escravidão levou às políticas de embranquecimento da população e às políticas de exclusão (quando não de total neutralização) das populações negras, relegadas às posições de marginalização social. E as estruturas sociais seguiram operando normalmente, reproduzindo a racionalidade de exclusão e de invisibilização especialmente contra o mesmo grupo vitimado pela escravidão. Não é coincidência que, em todos os indicadores sociais, e mesmo quando se excluem outras variáveis, pessoas negras estejam em posição de inferioridade em comparação com pessoas brancas. Não há incentivos – institucionais e estruturais – para que o resultado seja outro além de racista (no sentido de impactar desproporcionalmente pessoas negras).

Pois bem, além de afirmar – sobre os ombros de gigantes – que nossas estruturas sociais operam a partir de uma racionalidade que produz resultados racistas (para além dos comportamentos racistas individuais), disse também que essa racionalidade tem como característica gerar uma certa resistência à mudança. Aqui também não há grandes novidades para aqueles que têm estudado o funcionamento de instituições. Qualquer que seja o exemplo – Judiciário, Executivo, Legislativo, entidades da sociedade civil – instituições sedimentadas tendem a operar por uma lógica de inércia. Basta ver, para mencionar um assunto atual, a dificuldade que tem sido alterar aspectos relevantes do funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Não é que haja uma crença firme em que o Supremo atua hoje da melhor forma e pelos melhores procedimentos imagináveis. Nem se pode dizer que faltam ministros que desejem mudanças que tornem mais eficiente a prestação jurisdicional de nossa Suprema Corte. Mas mudanças profundas são institucionalmente difíceis e custosas[4]. E mesmo quando instituições tomam decisões capazes de alterar o status quo– uma lei, um leading case, uma política pública –, cada nova decisão gera um novo status quo, renovando assim a dificuldade de mudança institucional. O Código Civil de 2002 nasceu velho e cheio de críticas, mas ninguém pode imaginar que teremos um novo Código tão cedo. Pelo contrário: uma vez superada a resistência à mudança, o ônus político e institucional que um agente precisa enfrentar para ir contra o novo status quo (até mesmo para aprofundar seus propósitos) é ainda mais elevado. Não há, novamente, incentivo para “remar contra a maré”.

Até aqui, não disse maiores novidades. Voltemo-nos para o racismo estrutural. Temos, pelo conceito, que as diversas regras, políticas e estruturas sociais que construímos ao longo de séculos têm produzido resultados que sistematicamente impactam de maneira desproporcional pessoas negras. Muitas dessas regras, políticas ou mesmo realidades sociais são ainda desconhecidas, tornando difícil atuar para desconstruí-las. Por outro lado, mesmo quando somos capazes de superar o a dificuldade que é identificar as engrenagens dessa racionalidade racista, surge o segundo nível de obstáculo – a resistência institucional à mudança. O que nos leva à ADPF n. 635.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental, sob relatoria do Ministro Edson Fachin, exemplifica o que vimos até aqui. O objeto daquela ADPF é, em linhas gerais, a política de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, cuja letalidade e ineficácia atingiram níveis alarmante, em detrimento de direitos fundamentais de pessoas negras e moradoras de favela. Ocorre que o problema da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro não é nem novo, nem pontual. Ainda que o atual governador tenha intensificado a política do que ele mesmo chamou de “tiro na cabecinha”, a realização de operações policiais em favelas, gerando mortes e violações graves de direitos fundamentais, data de muitos governos atrás. De tal modo que se instaurou uma racionalidade – e até mesmo um imaginário popular e institucional – que, por um lado, produz mortes em massa de pessoas negras e pobres e, de outro, normalizou estas mortes, expostas diariamente nos noticiários locais. Não só a morte é normalizada, mas também o ciclo de marginalização social é reforçado por essa política de segurança. Apenas para se dar um exemplo, por conta de operações policiais, crianças negras e moradoras de favela perdem 1 em cada 10 dias de aula. Sem nem mesmo acesso à educação – já precarizada – é difícil crer que há condições para fugir à marginalização social E, assim, a violência policial, a morte de pessoas negras e a falta de condições para romper o ciclo de marginalização se tornam o normal. O status quo que, a julgar por seus resultados, dificilmente um observador diria não ser racista – ou seja, perpetuador da condição precarizada, invisibilizada e excluída das pessoas negras.

