Um paradoxo que prejudica a todos nós, brasileiros. O debate sobre saúde não consegue se libertar dos corredores estreitos a que foi condenado no Brasil por mais decisivo que seja para o nosso futuro.
Ideologizado, carrega preconceitos recíprocos entre os setores público e privado. Infantilizado pelo populismo e pela demagogia, perde a noção da própria natureza técnica e científica. Partidarizado, persegue soluções mágicas de curto prazo e abandona, assim, a única fórmula para ter sucesso – consistência e continuidade ao longo do tempo com políticas de Estado. Segmentado, torna-se refém de interesses apenas parciais. Submisso às corporações, conflita no dia a dia com o que deveria ser sua motivação ética: trabalhar para todos.
No mundo real, as dificuldades do setor de saúde do Brasil tornam-se um complexo caleidoscópio onde é necessário, simultânea e contraditoriamente, ter orgulho pelo que avançamos e vergonha pelo que ainda sofremos; festejar ilhas de excelência ao lado de vazios onde o acesso digno à assistência é um sonho distante; enfim, uma confusa babel para a qual olham, na condição de vítimas, os brasileiros que poderiam ter um sistema de saúde, público ou privado, mais digno, mais organizado. Muito melhor.
Em novo período eleitoral, como o que vivemos, atores políticos, em campanha, oferecerão soluções imediatistas para problemas de longo prazo. Ou reproduzirão, na esperança de apoio, o ruído de corporações ou de segmentos, sem qualquer visão do todo. Mas este não é um período eleitoral qualquer. Em 2022 vota-se logo depois ou ainda durante uma pandemia que diagnosticou exaustivamente nossas dificuldades. E demonstrou, às custas de centenas de milhares de mortes e tragédias pessoais e familiares, a inadiável importância de avançarmos.
Melhorias no sistema, porém, vão depender, antes de tudo, da nossa capacidade de fazer a saúde ser ouvida. Não faltam propostas tecnicamente consolidadas e majoritárias, quando não unânimes, sobre o que precisa ser feito. O que nos falta são as condições para avançar o necessário e o correto em meio à babel.
Neste cenário, a Anahp foi criada há 21 anos com duas ideias centrais. Primeiro, a defesa do acordo nacional consagrado pela Constituição: um sistema de saúde, único, universal, integral, que prevê a presença e a atuação de prestadores de serviço privados. Segundo: respeitar o paciente, colocá-lo verdadeiramente no centro das atenções e prestar-lhe assistência digna e qualificada. Em outras palavras: que em nenhum hospital a escolha fique entre lucro e dignidade. Que o lucro seja buscado como condição para a sustentabilidade da atividade de prestação de serviços. E nunca como decorrência da redução do nível assistencial e moral da atividade.
O fato de ser parte de um sistema pulverizado e complexo obriga a Anahp, por decisão sua, a ouvir muito e ouvir a todos, como testemunham seus eventos, publicações e posicionamentos. Ouvir a sociedade e nela conviver, em especial, com as queixas, os anseios e as posições dos pacientes. Ouvir, ainda quando para discordar, as autoridades executivas, legislativas e regulatórias.
Ouvir, também, para ser ouvido. Parte das dificuldades da cadeia de saúde no Brasil decorrem da fraca voz do próprio setor, em grande parte por sua tendência à segmentação abusiva, à defesa apenas do específico e do particular. Ou à dificuldade para compreender que não há atividade, por mais rica ou economicamente poderosa que seja, capaz de ser ouvida se não se colocar objetivamente a serviço do sistema como um todo, leia-se contribuir para que o sistema cumpra seu maior objetivo – permitir acesso à assistência à saúde. E acesso digno.
Essas premissas fazem parte do direcionamento estratégico da Anahp, afirmado por seu Conselho de Administração, sua governança, seus associados. E fortalecida neste ano de 2022 pela constatação que este tem que ser um ano para ouvir a saúde.
