Rodrigo de Oliveira Kaufmann

As discussões em torno da questão indígena no Brasil sempre formaram uma pauta ideológica muito cara àqueles que fizeram desse tema um “Cavalo de Troia” da tese de que no Brasil sempre há os oprimidos e os opressores. É por esse motivo que a defesa por demarcações amplas e irrestritas no Brasil são geralmente sustentadas por uma forte narrativa de vitimização, de opressão e subjugação.
Para quem advoga essa tese, não se trata de discussões legítimas, de confrontos fundiários de direitos ou de problema real e complexo: está-se diante - em um contexto fortemente romantizado - de “genocídio” de comunidades nativas, em relação aos quais está bem clara a posição daqueles que se opõem.
Em realidade, na visão desses, aqueles que se opõem sequer são titulares de direito, são “invasores”, devem ser tratados como párias em nosso regime jurídico, têm que ser expropriados sem direito a indenização. No velho tom ressentido, devem ser humilhados, devem ser declarados culpados, no tribunal da opinião pública, devem ser demonizados.
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Essa é a maior característica daqueles que entendem ser o “marco temporal”, fixado pelo STF quando examinou a PET nº 3.388 (o famoso caso da Raposa Serra do Sol), uma agressão aos povos indígenas e um acinte ao “direito originário”. Está subentendido em suas defesas a mensagem principal: os culpados, os “usurpadores” não podem ter direito a terem direito!
Afinal, o que significa exatamente o chamado “marco temporal” (teoria do fato indígena)? Significa que as comunidades indígenas têm o direito de verem demarcadas as áreas as quais ocupam e ocuparam em 05.10.1988. Tanto é assim que a própria Constituição fixou o prazo de 5 anos (art. 67 do ADCT) para que se declarassem tais áreas como indígenas.
Alguém desavisado - embora de boa-fé - diria: a concretização de um direito constitucional não pode estar adstrita à uma verificação fática de um dia! Exato. E não está, embora seja essa a data do início de nosso ciclo constitucional. Se no dia 05.10.1988 a comunidade indígena estava em confronto com reais invasores, se havia litígio judicial sobre aquela área, esse marco não se aplica.
O “marco temporal” veio, em realidade, para trazer balizas claras para a discussão, veio para fixar o “norte” para a decisão administrativa de demarcação, veio, em suma, para resguardar a segurança jurídica e garantir a paz no campo. A precisão e objetividade na forma de configuração de direitos constitucionalmente previstos é, sem dúvida, o melhor critério para a estabilidade das relações sociais e jurídicas.
O “marco temporal” foi definido, acima de tudo, para retirar das questões jurídicas e práticas os elementos de “ressentimento” e de “projeção de culpa” que povoam uma determinada narrativa. E é claramente um excelente ponto de início para se construir melhor convivência entre indígenas e não indígenas, criando integração social e econômica entre eles de forma a assegurar, especialmente aos índios, progresso e desenvolvimento (manifestada pela sua própria vontade, de acordo com seus usos, costumes e tradições).
De fato, desde 2009, os conflitos fundiários em questões indígenas se arrefeceram e o contexto de verdadeira conflagração no campo praticamente desapareceu. Começa-se a entender que, para além da bandeira das demarcações, há importantes demandas indígenas por educação, saúde, transporte, moradia e habitação, falta de trabalho remunerado, falta de saneamento básico, falta de alimentos, etc.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Depois de mais de 30 anos da promulgação da Constituição, a política indigenista exclusivamente dirigida às demarcações é, em verdade, um grande engodo, já que é medida pública a custo baixíssimo para o Governo que, assim, se desobriga com as suas demais responsabilidades exigíveis por qualquer cidadão brasileiro. O resultado desse tipo de política exclusivista e unidimensional foi claramente a miséria e a marginalização dessas comunidades indígenas.
E o que acontece com eventuais grupos indígenas que não têm terras demarcadas pelos critérios constitucionais? A Constituição (art. 231, § 6º) e a Lei nº 6.001, de 19.12.1973 (art. 26), estabelece a possibilidade de criação de “reservas indígenas”, áreas particulares desapropriadas pelo Poder Público para serem destinadas a determinada comunidade nativa.
E qual é o problema dessa solução (criação de reservas indígenas)? O problema é que, nesse modelo não há o “culpado”, o “opressor”, o “invasor”, não há o “conflito”, não há a “polarização”, não há o ressentimento vociferado. Em outras palavras, não há o discurso que retroalimenta os radicais e aqueles que fazem desse ambiente de instabilidade, verdadeiro negócio de autopromoção e representação.
É perturbador que esse discurso do “culpado” possa encontrar algum tipo de guarida no STF. É assustador que o Tribunal considere a possibilidade de insistir nesse modelo de que somente há direitos a se proteger para minorias e que, para tanto, é fundamental se configurar, mesmo que artificialmente, o “opressor”. E é mais desalentador imaginar a hipótese de que isso pode ocorrer por meio do frontal desrespeito a uma jurisprudência consolidada da Corte.
Retorno agora ao título. Nesses assuntos, muito se fala das comunidades indígenas, de seus direitos, das obrigações do Poder Público, como, aliás, também deve ser. Há, no entanto, centenas de milhares de brasileiros que são solenemente ignorados nessa questão. Simplesmente não têm voz. Reclamam seus direitos, mas não podem os usufruir. De momentos em momentos, sequer têm permissão para se valer do Poder Judiciário e do direito inscrito no art. 5º, XXXV, da CF.
São proibidos, por alguns, de terem direitos e de reclamá-los. Refiro-me àqueles brasileiros que são os considerados “culpados” de início, sem direito de defesa. Adquiriram terras de maneira legítima, desenvolvem suas atividades produtivas e agrícolas de maneira digna, estão na terra há décadas, aplicaram ali as reserva financeiras da família e de gerações, tentam ser cidadãos de bens e/ou empresários em um país onde segmentos da sociedade fazem de tudo para rebaixá-los e explorá-los. Apesar do que a “propaganda” contrária tenta construir, também fazem parte desse grupo uma grande parcela de pequenos e médios produtores rurais e assentados rurais dos programas de reforma agrária, brasileiros que precisam da terra para sobreviver e sustentar suas famílias.
Em realidade, é também para eles que serve o “marco temporal”. Sendo na forma de demarcação ou de reserva, os índios são igualmente contemplados. Entretanto, o modelo da demarcação é perverso para o agricultor. Na hipótese da reserva indígena, ao menos ele pode recomeçar, receber o valor que lhe é de direito pela desapropriação, manter sua dignidade e, acima de tudo, não ser apontado como “invasor”, como “esbulhador” que, de fato, nunca foi. Assim, o “marco temporal” é apenas e simplesmente a definição jurídica clara de que se o produtor rural ocupava a terra em 05.10.1988 (ou comprou de quem a ocupava), ao menos terá direito à uma indenização justa e poderá salvar a si a à sua família. Não será empurrado para a pobreza. São esses brasileiros invisíveis que agora precisam também ser ouvidos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme já havia identificado pesquisa inédita realizada já em 2012 por DATAFOLHA a partir de 1.222 entrevistas feitas em todas as regiões do país. <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2012/11/1183492-indios-estao-integrados-ao-modo-de-vida-urbano-afirma-pesquisa.shtml?origin=folha">https://www1.folha.uol.com.br/poder/2012/11/1183492-indios-estao-integrados-ao-modo-de-vida-urbano-afirma-pesquisa.shtml?origin=folha</a>

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JOTA

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