Alisson Possa

O período das propagandas eleitorais de 2022 finalmente começou. Certamente esta será uma das <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições</a> que irá marcar história no país, não só pela polarização entre duas das figuras que se tornaram ícones nacionais da divisão esquerda-direita, mas também pelo uso intensificado de tecnologias.
As eleições 2018 foram importantes na aplicação de tecnologias, no entanto foi a primeira vez que o país viu essa estratégia resultar na eleição de um candidato à Presidência com poucos segundos de televisão. As estratégias brasileiras no uso de dados e tecnologias foram diferentes daquelas adotadas nas eleições presidenciais dos Estados Unidos e na votação do Brexit no Reino Unido[1], ambas em 2016. Todavia, a tônica da preocupação do emprego dessas inovações para a disseminação de fake news tomou conta das instituições brasileiras.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), desde então, tem atuado incisivamente contra figuras públicas (políticos, influenciadores, blogueiros etc.) que atacam o sistema brasileiro de votação, sendo, inclusive, pauta do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/analise/posse-de-alexandre-de-moraes-coloca-tse-no-centro-do-jogo-politico-16082022">discurso do ministro Alexandre de Moraes na sua posse</a> como presidente da corte eleitoral no dia 16 de agosto, que disse:
<blockquote class="jota-article__citation">“A intervenção da Justiça Eleitoral, como afirmei anteriormente, será mínima, porém será célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas, principalmente daquelas escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as famosas ‘fake news’. E assim atuará a Justiça Eleitoral, de modo a proteger a integridade das instituições, do regime democrática e da vontade popular, pois a Constituição federal não autoriza que se propaguem mentiras que atentem contra a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições".</blockquote>
A <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">Lei Geral de Proteção de Dados</a> (LGPD) tem relação intrínseca com a disseminação de fake news, uma vez que os canais de comunicação utilizados demandam o tratamento de dados pessoais[2].
Conforme mencionado em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-vai-exigir-novo-olhar-estrategia-campanhas-eleitorais-21022022">artigo publicado no JOTA</a> em 21 de fevereiro deste ano[3], o TSE já olhou para a proteção de dados junto à Autoridade Nacional de Proteção de Dados do Brasil (ANPD) em 2021 e alguns pontos que foram elencados. Desde aquele momento, a questão ganhou força e foi objeto de treinamentos por Tribunais Regionais Eleitorais, como, por exemplo, webinar realizado pelo TRE-MS em 3 de março de 2022 [4] e evento do TRE-DF no último dia 9 de agosto [5].
Recentemente, o tema da relação entre LGPD e eleições também ganhou robustez com a limitação da divulgação de bens de candidatos pelo sistema DivulgaCandContas [6], exclusivamente sob a ótica do tratamento de dados dos doadores e candidatos.
Esse contexto dá a tônica de que os limites ao uso de dados pessoais nas campanhas serão objeto de questionamentos, não só por parte de órgãos fiscalizadores, mas também por parte de titulares, advogados e até mesmo candidatos que disputam os mesmos espaços, como maneira de tentar derrubar ações das campanhas rivais.
Aproveitando o trabalho prático de assessoramento de algumas campanhas, foi possível verificar determinadas práticas e questionamentos comuns nas propagandas desse ano, motivando a escrita do presente artigo como maneira de auxiliar não só advogados eleitorais, mas, também, candidatos e publicitários responsáveis pelas estratégias de campanhas.
Inicialmente, é imprescindível que as campanhas busquem Encarregados pela proteção de dados pessoais, figura presente no art. 41 da LGPD e que podem ser pessoas físicas internas à estrutura ou até mesmo pessoas jurídicas prestadoras de serviço. Ainda que a nossa legislação tenha optado por não discriminar a questão como a Regulação Geral de Proteção de Dados da União Europeia, transferindo para a ANPD a responsabilidade de regulamentar essa figura (e que já realizou tomadas de subsídios para a elaboração do regulamento em março de 2022), muitas das atividades e conhecimentos necessários foram já expostos, por exemplo, no "Guia orientativo para definições dos agentes de tratamento de dados pessoais e do encarregado" da própria ANPD, indicando o papel que essa figura tem no auxílio à conformidade legal das atividades de tratamentos de dados.
