Políticas públicas

Os corredores estreitos do debate sobre saúde no Brasil

Temos convicção de que existem soluções técnicas conhecidas para os problemas, faltam condições políticas para que elas sejam adotadas

Crédito: Unsplash/@Hush Naidoo Jade Photography

Um paradoxo que prejudica a todos nós, brasileiros. O debate sobre saúde não consegue se libertar dos corredores estreitos a que foi condenado no Brasil por mais decisivo que seja para o nosso futuro.

Ideologizado, carrega preconceitos recíprocos entre os setores público e privado. Infantilizado pelo populismo e pela demagogia, perde a noção da própria natureza técnica e científica. Partidarizado, persegue soluções mágicas de curto prazo e abandona, assim, a única fórmula para ter sucesso – consistência e continuidade ao longo do tempo com políticas de Estado. Segmentado, torna-se refém de interesses apenas parciais. Submisso às corporações, conflita no dia a dia com o que deveria ser sua motivação ética: trabalhar para todos.

No mundo real, as dificuldades do setor de saúde do Brasil tornam-se um complexo caleidoscópio onde é necessário, simultânea e contraditoriamente, ter orgulho pelo que avançamos e vergonha pelo que ainda sofremos; festejar ilhas de excelência ao lado de vazios onde o acesso digno à assistência é um sonho distante; enfim, uma confusa babel para a qual olham, na condição de vítimas, os brasileiros que poderiam ter um sistema de saúde, público ou privado, mais digno, mais organizado. Muito melhor.

Em novo período eleitoral, como o que vivemos, atores políticos, em campanha, oferecerão soluções imediatistas para problemas de longo prazo. Ou reproduzirão, na esperança de apoio, o ruído de corporações ou de segmentos, sem qualquer visão do todo. Mas este não é um período eleitoral qualquer. Em 2022 vota-se logo depois ou ainda durante uma pandemia que diagnosticou exaustivamente nossas dificuldades. E demonstrou, às custas de centenas de milhares de mortes e tragédias pessoais e familiares, a inadiável importância de avançarmos.

Melhorias no sistema, porém, vão depender, antes de tudo, da nossa capacidade de fazer a saúde ser ouvida. Não faltam propostas tecnicamente consolidadas e majoritárias, quando não unânimes, sobre o que precisa ser feito. O que nos falta são as condições para avançar o necessário e o correto em meio à babel.

Neste cenário, a Anahp foi criada há 21 anos com duas ideias centrais. Primeiro, a defesa do acordo nacional consagrado pela Constituição: um sistema de saúde, único, universal, integral, que prevê a presença e a atuação de prestadores de serviço privados. Segundo: respeitar o paciente, colocá-lo verdadeiramente no centro das atenções e prestar-lhe assistência digna e qualificada. Em outras palavras: que em nenhum hospital a escolha fique entre lucro e dignidade. Que o lucro seja buscado como condição para a sustentabilidade da atividade de prestação de serviços. E nunca como decorrência da redução do nível assistencial e moral da atividade.

O fato de ser parte de um sistema pulverizado e complexo obriga a Anahp, por decisão sua, a ouvir muito e ouvir a todos, como testemunham seus eventos, publicações e posicionamentos. Ouvir a sociedade e nela conviver, em especial, com as queixas, os anseios e as posições dos pacientes. Ouvir, ainda quando para discordar, as autoridades executivas, legislativas e regulatórias.

Ouvir, também, para ser ouvido. Parte das dificuldades da cadeia de saúde no Brasil decorrem da fraca voz do próprio setor, em grande parte por sua tendência à segmentação abusiva, à defesa apenas do específico e do particular. Ou à dificuldade para compreender que não há atividade, por mais rica ou economicamente poderosa que seja, capaz de ser ouvida se não se colocar objetivamente a serviço do sistema como um todo, leia-se contribuir para que o sistema cumpra seu maior objetivo – permitir acesso à assistência à saúde. E acesso digno.

Essas premissas fazem parte do direcionamento estratégico da Anahp, afirmado por seu Conselho de Administração, sua governança, seus associados. E fortalecida neste ano de 2022 pela constatação que este tem que ser um ano para ouvir a saúde.