Mesmo sendo uma racionalidade evidente e apesar de a resposta jurídica ser clara – há maior violação ao direito à vida, como direito de defesa, do que a promoção da morte pelo Estado? – o que se viu foi uma resposta institucional inicial do Supremo que não divergiu da tendência a resistir à mudança. Basta lembrar que, quando a ADPF foi ajuizada (em 19 de novembro de 2019), a situação no Estado do Rio de Janeiro já era crítica. A letalidade policial disparara no mesmo ano fez vítimas como a menina Ágatha Felix, aos oito anos, e a menina Jenifer Silene Gomes, aos onze – casos que foram noticiados nacionalmente. A despeito disso, apenas em 2 de abril de 2020 foi determinada a inclusão em pauta do processo, para julgamento – cuja sessão virtual iniciou no dia 17 de abril. Ou seja, a cautelar não foi apreciada monocraticamente, tendo o ministro relator submetido a questão ao colegiado – uma respeitável prática do Ministro Fachin que, no entanto, não encontra eco em alguns de seus pares e que não encontra aplicação em outros casos que tratam de temas muitas vezes menos urgentes e com risco de danos bem menos relevantes. A sessão virtual para julgamento da cautelar nunca foi encerrada. Votou, em linhas gerais, o Ministro Fachin, para proibir o uso de helicópteros como plataformas de tiros, para resguardar as condições para investigações de crimes praticados em operações e para proteger escolas, creches, hospitais e postos de saúde no contexto de operações. Em seguida, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos. Sem decisão, a normalidade da política “fuzilocêntrica” se manteve, como se manteve a máquina de produzir mortes de pessoas negras.

Uma sucessão de tragédias do destino, no entanto, converteram a ADPF n. 635 em algo mais do que mero exemplo de como a racionalidade do racismo segue produzindo seus efeitos a partir da normalidade do funcionamento de nossas instituições. A chegada da pandemia da Covid-19, associada ao aumento das operações policiais e à morte do menino João Pedro, que gerou relevantes mobilizações sociais, levaram a que todos os atores processuais da ADPF formulassem novo pedido de tutela de urgência, direcionado ao Ministro Fachin, para que fosse determinada a suspensão das operações policiais durante a pandemia. Ao acolher monocraticamente o pedido, o ministro permitiu-nos descobrir o que ocorre quando se enfrenta a normalidade intolerável do racismo, superando a barreira de resistência à mudança que perpetua nossas estruturas de discriminação.

Como hoje já se sabe, o Ministro Fachin deferiu a tutela de urgência para suspender as operações policiais, salvo situações excepcionais e com a adoção de medidas de proteção à saúde – tudo devidamente justificado por escrito. Tão logo a decisão foi publicada, não faltaram manifestações das forças de segurança fluminenses bradando diuturnamente o risco de caos social, a inviabilização da atividade policial e a explosão do número de crimes praticados no Estado. Os dados mais recentes mostram exatamente o contrário.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública – autarquia estadual fluminense – houve efetiva redução de quase 10% no total de homicídios dolosos, crimes violentos letais e intencionais e roubo de carga somados, quando são comparados os dados de maio e junho de 2020. Mesmo isoladamente, cada um destes grupos de atos criminosos apresentou redução mês a mês.

Não só reduziu o número de homicídios no geral. Após a decisão proferida pelo Ministro Fachin, o Rio de Janeiro registrou também o menor número de pessoas mortas em um mês pela polícia desde dezembro de 2015. Em junho de 2019, 153 pessoas morreram em suposto confronto com agentes de segurança. Em maio deste ano, foram 129. Em junho de 2020, o número foi de 29 pessoas – dois dígitos.