A Resolução n° 23.610 do TSE também determina a obrigação de indicação do Encarregado no art. 10, §6º como canal de comunicação obrigatório pelos candidatos nos endereços eletrônicos. Resta saber se a não indicação do Encarregado será objeto de fiscalização pelos Tribunais Eleitorais.
A primeira pergunta que as campanhas fazem em relação ao Encarregado têm sido se o veículo de comunicação pode ser o mesmo que o canal geral de contato da campanha, algo que, segundo leitura do art. 10, §5º da resolução do TSE, seria permitido, desde que o Encarregado possua acesso àquele ou então a campanha defina fluxo para o encaminhamento das demandas relativas à LGPD e à resolução a essa figura. Isso facilita, também, o controle dos responsáveis pelas estratégias da campanha sobre as melhorias necessárias nas abordagens de tratamentos de dados pessoais conforme os requerimentos mais solicitados.
Outra questão que estamos presenciando é o aproveitamento de bases de dados de telefones coletadas em campanhas passadas para envios de mensagens. Sobre isto, é importante destacar que em 2018 as campanhas não precisavam se preocupar com questões como bases legais para o tratamento (também presente na resolução, art. 28, III) e registros de tratamentos dos dados pessoais, e, portanto, não possuíam claramente as informações que seriam necessárias hoje.
Para essas hipóteses, primeiro, é necessário estar atento à vedação do art. 34, II da Resolução, que impõe o consentimento como base legal para o tratamento de comunicações com disparo em massa. Considerando que os dados pessoais coletados nas campanhas passadas não necessariamente possuem um consentimento atrelado à eles, é possível utilizar o mecanismo de transparência para tratamentos de dados não coletados diretamente pelos titulares, previsto no art. 14 da Regulação Geral de Proteção de Dados da União Europeia, através de raciocínio analógico.
Ainda que a LGPD não trate desse tema nos mesmos moldes, os princípios de transparência, finalidade, adequação, necessidade e boa-fé (art. 6º), assim como as previsões específicas para transparência do art. 9º e os direitos dos titulares do art. 18, podem ser utilizados de maneira a justificar o primeiro contato com o eleitor, informando sobre a origem do dado (eleições passadas), as informações necessárias do art. 9º (recomendamos um link para o Aviso de Privacidade da campanha), os requisitos do art. 8ª e a escolha do titular fornecer seu consentimento ou requerer a eliminação do seu dado. É recomendado a leitura do art. 14 da regulação europeia e seus requisitos para melhor compreensão [7].
Outra questão que também deve ser levada em conta é relativa ao uso de cookies nos sites oficiais dos candidatos. O problema é complexo e necessita de uma análise profunda sobre os tipos de cookies utilizados, principalmente aqueles que buscam rastrear a navegação dos usuários em outras páginas, considerando que o titular, muitas vezes, sequer imagina esse tipo de alcance da ferramenta. Por exemplo, existem cookies que permitem o rastreamento de vídeos que o usuário assiste no YouTube para analisar estatisticamente suas preferências. Ocorre que, a depender dos diferentes conjuntos de dados combinados, não só é possível a identificação do usuário, como também a inferência de dados pessoais sensíveis.
Nesse ponto, é importante destacar que a Resolução em estudo prevê em seu art. 28, §10º, que a combinação de bases de dados, se permitir a identificação de dados pessoais sensíveis (como a convicção religiosa, por exemplo), o regime a ser observado é aquele relativo a essa categoria especial de dados. É o caso de lista para mailing com nome e email (dados não sensíveis), mas que pertence a uma determinada instituição religiosa, em que é possível inferir que o titular é propenso a aquela crença.