Dentre as atividades organizadas para 2022, com este objetivo, a Anahp foi encontrar no portal de notícias JOTA um valioso parceiro na tarefa de ouvir para ser ouvido. Em um intenso e profundo trabalho, desenvolvido há meses, JOTA e Anahp identificaram mais de 50 vozes influentes do setor de saúde. Não nos perguntamos se eram vozes que pensam como a Anahp. Não nos preocupamos com o que diriam. Não desejávamos editar a realidade do debate sobre saúde, ajustando-o às cores por nós preferidas. Queríamos, isto sim, que a coleção dessas opiniões, colhidas, redigidas e editadas pelo JOTA, contribuíssem com autoridades e candidatos e com o próprio setor no exercício de ouvir, tão difícil entre nós.
Não haveria tempo nem espaço para todas as vozes. Às ausentes, nossas desculpas. Mas as que estão presentes nessa consulta – a mais ampla e pluralista já feita nos tempos recentes do sistema de saúde no Brasil – formam um painel muito amplo, muito democrático e muito verdadeiro dos temas e posições em jogo no sistema de saúde do Brasil.
Observarão ainda que a Anahp fez questão de, como anfitriã, não participar dos sete capítulos/temas em que didaticamente o trabalho foi dividido. Preferimos, através destas colocações iniciais, discutir de forma breve porque não somos ouvidos, como setor. E como será decisivo passar a sermos ouvidos.
Move-nos, acima de tudo, a convicção de que existem soluções técnicas conhecidas para a quase totalidade dos problemas que o sistema enfrenta. O que falta é a criação de condições políticas para que elas possam ser adotadas, planejadas e executadas como Políticas de Estado, protegidas dos males da exacerbada ideologização, do populismo, do imediatismo, da falta de coerência e de sequência.
Quem deixaria de concordar que a batalha contra a doença estará perdida, se não conseguirmos retomar algo que o Brasil até já fez de forma mais consistente promovendo a saúde, prevenindo doenças?
Ou ainda, que é urgente reorganizar o sistema para que nele portas de entrada, no público ou no privado, organizem a jornada do paciente, evitando o “modelo hospitalocêntrico”, a falta de resolutividade de postos iniciais de atendimento, a inferioridade salarial e profissional dos médicos de família, os generalistas, o bom e velho clínico geral?
Quem se oporia ao diagnóstico da necessidade urgente de reordenar instalações, equipamentos e profissionais ao longo do território brasileiro, fazendo ainda da saúde digital oportunidade imperdível para ampliar acesso?
Como divergir que pilotamos o sistema às cegas no Brasil em plena era dos dados, pela incapacidade de transformar informações esparsas em um sistema organizado para fins de planejamento? Como seguir desconhecendo a importância de métricas e indicadores que oferecem radar preciso para decisões sobre políticas e alocações de recursos?
Onde encontrar quem se recuse a constatar que nossa formação de profissionais, especialmente os de medicina, enfrenta grave crise por não se adaptar às novas exigências? E por termos trocado a pretensão de formar profissionais bem qualificados pela satisfação com números enganosos do aumento de diplomados?
Como encontrar, em pleno 2022, quem ainda tenha dúvidas sobre a necessidade de convivência e integração entre as estruturas públicas e privadas em nome do compromisso maior de ambos – contribuir para o acesso da população à saúde?
A propósito: como defender que o SUS precisa apenas de mais fontes de financiamento, desprezando a necessidade de uma vigorosa modificação em seus padrões de gestão e de coordenação entre os níveis federal, estaduais e municipais?
No setor privado, como desconhecer a obrigação – obrigação de estimular e proteger os que insistem em oferecer assistência com qualidade, baseada em profissionais qualificados, tecnologia moderna e padrões internacionais de gestão?
Até quando poderemos seguir sem uma atenção carinhosa à ciência e aos cientistas através de uma política objetiva sobre inovação no campo da saúde, que ponha fim aos desperdícios de talentos – hoje produto de exportação? E, também, do fortalecimento da capacidade nacional de produção de insumos e equipamentos, sem repetir erros do passado recente e usando, de forma séria e moderna, a capacidade de compra do Estado e seu poder de indução aos agentes produtivos do sistema, nacionais ou globais.
Enfim, sejamos discretamente otimistas. Há – e muito – para fazer. Há como fazer. Falta criar as condições estáveis para uma discussão mais plural, onde ouvir seja véspera de ser ouvido. A Anahp, recém completada sua maioridade, acredita que este pode ser o momento. E está trabalhando para isso.