Noemia Porto

Marco Antonio Freitas

Num capítulo final, o Supremo Tribunal Federal (STF) definirá uma questão que pode parecer, à primeira vista, técnica e distante da realidade da população, mas, essencialmente, diz respeito, sim, ao cotidiano das pessoas: os créditos trabalhistas representam, em comparação a outros, uma subclasse de crédito, ou seja, devem ser “barateados”, ainda que resultem da força do trabalho humano?
Quando, infelizmente, se deixa de pagar uma fatura de cartão de crédito, a quantia que ela representa será cobrada pelo agente bancário com correção monetária, multa e juros. Esse procedimento não é objeto de maiores questionamentos no âmbito do Poder Judiciário. Faz parte da relação credor e devedor.
Os débitos dos processos trabalhistas, que resultam do reconhecimento judicial da sua existência, nada mais são do que parcelas dos contratos de trabalho que deixaram de ser pagas no passado, porém, diferentemente da situação anterior, há quem defenda que eles devam ser corrigidos com índice que sequer permite a recomposição monetária (TR) e, até mesmo, com juros complessivos (num único percentual englobar correção e juros).
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No julgamento das ADIs 5867 e 3021 e das ADCs 58 e 59, iniciado no último dia 12, e com continuidade programada para o próximo dia 26, decidir-se-á sobre a constitucionalidade ou não do § 7º do art. 879 da CLT, que prevê a correção dos débitos trabalhistas pela taxa referencial (TR).
Esse é o índice utilizado para a remuneração das cadernetas de poupança e tribunal já reconheceu que é inconstitucional para o fim de atualização monetária de débitos. Veja-se que no julgamento da ADI 4357, que tratava da correção monetária dos débitos fazendários, a Corte declarou que o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança (...) é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. O trabalhador que não recebeu o valor que lhe era devido é cidadão?
É inquestionável que a taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda (STF, ADI 493). Ou seja, ela não é capaz de traduzir a inflação do período e, dessa maneira, a sua utilização para atualizar os créditos judiciais seria o mesmo que aceitar a violação do direito de propriedade dos credores (art. 5º e 170, II, da CF).
De acordo com a jurisprudência consolidada, o conceito constitucional de propriedade contempla as hipotecas, penhores, depósitos bancários, pretensões salariais (STF, ADI 5042) e, por isso, os salários dos trabalhadores também merecem garantia constitucional, especialmente pela sua natureza alimentar.
Independentemente de serem reconhecidos a posteriori (no âmbito do Judiciário Trabalhista), eles não perdem essa característica e, por isso, aplicar-lhes um índice de correção abaixo da inflação é permitir novo vilipêndio daquela que, na maioria das vezes, é a única propriedade do trabalhador: a contraprestação de seu trabalho.
Importante lembrar que o trabalhador que procura a Justiça do Trabalho tem o objetivo de se ver integralmente reparado quanto ao prejuízo sofrido com a falta de pagamento de suas verbas salariais de que deveria ter sido destinatário. Essa reparação integral somente acontece com a correta atualização monetária dos valores que lhe foram reconhecidos na Justiça. Se não for assim, as quantias do passado acabam sendo corroídas pela inflação e o empregado não terá a reparação devida em sua totalidade.
Além disso, se o entendimento do STF pela inconstitucionalidade da TR for aplicado apenas aos credores da fazenda pública, e não for aos credores trabalhistas, estar-se-á criando discriminação arbitrária e violação à isonomia entre devedor público e devedor privado (STF, ADI 4357). O debate, então, está a reclamar coerência sistêmica da Corte.
Outro ponto merece ser destacado no julgamento das ADCs 58 e 59: a estratégia dos seus autores de tentar misturar os conceitos jurídicos diversos, de correção monetária e de juros moratórios.
Utilizando-se das nomenclaturas “bloco normativo remuneratório” ou “complexo normativo integrado”, nessa discussão tenta-se induzir ao errôneo pensamento de que a baixíssima atualização monetária decorrente da TR (§ 7º do art. 879 da CLT) somada aos juros de 1% (§ 1º do art. 39 da Lei 8.177/91) refletiriam uma justa remuneração dos créditos trabalhistas constituídos nos processos da Justiça do Trabalho. Desse modo, num viés consequencialista, acreditam que o direito apenas vale se o sistema econômico os avalizar, o que coloca em cheque a própria autonomia do direito, e do Direito Constitucional, em particular.
Todavia, essa tentativa de confusão é facilmente desfeita ao se pensar na natureza jurídica de cada um desses institutos. A correção monetária tem como escopo preservar o poder aquisitivo da moeda diante da sua desvalorização nominal provocada pela inflação (STF, RE 870947).
Por outro lado, os juros de mora são devidos em razão do inadimplemento da dívida, nos termos do art. 407 do CCB. A distinção entre eles também é vista pelo disposto no art. 322 do CPC. Para pagar o que é devido, em valor menor, pode-se desprezar esse conjunto normativo em nome de algo como “bloco normativo remuneratório”? A criação dessa lógica não seria arbitrária e casuística?
Dessa forma, ainda que a correção monetária e os juros de mora dos débitos na Justiça do Trabalho tenham sido disciplinados no mesmo art. 39 da Lei 8177/91, não existe interpretação jurídica a amparar a fusão dos dois institutos para a remuneração dos credores trabalhistas em uma espécie de juros complessivos.
No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), essa questão havia sido pacificada desde 2016. Por meio de controle difuso, o Tribunal vinha reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 39 da Lei 8.117/91 quanto à previsão de utilização da TR como índice de atualização dos débitos trabalhistas. Porém, desde 2017 a discussão foi retomada pela superveniência da Lei da “Reforma Trabalhista” (13.467/2017), que, recalcitrantemente, inseriu a mesma disposição no art. 879, § 7º, da CLT.
Recentemente, o TST levou o assunto novamente para a sua pauta e a discussão sobre o controle difuso caminhava para o reconhecimento, uma vez mais, da inconstitucionalidade do dispositivo: 17 ministros a reconheciam e apenas 7 a rejeitavam. Faltando apenas 3 votos, o julgamento foi suspenso e, ato contínuo, sobreveio liminar nos autos das ADCs 58 e 59 determinando a paralisação de toda discussão nesse sentido no âmbito dos processos da Justiça do Trabalho.
Com a retomada do julgamento pelo STF no próximo dia 26 de agosto, a expectativa, considerando a convicção de que os direitos trabalhistas são direitos fundamentais da classe trabalhadora, é de que seja mantida a coerência interpretativa, de modo a prevalecer o entendimento de que a TR não é índice de atualização monetária, seja para os credores da fazenda pública e seja para os credores de créditos trabalhistas.

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Misturar os conceitos jurídicos diversos, de correção monetária e de juros moratórios, é um grande equívoco

Os créditos trabalhistas têm valor

Misturar os conceitos jurídicos diversos, de correção monetária e de juros moratórios, é um grande equívoco