A natureza de dados pessoais sensíveis inferidos a partir de dados não-sensíveis, como o caso descrito acima, foi recentemente reconhecida pela Corte de Justiça Europeia [8] no Case-184/2020 em agosto de 2022, reforçando que o TSE andou bem na redação do dispositivo acima citado.
Assim, retomando a utilização de cookies em sites das campanhas, é importante levar em conta todo o conjunto de diferentes bases de dados que serão cruzados e analisados e as possíveis inferências e identificações, para, então, determinar as bases legais aplicáveis e as ferramentas necessárias para transparência e controle.
Esses são alguns dos exemplos práticos de estratégias de marketing que estamos presenciando na prática por algumas campanhas que já estão preocupadas com a conformidade à LGPD, ainda assim, longe de esgotar o tema. Questões como as transferências de bases de dados entre diferentes candidatos ou entre candidatos e partidos, a necessidade de conformidade dos operadores e sub-operadores de campanhas através de avaliações de riscos de fornecedores, e utilização de dados pessoais para ações no ambiente físico também são práticas comuns que devem ser observadas pelos candidatos.
O período de campanhas eleitorais é um período de intenso tratamento de dados pessoais, principalmente dados pessoais sensíveis, e os problemas que a não-conformidade poderá trazer, que podem variar desde multas até cassação do diploma, certamente marcarão as eleições de 2022.
<hr />
[1] Para mais informações sobre as tecnologias de microtargeting eleitoral e sua utilização em 2016, ver POSSA, Alisson.Proteção de Dados e Eleições. - São Paulo : Expressa, 2022. ISBN: 978-65-5559-984-8 (e-book).
[2] POSSA, Alisson. LGPD vai exigir novo olhar para estratégia das campanhas eleitorais. JOTA, 2022. Disponível em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-vai-exigir-novo-olhar-estrategia-campanhas-eleitorais-21022022">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-vai-exigir-novo-olhar-estrategia-campanhas-eleitorais-21022022</a> .
[3] Essa relação também é objeto de artigo na 3ª Edição da Revista Data publicada pela Data Privacy Brasil, no artigo “Serviços de Mensageria Instantânea – Dificuldades Regulatórias e Democráticas“ por Gabriela Vergili, Johanna K. Monagreda &amp; Marina Garrote. Disponível em <a href="https://drive.google.com/file/d/1EIyF104v_Vkx5y7TYjh-RX6fZdFmNDfZ/view">https://drive.google.com/file/d/1EIyF104v_Vkx5y7TYjh-RX6fZdFmNDfZ/view</a> . Acesso em 17 de agosto de 2022.
[4] O webinar está disponível no canal do YouTube do Tribunal em <a href="https://www.youtube.com/watch?v=YUP_Tagj8zc">https://www.youtube.com/watch?v=YUP_Tagj8zc</a> . Acesso em 17 de agosto de 2022.
[5] O webinar está disponível no canal do YouTube do Tribunal em <a href="https://youtu.be/xMO3iC8CqZc">https://youtu.be/xMO3iC8CqZc</a> . Acesso em 17 de agosto de 2022.
[6] Disponível em <a href="https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Agosto/suspensa-analise-de-processo-sobre-aplicacao-da-lei-geral-de-protecao-de-dados-no-registro-de-candidaturas-579932">https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Agosto/suspensa-analise-de-processo-sobre-aplicacao-da-lei-geral-de-protecao-de-dados-no-registro-de-candidaturas-579932</a> . Acesso em 17 de agosto de 2022.
[7] Disponível em <a href="https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:02016R0679-20160504&amp;from=EN">https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:02016R0679-20160504&amp;from=EN</a> . Acesso em 17 de agosto de 2022.
[8] Disponível em <a href="https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&amp;docid=263721&amp;pageIndex=0&amp;doclang=EN&amp;mode=req&amp;dir=&amp;occ=first&amp;part=1&amp;cid=481514">https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&amp;docid=263721&amp;pageIndex=0&amp;doclang=EN&amp;mode=req&amp;dir=&amp;occ=first&amp;part=1&amp;cid=481514</a> Acesso em 17 de agosto de 2022.

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