O evolver social obriga-nos, a todo instante, à revisão dos conceitos empregados para a compreensão das coisas da vida. Não raro o conhecido é assim identificado por ser reiteradamente assim anunciado, não por ser, de fato, conhecido. Retendo essa ideia, retomamos essa série desafiando a orientação predominante de um tema tão antigo quanto controverso.
Trata-se da discussão que se convencionou chamar de tributação pelas contribuições sociais dos descontos condicionais e incondicionais, tema que ganha especial relevância com o programa de Conformidade Tributária, lançado pela Superintendência Regional da Receita Federal, vinculada ao Serviço de Monitoramento dos Maiores Contribuintes, que tem gerado autuações e movimentado debates na política comercial dos varejistas no país.
Chama a atenção que os arranjos contratuais contemporâneos, que amarram a composição do preço praticado pela indústria/distribuidor com o varejista, ainda sejam indistintamente chamados de descontos condicionais ou incondicionais. Existe um certo consenso que resume o desconto incondicional àquele que consta no documento fiscal nota e que independe de evento futuro e incerto. Esses descontos não são oferecidos à tributação e sobre isso não há grandes controvérsias.
Já os descontos condicionais são os que dependem de evento futuro e incerto e a sua implementação é representativa de receita para o beneficiário, independentemente da forma como a vantagem é materializada (depósito, bonificação, desconto). Se a redução no valor do pagamento estiver associada ao pagamento da dívida com o industrial/distribuidor antecipada, então essa redução assume a feição de receita financeira, ao passo que as demais modalidades de desconto ou benefícios devem compor a base de cálculo das contribuições no regime não cumulativo. Essa é a compreensão predominante, objeto das provocações deste texto.
Alguns casos exploram a questão por outras categorias, como se as doações, receitas financeiras, serviços (publicidade, logística etc.), ajustes de custo, entre outros, fossem espécies pertencentes ao gênero dos descontos. É notável que, ao entender a questão pela perspectiva desse parâmetro binário (desconto condicional ou incondicional) — e sobre eles atribuir determinados efeitos —, somos convidados a encaixar o benefício nesta ou naquela hipótese. Esses acordos, somente para ilustrar, compreendem, (i) verba de rebaixa de preço, (ii) recomposição de margem (sell in ou sell out), (iii) desconto em título de crédito, (iv) bonificação em mercadoria, sejam (iv.a) vinculadas ou (iv.b) desvinculadas contratualmente, (v) verba de marketing, (vi) verba/desconto logístico(a), (vii) aquisição de espaços privilegiados no estabelecimento varejista (gôndolas, ilhas, destaques), (viii) prêmios de exclusividade, (ix) acordos de recomposição de perda/não devolução, (x) acordos de aniversário, (xi) verbas/mercadorias de inauguração de estabelecimento, (xii) acordos de lançamentos de novos produtos/introdução, (xiii) prêmios por atingimento de metas (rapel), sejam elas de (xiii.a) compras ou (xiii.b) de vendas, (xiv) acordos de e-commerce, (xv) verbas de promotores e, enfim, as mais diversas formas de benefícios recíprocos que possam ser pensados.
Passando os olhos nesses 15 formatos de contratos, eleitos aleatoriamente para fins ilustrativos, já é possível concluir que esse parâmetro binário é míope e incapaz de disciplinar reflexos tributários que acompanham os direitos e deveres recíprocos dessa cadeia de valor. A despeito da ausência de uniformidade na nomenclatura desses contratos, a criatividade do varejista, do industrial e do distribuidor convergem para o mesmo objetivo: fomentar práticas comerciais que induzam a circulação dos bens, movimentar os estoques e evitar a ociosidade da capacidade de produção industrial. São formas contratuais que se enlaçam desde a aquisição da matéria-prima para o processo de transformação industrial até a sacola do consumidor final. É assim, repisa-se, que as categorias desconto condicional ou incondicional mostram-se insuficientes para exprimir essa complexa realidade.
Os descontos incondicionais, como mencionado, não compõem a base de cálculo do PIS/Cofins, da CPRB e do lucro presumido[1]. Nos termos da IN nº 51/1978, esses descontos representam “parcelas redutoras do preço de vendas, quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos”. É da essência do desconto a redução do valor que será recebido pela contraprestação do contrato.
