Aline Bagesteiro

O Leilão de Reserva de Capacidade de 2021, primeiro realizado para contratação de potência, trouxe para o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/setor-eletrico">setor elétrico</a> um novo embate jurídico, recentemente apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos Recursos Ordinários em Mandado de Segurança nos 38.612, 38.642 e 38.777.
Em atendimento às normas que regem a contratação de reserva de capacidade, em especial o Decreto 10.707/2021, foi editada pelo Ministério de Minas e Energia a <a href="https://www.gov.br/mme/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/portarias/2021/portaria-normativa-n-20-gm-mme-2021.pdf/view">Portaria Normativa 20/GM/MME</a>, estabelecendo as diretrizes para a realização do leilão. O artigo 7º da portaria trouxe um rol de empreendimentos que não seriam habilitados tecnicamente, dentre eles aqueles “cujo CVU, calculado nos termos do art. 5º da Portaria 46/GM/MME, de 9 de março de 2007, seja superior a R$ 600,00/MWh”. 
Empreendedores cujas usinas possuíam CVUs acima do limite estabelecido buscaram amparo no judiciário, por Mandados de Segurança junto ao Superior Tribunal de Justiça (<a href="http://STJ">STJ</a>), que visavam o afastamento da limitação, de forma a garantir a participação no leilão. 
Diversos foram os argumentos que fizeram com que o STJ, de forma liminar, permitisse a participação dos empreendimentos no leilão. No entanto, ao julgar o mérito das ações, em decisão, a nosso ver, acertada, o STJ denegou a segurança pleiteada. 
O artigo 3º do Decreto 10.707/2021 prevê que a reserva de capacidade, na forma de potência, será contratada por meio de leilões, observadas as diretrizes estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia. Também de acordo com o decreto, o MME definirá o montante total de reserva de capacidade a ser contratada, com base em estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), os quais deverão ser submetidos a consulta pública. 
Vale aqui um destaque: a obrigação de submeter à consulta pública os estudos elaborados para subsidiar a metodologia de definição do montante total de reserva de capacidade, prevista no parágrafo único do artigo 4º do Decreto 10.707/2021, foi cumprida com a abertura da Consulta Pública MME 108/2021, onde foram disponibilizadas, além da minuta de Portaria, as notas técnicas correlatas. 
Não há obrigação de submissão à consulta pública dos valores de CVUs. E ainda que houvesse obrigação de divulgação prévia, a nosso ver, também teria sido cumprida a obrigação, uma vez que o limite do CVU foi divulgado previamente à realização do leilão.
Não se pode deixar de lembrar que há discricionariedade na tomada de decisão pelo MME. E a decisão não foi tomada de forma infundada, foi embasada por estudos e documentos técnicos, após a realização de consulta pública que proporcionou debate público e permitiu a maturação das reflexões sobre o tema.
E como bem registrado no Acórdão do STJ no Mandado de Segurança 28.124, “a consulta não tem por fim causar a submissão das decisões político-administrativas à vontade popular, ou sequer a sua substituição, até mesmo pela dificuldade de obtenção de consenso diante da heterogeneidade dos diversos interesses em jogo, mas sim possibilitar que a sociedade que participe ativamente do processo decisório e da elaboração de políticas públicas, em legítimo exercício de cidadania”.
No caso em tela, coube ao MME a descrição de suas necessidades e do objeto da contratação, e aos empreendedores interessados, a adequação de seus produtos (energia e/ou potência) à tais necessidades.
Para julgar procedente o pedido dos empreendedores, teria o STJ que rever o mérito da decisão administrativa que estabeleceu o teto de R$ 600/MWh para participação no certame, indo de encontro ao Enunciado 20 da II Jornada do Fórum Nacional de Concorrência e da Regulação (AJUFE): “ao decidir sobre questões regulatórias no setor de energia elétrica, os juízes devem ter em conta os problemas sistêmicos e econômicos que suas decisões podem causar”.