Dentre as atividades organizadas para 2022, com este objetivo, a Anahp foi encontrar no portal de notícias JOTA um valioso parceiro na tarefa de ouvir para ser ouvido. Em um intenso e profundo trabalho, desenvolvido há meses, JOTA e Anahp identificaram mais de 50 vozes influentes do setor de saúde. Não nos perguntamos se eram vozes que pensam como a Anahp. Não nos preocupamos com o que diriam. Não desejávamos editar a realidade do debate sobre saúde, ajustando-o às cores por nós preferidas. Queríamos, isto sim, que a coleção dessas opiniões, colhidas, redigidas e editadas pelo JOTA, contribuíssem com autoridades e candidatos e com o próprio setor no exercício de ouvir, tão difícil entre nós.

Não haveria tempo nem espaço para todas as vozes. Às ausentes, nossas desculpas. Mas as que estão presentes nessa consulta – a mais ampla e pluralista já feita nos tempos recentes do sistema de saúde no Brasil – formam um painel muito amplo, muito democrático e muito verdadeiro dos temas e posições em jogo no sistema de saúde do Brasil.

Observarão ainda que a Anahp fez questão de, como anfitriã, não participar dos sete capítulos/temas em que didaticamente o trabalho foi dividido. Preferimos, através destas colocações iniciais, discutir de forma breve porque não somos ouvidos, como setor. E como será decisivo passar a sermos ouvidos.

Move-nos, acima de tudo, a convicção de que existem soluções técnicas conhecidas para a quase totalidade dos problemas que o sistema enfrenta. O que falta é a criação de condições políticas para que elas possam ser adotadas, planejadas e executadas como Políticas de Estado, protegidas dos males da exacerbada ideologização, do populismo, do imediatismo, da falta de coerência e de sequência.

Quem deixaria de concordar que a batalha contra a doença estará perdida, se não conseguirmos retomar algo que o Brasil até já fez de forma mais consistente promovendo a saúde, prevenindo doenças?

Ou ainda, que é urgente reorganizar o sistema para que nele portas de entrada, no público ou no privado, organizem a jornada do paciente, evitando o “modelo hospitalocêntrico”, a falta de resolutividade de postos iniciais de atendimento, a inferioridade salarial e profissional dos médicos de família, os generalistas, o bom e velho clínico geral?

Quem se oporia ao diagnóstico da necessidade urgente de reordenar instalações, equipamentos e profissionais ao longo do território brasileiro, fazendo ainda da saúde digital oportunidade imperdível para ampliar acesso?

Como divergir que pilotamos o sistema às cegas no Brasil em plena era dos dados, pela incapacidade de transformar informações esparsas em um sistema organizado para fins de planejamento? Como seguir desconhecendo a importância de métricas e indicadores que oferecem radar preciso para decisões sobre políticas e alocações de recursos?

Onde encontrar quem se recuse a constatar que nossa formação de profissionais, especialmente os de medicina, enfrenta grave crise por não se adaptar às novas exigências? E por termos trocado a pretensão de formar profissionais bem qualificados pela satisfação com números enganosos do aumento de diplomados?

Como encontrar, em pleno 2022, quem ainda tenha dúvidas sobre a necessidade de convivência e integração entre as estruturas públicas e privadas em nome do compromisso maior de ambos – contribuir para o acesso da população à saúde?

A propósito: como defender que o SUS precisa apenas de mais fontes de financiamento, desprezando a necessidade de uma vigorosa modificação em seus padrões de gestão e de coordenação entre os níveis federal, estaduais e municipais?

No setor privado, como desconhecer a obrigação – obrigação de estimular e proteger os que insistem em oferecer assistência com qualidade, baseada em profissionais qualificados, tecnologia moderna e padrões internacionais de gestão?

Até quando poderemos seguir sem uma atenção carinhosa à ciência e aos cientistas através de uma política objetiva sobre inovação no campo da saúde, que ponha fim aos desperdícios de talentos – hoje produto de exportação? E, também, do fortalecimento da capacidade nacional de produção de insumos e equipamentos, sem repetir erros do passado recente e usando, de forma séria e moderna, a capacidade de compra do Estado e seu poder de indução aos agentes produtivos do sistema, nacionais ou globais.

Enfim, sejamos discretamente otimistas. Há – e muito – para fazer. Há como fazer. Falta criar as condições estáveis para uma discussão mais plural, onde ouvir seja véspera de ser ouvido. A Anahp, recém completada sua maioridade, acredita que este pode ser o momento. E está trabalhando para isso.