Se bem observarmos o que ocorre na prática comercial, fica evidente que diversos contribuintes não informam os descontos em notas fiscais por diversos motivos, seja pela preservação de informações sobre a margem praticada ou, ainda, pela impossibilidade de conhecer o valor agregado daquela operação, pois não raro a operação de venda é vinculada a uma série de outras operações comerciais.
A despeito da insuficiência dessas classes para exprimir essa complexidade, é precisamente por esse motivo que a vinculação ao documento fiscal — que afasta possibilidade de se promover os ajustes de receita – para a composição da receita bruta tributável, utilizado pela Receita Federal, seguida pelo Carf e tribunais superiores, é insatisfatório para orientar a questão[2].
Iniciando essa serie de artigos com a análise específica pela perspectiva da receita do vendedor, alguns precedentes têm alçado a discussão ao nível que ela merece, afastando a vinculação à nota fiscal como critério determinante. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), por exemplo, afastou a exigência das contribuições por restar demonstrado, no bojo de prova pericial em ação anulatória, que os benefícios concedidos ao contribuinte repercutiram diretamente no valor das operações realizadas, mostrando-se indevida, então, a inclusão desses valores na base de cálculo do PIS/Cofins[3].
Prevaleceu o entendimento de que, para fins de exclusão da receita bruta na operação de venda, as bonificações financeiras/contratuais seguem a mesma regra dos descontos incondicionais, inclusive sendo desnecessário o registro em notas fiscais. Isso porque, no caso, “foi verificado, no trabalho pericial, a sua real vinculação às vendas realizadas, configurando ‘valores aportados pela autora aos seus clientes, ou de crédito/descontos em face de acordos comerciais previamente estabelecidos’, ou seja, em verdade, resultaram na redução do valor da operação”. Afastam-se as referidas bonificações, portanto, do conceito de “receita ou faturamento”. Trata-se de um importante precedente, que capturou a essência da operação e reconheceu a possibilidade de exclusão desses descontos da base de cálculo das contribuições ao PIS e Cofins.
É que o conceito de receita, também abordado neste artigo desta série, impõe que alguns dispositivos sejam lidos de forma sistemática. Por mais que a legislação de regência das contribuições no regime não cumulativo (10.637 e 10.833) prescrevam que a incidência ocorre sobre o total das receitas auferidas, independentemente da classificação contábil, a legislação estabelece uma ordem de expedientes que deve ser seguida.
Primeiro, estabelece o DL nº 1.598/1977 que o lucro real “deverá ser determinado com observância dos preceitos da lei comercial” (art. 6º), o que invariavelmente nos conduz à Lei 6.404/1976, que subordina a apuração do resultado ao regime de competência e “aos princípios de contabilidade geralmente aceitos” (art. 177).
Também por força do que estabelece a Lei 12.973/2014, cujo objetivo, diz a exposição de motivos, é “a adequação da legislação tributária à legislação societária e às normas contábeis”, os tributos incidentes sobre o lucro, sobre a renda e sobre as receitas devem acomodar a disciplina contábil conforme previsto em lei (art. 1º). É assim que, pautados pela técnica do reenvio legislativo, vamos aos pronunciamentos contábeis (no caso, o CPC nº 47, que disciplina o reconhecimento das receitas e substituiu o CPC nº 30, vigente à época da edição da Lei 12.973/2014[4]).
Estabelece o pronunciamento que a entidade deve reconhecer como receita “o valor do preço da transação”, sendo necessário considerar os termos do contrato e suas práticas de negócios usuais. Justamente por essa razão, o item nº 51 estabelece que “o valor da contraprestação pode variar em razão de descontos, abatimentos, restituições, créditos, concessões de preços, incentivos, bônus de desempenho, penalidades ou outros itens similares.” Acrescenta o pronunciamento que “a contraprestação prometida pode variar também se o direito da entidade à contraprestação depender da ocorrência ou não ocorrência de evento futuro”.
É certo que não existe uma fórmula única dimensionar as receitas decorrentes destes complexos acordos comerciais. Isso porque não se pode perder de vista que o contrato de compra e venda, estabelece o Direito Civil, é formado pelo consentimento das partes, pela coisa, e pelo preço, que deve ou pode ser determinado por um critério fixado em contrato.