É como se, com uma simples decisão, o Ministro Edson Fachin houvesse evitado mais de 100 mortes no Rio de Janeiro, sem que nem mesmo um único crime a mais tenha sido cometido no Estado. Foram 100 vidas – estatisticamente, de pessoas negras e moradoras de periferias – protegidas em seu valor intrínseco e incomensurável.

Antes de se conhecer com precisão os efeitos da decisão do Ministro Fachin, a tutela de urgência foi submetida a referendo do plenário.  Em razão do recesso de julho, o julgamento só será concluído na primeira semana de agosto. Mas é difícil imaginar que, diante dos novos dados – que mostram queda nas mortes e queda na criminalidade –, o Supremo Tribunal Federal possa deixar de referendar a decisão cautelar.

No caso específico da segurança pública, a suspensão das operações policiais durante a pandemia serviu de exemplo para um experimentalismo há muito necessário. Está muito claro que a política vigente não funcionou. A desconsideração das vidas negras, das casas negras (a ação também questiona os mandados de busca e apreensão coletivos), da integridade física negras (a ação pede a alocação de ambulâncias próximas às localidades em que realizadas as operações policiais) e da segurança negra não produz efeitos positivos, senão aprofunda uma normalidade de violência, de invisibilização e de exclusão desta população marginalizada.

Veja-se, por outro lado, o custo elevadíssimo de uma decisão incisiva, contestadora e potencialmente transformadora de estruturas racistas – se confirmada e somada à exigência de apresentação de novo plano de segurança. Foi necessária uma pandemia, a morte de uma criança negra, a morte de outros jovens e adultos negros, a reiteração de um pedido  cuja análise não se concluíra e, aí sim, a boa atuação de um ministro da Suprema Corte para que se interrompesse a máquina de produzir morte instalada no Rio de Janeiro. Como uma trágica ironia, salvar “a carne mais barato do mercado” custa caro institucional e politicamente. Não deve ser assim.

A decisão do Ministro Fachin pode ser percebida como o primeiro forte indicativo de que uma mudança estrutural no campo da segurança pública é possível, necessária e compatível com os objetivos da Constituição de 1988. Em termos mais amplos, de ruptura com as racionalidades racistas hoje postas, a decisão é também um convite para se pensar – para além da hermenêutica constitucional casuística – como tornar menos custosa, institucionalmente, a tomada de decisões transformadoras de nossas instituições políticas, jurídicas, econômicas e sociais, especialmente para a promoção de direitos fundamentais e ruptura do sistema estruturalmente racista de que temos falado.

O Supremo Tribunal Federal (e o ordenamento processual brasileiro) deve adotar mecanismos próprios e mais céleres de controle de constitucionalidade para a proteção de direitos fundamentais? Como o princípio da colegialidade, que ainda carece de cultivo na Corte, deve ser lido quando estão em jogo os efeitos do racismo histórico e persistente de nossa sociedade? Pedidos de vista devem estar sujeitos a regras próprias em casos que envolvam genocídio de povos tradicionais e populações negras? O Supremo pode (e deve) servir como instituição que impulsiona outros poderes para além da inércia[5], forçando-os a agir para sanar violações sistêmicas de direitos fundamentais? São apenas algumas entre as várias perguntas sobre desenho institucional que podem, enfim, baratear a efetividade de nossos direitos.

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[1] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen, 2019.

[2] RAWLS, J. A Theory of Justice: Revised Edition. Cambridge: Belknap, 1999.

[3] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

[4] Esse parece ser o racional, em outro contexto, para a defesa da postura minimalista, cf. SUNSTEIN, Cass R. Beyond judicial minimalism. Tulsa L. Rev., v. 43, p. 825, 2007.

[5] Sabel, C. F., & Simon, W. H. (2003). Destabilization rights: How public law litigation succeeds. Harv. L. Rev.117, 1016.