Outro aspecto envolvido na discussão diz respeito ao limite do valor do CVU. De acordo com as Notas Técnicas do MME e da EPE, o limite visava o respeito aos compromissos ambientais assumidos pelo Brasil no cenário internacional. Conforme apontado no Acórdão do STJ, “a limitação do CVU se deu com o escopo de observar o princípio da modicidade tarifária – sob as premissas de que, quanto maior o CVU, maior o custo de geração e, por conseguinte, o custo total do sistema –, sendo o seu valor fixado por meio de avaliação técnica específica realizada pela Empresa de Pesquisa Energética”.
O CVU é o Custo Variável Unitário de geração e engloba todos os custos operacionais do empreendimento, incluindo o custo do combustível. Ou seja, quanto maior o CVU de uma usina, maior o custo que ela imputará ao sistema e, consequentemente, o custo que será repassado aos consumidores. E, segundo informou o MME, outra razão para a restrição foi justamente esta, garantir a modicidade tarifária e não onerar em demasiado os consumidores.
Em que pese a decisão do STJ contenha argumentos jurídicos robustos, entendeu o STF por reformar a decisão, ao julgar os recursos que foram interpostos pelos empreendedores, dentre eles o RMS 38642. E a decisão do STF é bastante interessante, trazendo para a discussão aspectos relacionados ao desenho da metodologia do leilão pelo MME.
Aponta o voto do ministro relator, Nunes Marques: “O preço é critério de julgamento de licitações, não de habilitação de concorrentes”. De fato, nos parece que a metodologia definida pelo Poder Público se equivocou, misturando fases de habilitação e julgamento das propostas. O CVU não deveria servir de critério técnico de habilitação de interessados, mas como critério de julgamento.
A decisão do STF também aponta o errôneo argumento ecológico levantado pelo MME e EPE, que afirmam que “a fixação de um limite máximo para fins de habilitação técnica se faz necessária, de modo a impedir declarações desarrazoadas, bem como restringir a participação de empreendimentos que utilizem combustíveis em desacordo com os compromissos ambientais assumidos pelo país”.
Compartilhamos da visão do STF de que o estabelecimento de um limite para o CVU parece estar, ou deveria estar, mais relacionado com o preço da geração de energia do que com opções ecológicas. Decisões a respeito do uso de fonte termelétrica movida à óleo combustível ou outras fontes consideradas mais prejudiciais do ponto de vista ambiental, ou mesmo da participação ou não de tais fontes no leilão, deveriam ter sido tomadas no passo antecedente, quando se permitiu a participação destas usinas no leilão. 
No entanto, com um argumento levantado pelo STF não podemos concordar: o de que a adoção de um limite para o CVU pode, em certas situações, alijar da disputa interessados cujo preço final seja o mais barato, produzindo efeito inverso do desejado, elevando a tarifa dos consumidores.
Isto porque, de acordo com a Nota Informativa 2/2022/DPE/SPE, alguns efeitos indesejados se concretizaram com estes empreendimentos sagrando-se vencedores do certame: quando estas usinas forem despachadas, o consumidor pagará entre 2 e 3 vezes mais pela geração, e o consumidor terá que pagar 65,8% a mais pela energia do que o limite inicialmente estabelecido nas diretrizes do Poder Concedente.
De acordo com estudos realizados pela Abrace Energia, o resultado do leilão irá gerar um custo ao consumidor de R$ 582 milhões por ano até 2041. Além disso, um custo adicional de R$ 1,1 milhão/hora quando as usinas despacharem, em razão do CVU elevado destas usinas, o que poderá gerar um impacto mensal de R$ 15/MWh.
Ainda que o MME não possa blindar o processo contra questionamentos judiciais, está nas mãos do poder público modelar adequadamente os próximos leilões, de forma clara e inequívoca e que permita atingir os objetivos de adoção de política pública voltada ao cumprimento de metas ambientais, e, principalmente, a modicidade tarifária.

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JOTA

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